INTRODUÇÃO
Em 2020, o mundo foi assolado por uma pandemia, a COVID-19, causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 (1). Em janeiro de 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) confirmou mais de 330 milhões de infetados em todo o Mundo, incluindo mais de 5 milhões de mortes (2). O quadro clínico da doença pode ser a ausência de sintomas (assintomáticos), sintomas leves de tosse, ausência de paladar/olfato e febre, ou sintomas mais exacerbados como dificuldade respiratória (síndrome respiratório agudo) e perda de capacidade motora (3, 4). Nas situações mais graves, o internamento é necessário e o desfecho pode mesmo ser fatal. A idade avançada, a presença de comorbilidades, como obesidade, diabetes e hipertensão e um sistema imunitário deficitário, têm sido associadas a um maior risco de hospitalização e um pior prognóstico da doença (5, 6). Os hábitos alimentares inadequados estão associados a alterações em termos de stress oxidativo e inflamação, passíveis de afetar o sistema imunitário e influenciar desfavoravelmente o desfecho da doença COVID-19 (7). Pelo contrário, hábitos alimentares saudáveis, associados a um estilo de vida saudável, são importantes tanto para garantir uma ótima resposta do sistema imunitário, como para reduzir o risco de doenças não comunicáveis (DNC) relacionadas com a dieta, como doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade, considerados também fatores de risco para a doença provocada pelo vírus SARS-COV-2 (5, 6, 8, 9). A Dieta Mediterrânea (DietMed) representa um padrão alimentar caracterizado pelo consumo elevado de produtos de origem vegetal (fruta, hortícolas, leguminosas, cereais pouco refinados, azeite e frutos secos e oleaginosas), consumo moderado de laticínios e vinho, consumo preferencial de pescado em detrimento de carnes vermelhas e consumo baixo de produtos doces industrializados (10 - 13). Este padrão alimentar tem sido consistentemente associado a benefícios para a saúde, nomeadamente na redução do risco de doença cardiovascular, nas doenças metabólicas e no suporte da função imunitária. A infeção pelo coronavírus SARSCov-2 é caracterizada pelo aumento de interferões e outras citoquinas de caráter pro-inflamatório, assim como por uma desregulação da resposta imunológica do hospedeiro (14 - 16). O potencial benefício da DietMed na abordagem terapêutica da infeção por SARSCov-2 e na melhoria dos sintomas tem sido amplamente descrita na literatura (8, 17 - 20). Alimentos como os que caracterizam a DietMed são fontes alimentares adequadas de lípidos, nomeadamente ácidos gordos (mono-e polinsaturados), polifenóis (ex: flavonóides), vitaminas (A, C, E e D) e minerais (selénio e zinco). Estes nutrientes têm efeito anti-inflamatório, antioxidante e anti-trombótico, bem como um papel benéfico na microbiota intestinal, influenciando positivamente a resposta inflamatória e imunológica do hospedeiro.
Apesar do reconhecido papel benéfico da DietMed no impacto de doenças cardiovasculares, síndrome metabólica e diabetes (21, 22), capazes de predispor a uma maior gravidade de sintomas COVID-19, e apesar da recomendação deste padrão alimentar no tratamento e melhoria dos sintomas (8,18 - 20), é importante explorar os efeitos da DietMed na gravidade dos sintomas da doença.
OBJETIVOS
Investigar a associação entre o grau de adesão à DietMed e a gravidade dos sintomas COVID-19, em adultos (18-64 anos) recuperados da doença, no concelho do Funchal.
METODOLOGIA
O presente estudo foi realizado por nutricionistas da Unidade de Nutrição e Dietética (UND), do Serviço de Endocrinologia, do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM, EPERAM), em colaboração com Unidade de Emergência em Saúde Pública (UESP) do concelho do Funchal. Trata-se de um estudo observacional, transversal, retrospetivo com recolha de dados primários auto-reportados, pelo sistema CATI (Computer Assisted Telephone Interviewing). A amostra para o presente estudo foi obtida pela UESP-Funchal, a partir da lista deadultos com diagnóstico de COVID-19, já recuperados, entre 1 de janeiro e 10 de fevereiro de 2021 (por ser um período de elevado número de casos positivos em Portugal). Os adultos (18-64 anos) recuperados da COVID-19, sem nenhuma dose da vacina à data do diagnóstico e residentes no concelho do Funchal foram considerados elegíveis para o estudo. A exclusão de participantes grávidas aquando do diagnóstico COVID-19 foi decidida numa fase mais avançada do estudo, uma vez que estas mulheres reportaram mudanças profundas nos hábitos alimentares devido à sua condição. O estudo obteve o parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde do SESARAM, EPERAM (N.º 16/2021).
Este trabalho foi realizado em duas fases, tendo sido elaborado para cada uma delas um guião de entrevista, de forma a uniformizar os procedimentos. Na primeira fase a UESP-Funchal contactou telefonicamente todos os utentes elegíveis para o estudo (n=1155) e, depois de apresentar e explicar o estudo, solicitou consentimento para o participante ser contactado pela equipa de investigação. A lista final dos participantes foi de 659 adultos e, destes, 542 completaram o questionário (Fase 2), o que corresponde a uma taxa de resposta de 47%, obtida pelo quociente entre o número de questionários efetuados e o total de doentes COVID-19 recuperados elegíveis na Fase 1. O organigrama da seleção da amostra está representado na Figura 1. Para o presente trabalho foram recolhidos dados referentes à data do diagnóstico COVID-19, nomeadamente de variáveis: sociodemográficas (género, grupo etário, escolaridade, estado
civil, situação profissional); estilo de vida (atividade física e hábitos tabágicos); presença de doenças crónicas; ingestão de suplementos alimentares; estado de saúde autopercebido (estado de saúde em geral e peso corporal); e sintomas COVID-19.
O Índice de Massa Corporal (IMC) foi calculado através dos dados auto reportados de peso e estatura e categorizados em classes: magreza/ normal (< 25,0 Kg/m2); pré-obesidade (25,0-29,9 Kg/m2) e obesidade (≥30,0 Kg/m2) (23). Os sintomas reportados foram categorizados em: graves (dificuldade respiratória, pressão/dor no peito, perda da fala/ capacidade motora ou internamento); leves, todos os sintomas não incluídos na categoria anterior (tosse, anosmia/hiposmia, dores musculares, febre, dor de cabeça/garganta, etc); e assintomáticos (sem sintomas). O score de adesão à DietMed foi obtido a partir do índice MEDAS (Mediterranean Diet Adherence Screener-Mediterranean food pattern PREDIMED Study), validado para a população portuguesa, incluindo a sua aplicação por entrevista telefónica (24 - 26). As categorias utilizadas para classificar o grau de adesão à DietMed foram: fraca (≤ 5 pontos); moderada (6-9 pontos); e forte (≥ 10pontos) (24).
Análise estatística
A análise descritiva (uni- e bivariada) foi usada para a caracterização da população em estudo e por gravidade de sintomas COVID-19. Para a análise da associação entre sintomas graves (variável dependente) e a adesão à DietMED (variável independente) foi feita uma análise multivariada (regressão logística). Os Odds Ratio (OR) e os respetivos intervalos de 95% de confiança foram obtidos para o modelo não ajustado (Modelo 1) e nos modelos ajustados para as variáveis: sexo e idade (Modelo 2); sexo, idade, escolaridade, estado civil e situação profissional (Modelo 3); sexo, idade, escolaridade, estado civil e situação profissional, hábitos tabágicos, exercício físico, suplementação alimentar, perceção do estado de saúde, doenças crónicas, perceção peso e classes de IMC (Modelo 4). O nível de significância foi estabelecido para p <0,05. A análise estatística foi realizada com recurso ao software SPSS versão 25.0.
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta a caracterização da amostra em estudo. Dos participantes, 73,1% referiram ausência de sintomas ou sintomas leves durante a infeção por SARS-Cov-2 e cerca de 26,9% reportou sintomas considerados graves. Cerca de 61,6% dos adultos apresentou uma adesão moderada à DietMed e 14,8% uma forte adesão. No geral, a maioria (60,0%) dos participantes deste estudo foram mulheres, com uma escolaridade elevada (62,2% com o 10.º ano ou mais), casados (62,9%) e empregados (78,8%). Relativamente ao estilo de vida e estado de saúde, 3 em cada 4 adultos referiu nunca ter fumado e mais de metade considerou ter um bom ou muito bom estado de saúde (79,7%), bem como ausência de doenças crónicas (59,6%) antes de ter contraído a infeção por COVID-19. Das respostas obtidas, 53,0% dos inquiridos autopercecionou ter um peso normal, mas de acordo com os valores de peso e estatura reportados, a prevalência de excesso de peso (pré-obesidade e obesidade combinada) foi de 59,7%. Os participantes que desenvolveram sintomas mais graves, comparativamente aos assintomáticos, apresentaram um nível educacional mais elevado (42,5% vs. 31,8% com > 12.º ano, p=0,005), maior prevalência de excesso de peso autopercionado (50,7% vs. 34,1%, p=0,019) e uma menor adesão à DietMed (11,6% vs. 22,4% com forte adesão, p=0,024) (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta os resultados da associação estimada entre o desenvolvimento de sintomas graves e o grau de adesão à DietMed. No modelo em bruto (Modelo 1), a probabilidade de desenvolver sintomas graves foi menor para os participantes com uma moderada a forte adesão à DietMed ;OR adesão moderada 0,589 (IC 95%: 0,380-0,914); OR adesão forte 0,481 (IC 95%: 0,252-0,918) comparativamente aos participantes com fraca adesão. O mesmo resultado foi verificado, após o modelo ser ajustado para as variáveis sociodemográficas, estilo de vida e estado de saúde (Modelo 4) [OR adesão moderada 0,519 (IC 95%: 0,380-0,847); OR adesão forte 0,429 (IC 95%: 0,209-0,880);.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
No presente estudo, os adultos com forte adesão à DietMed apresentam menor probabilidade de desenvolver sintomas graves da doença COVID-19. Em cada 4 adultos, 3 apresentaram uma adesão moderada ou forte ao padrão alimentar mediterrâneo. Este resultado está em linha com resultados obtidos, após o início da pandemia, sobre a alimentação na RAM (27) , os quais revelaram uma tendência favorável no consumo de fruta e hortícolas, comparativamente a 2015-2016, período em que o consumo destes grupos de alimentos era 5% e 12% inferior às recomendações, respetivamente. O aparecimento do novo coronavírus pode ter aumentado a preocupação com a saúde entre os residentes da RAM, determinando escolhas de alimentos característicos de um padrão alimentar mais saudável. Esta mesma explicação já foi descrita em outros estudos (28, 29). Adicionalmente, os fatores sociodemográficos têm sido identificados, de forma consistente, como sendo dos principais determinantes da adesão à DietMed (30 - 33). Assim, um nível socioeconómico elevado, reportado pelo nível de escolaridade e situação profissional dos participantes deste estudo, bem como a residência num concelho predominantemente urbano, como é o concelho do Funchal, podem sugerir um melhor conhecimento sobre os benefícios de uma alimentação adequada e uma maior facilidade no acesso e aquisição de alimentos.
Dois estudos pesquisados na literatura sobre DietMed e COVID-19, analisaram a correlação entre a adesão a este padrão alimentar e o risco da doença (número de casos) em vários países, com os resultados a apontarem para uma associação negativa (34, 35). Relativamente ao risco de morte e à carga da doença por COVID-19, os dados não são tão consistentes. Num estudo ecológico, que incluiu Portugal, entre outros países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, a DietMed foi inversamente associada ao número de mortes relacionadas com a doença (34). Contudo, num outro estudo, não foi encontrada qualquer associação entre alimentação e a frequência de sintomas e/ou hospitalizações (36). Apenas um trabalho de investigação estudou os hábitos alimentares e a gravidade dos sintomas, tendo encontrado uma probabilidade maior de desenvolvimento de sintomas severos entre os participantes que reportaram hábitos alimentares menos saudáveis, caracterizados pela ingestão excessiva de fast-food ou açúcares (37).
Este estudo apresenta algumas limitações importantes, desde logo o facto de ser um estudo transversal, a partir do qual não é possível estabelecer qualquer relação causal. Os dados obtidos foram autoreportados e sujeitos à autoperceção dos inquiridos, o que pode contribuir para os vieses de informação e desejabilidade social. Devido ao desenho retrospetivo do estudo, não foram incluídos na amostra os casos de morte por COVID-19, um desfecho possível para a doença, nem foram consideradas as sequelas resultantes da mesma. Como principais pontos fortes, salienta-se a aplicação dos questionários por nutricionistas treinados e a utilização de guião de entrevistas, de modo a uniformizar os procedimentos e a reduziro viés de informação. Segundo o nosso melhor conhecimento, este é o primeiro estudo em Portugal, a investigar a associação entre a adesão à DietMed e gravidade sintomas COVID-19, em adultos.
* Desempregado, reformado, estudante, doméstica, trabalho em part-time ou à procura do primeiro emprego
** IMC: Índice de Massa Corporal
DM: Dieta Mediterrânea
Negrito: valores de p< 0,05
DM: Dieta Mediterrânea
OR: Odds ratio
IC: Intervalo de confiança
†: p < 0,05
Modelo 2: ajustado para as variáveis género e idade
Modelo 3: ajustado para as variáveis sociodemográficas (género, idade, escolaridade, estado civil e situação profissional)
Modelo 4: ajustado para as variáveis sociodemográficas, estilo de vida (hábitos tabágicos, exercício físico, suplementação alimentar) e estado de saúde (perceção da saúde, doença crónica, perceção peso e classes de IMC)
CONCLUSÕES
Apesar de muitos racionais teóricos estimarem o potencial benefício da DietMed na abordagem terapêutica da infeção por SARS-Cov-2 e na melhoria dos sintomas, este estudo apresenta evidência de que, um padrão alimentar baseado nos pressupostos mediterrânicos está positivamente associado a menor gravidade dos sintomas. Em termos de saúde pública, a recomendação à adesão da DietMed, baseada no consumo elevado de produtos hortícolas, fruta, leguminosas, cereais pouco refinados, azeite, frutos secos e oleaginosas, bem como na precaução da ingestão de carnes vermelhas e produtos industrializados, deve incluir também como benefícios a redução do risco da gravidade de doença COVID-19.
AGRADECIMENTOS
Um agradecimento especial à Unidade de Emergência em Saúde Pública (UESP) do concelho do Funchal, pelo contato inicial com os participantes, e ao Núcleo de Informática do SESARAM, EPERAM pela informatização do questionário a aplicar.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
VC: Investigadora principal e conceção do estudo; LC: Redação do manuscrito; VC, LC e SA: Desenho do estudo, recolha e análise dos dados, interpretação dos resultados e revisão do manuscrito; EH: Análise estatística dos dados, interpretação dos resultados e revisão do manuscrito. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito