INTRODUÇÃO
O aumento da esperança média de vida e o envelhecimento da população tem conduzido a um incremento na prevalência de doenças crónicas progressivas, nomeadamente as demências. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2015, aproximadamente 50 milhões da população mundial apresentava demência, estimando-se que em 2050 este valor triplique e atinja os 152 milhões de indivíduos (1, 2). As alterações metabólicas e fisiológicas decorrentes do processo de envelhecimento e o aparecimento de doenças crónicas progressivas, tais como a demência, podem causar dificuldades na ingestão alimentar por alterações do apetite e da capacidade de mastigação/deglutição. Acrescem ainda situações de recusa alimentar, perda de autonomia e de memória, alterações do paladar e do olfato bem como poderão emergir outros sintomas relacionados com a alimentação, nomeadamente a xerostomia e alterações do paladar e do olfato. Todas estas alterações acrescidas de modificações ao nível da absorção dos nutrientes, podem originar quadros de desnutrição que são prevalentes em doentes com demência e tendem também a ser mais frequentes em idosos institucionalizados e hospitalizados (3 - 6). Deste modo, a OMS definiu Cuidados Paliativos (CP) como os cuidados que visam melhorar a qualidade de vida dos doentes e suas famílias, que enfrentam problemas decorrentes de uma doença crónica, progressiva e incurável, nomeadamente das doenças neurodegenerativas como a demência, através da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso à identificação precoce e tratamento rigoroso dos problemas físicos, psicológicos, sociais e espirituais (6). Estes cuidados devem ser, acima de tudo, alicerçados em cuidados holísticos, humanizados e individualizados e, por isso, o respeito por aspetos indissociáveis da alimentação como o prazer, o conforto e bem-estar, diminuição da ansiedade e angústia e melhoria da qualidade de vida são fundamentais para cumprir o papel que a alimentação representa nesta fase da vida do doente (3). Assim, considerando não só o envelhecimento da população e o aumento da prevalência da demência, como também o risco inerente e conhecido de desnutrição destes doentes é crucial e pertinente a integração de nutricionistas em unidades de cuidados continuados integrados no sentido de avaliar o estado nutricional destes doentes e desenvolver estratégias alimentares e nutricionais adequadas. Deste modo, o presente estudo acrescenta à prática clínica a necessidade de identificar preferências alimentares bem como determinar quais os fatores que poderão interferir na ingestão alimentar de doentes com demência ou comprometimento cognitivo, com vista à melhoria da mesma, de forma a orientar os nutricionistas para a aplicação de um processo de cuidado alimentar e nutricional devidamente holístico e que seja facilitador do desenvolvimento de intervenções nutricionais adequadas.
OBJETIVOS
Identificar as preferências alimentares e de bebidas e conhecer os fatores condicionantes da ingestão alimentar em doentes com diagnóstico de demência ou comprometimento cognitivo.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo observacional descritivo do tipo transversal. A recolha dos dados foi realizada através de uma entrevista estruturada com questionário especificamente construido para o efeito aplicado a doentes com diagnóstico de demência ou comprometimento cognitivo e/ou os seus cuidadores informais, internados na Unidade de Cuidados Continuados (UCC) e Unidade de Convalescença, Reabilitação e Manutenção (UCRM) do Hospital-Escola da Universidade Fernando Pessoa (HE-UFP), alimentados por via oral e competentes para consentir no período de recolha de dados. Recolheram-se dados sociodemográficos (sexo, idade); clínicos (motivo de internamento, tempo de internamento, comorbilidades, diagnóstico); antropométricos e do estado nutricional (peso atual, estatura, Índice de Massa Corporal (IMC), peso habitual, peso há 3 meses, percentagem de perda de peso, perímetro braquial, geminal e cintura). A identificação e seleção dos doentes com diagnóstico de demência ou comprometimento cognitivo foi efetuada através da consulta do processo clínico eletrónico do doente. O rastreio do estado nutricional foi realizado através do Mini Nutritional Assessment (MNA). Recolheram-se dados sobre alimentação, nomeadamente as preferências de sabores, método de confeção, temperatura, grupos alimentares e fatores que condicionam a ingestão alimentar. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde do HEUFP (parecer n.º 69/B). Todos os procedimentos estavam de acordo com a Declaração de Helsínquia de 1964 e as suas posteriores alterações, ou normas comparáveis, e o Regulamento Geral de Proteção de Dados da UE (GDPR) (2016). O consentimento informado foi obtido, por escrito, de todos os participantes. O tratamento estatístico dos dados foi realizado através do programa Software Package for Social Sciences® (SPSS, Inc. Chicago, USA) for Windows, versão 27.0.
RESULTADOS
A amostra do estudo é constituída por 37 doentes, sendo 73% (n=27) do sexo feminino. O questionário foi aplicado ao doente em 62,2% (n=23) dos casos, aos cuidadores em 32,4% (n=12) e a ambos em 5,4% (n=2) dos casos. A idade média dos participantes foi de 81,3 anos (DP=11,2), com um mínimo de 43 e máximo de 101 anos. O tempo médio de internamento foi de 600,9 (DP=705,9) dias, com um mínimo de 7 e máximo de 2532 dias. O motivo de internamento em 70,3% (n=26) dos casos deveu-se a reabilitação, manutenção em 21,6% (n=8) e manutenção e paliativos em 8,1% (n=3). Quanto às comorbilidades associadas, 51,4% da amostra apresenta Fatores de Risco Cardiovascular (FRCV). Do total dos participantes, 37,8% (n=14) dos doentes apresentavam síndrome demencial e 62,2% (n=23) comprometimento cognitivo. No que concerne à intervenção nutricional, 43,2% (n=16) tinham prescrição de dieta geral, 24,3% (n=9) mole, 24,3% (n=9) pastosa e 8,1% (n=3) ligeira. Observou-se ainda a combinação de dieta com suplementação modular calórica e/ou proteica e recurso a espessante. Relativamente ao estado nutricional, verificou-se uma média de score MNA de 19,9 (DP=3,1), com valores compreendidos entre 13,5 e 26,0. Assim, 75,7% (n=28) apresentava risco de desnutrição, 8,1% (n=3) desnutrição e 16,2% (n=6) estado nutricional normal. Relativamente a sabor, método confeção e temperatura (Tabela 1), verificou-se uma preferência pelo sabor doce (48,6%, n=18) e salgado (32,4%, n=12), por cozidos (64,9%, n=24), grelhados (48,6%, n=18), assados (37,8%, n=14) e por alimentos quentes (83,8%, n=31). Na Tabela 2 encontram-se as preferências alimentares por grupos de alimentos. Em relação aos iogurtes, os iogurtes sólidos de aromas (40,5%, n=15) e os líquidos de aromas (37,8%, n=14) foram os mais eleitos. Quanto ao leite, o leite com café/ cevada foi a opção mais escolhida (67,6%, n=25). No que concerne aos cereais, pão e produtos açucarados, as opções mais prevalentes foram o pão (70,3%; n=26), bolos (67,6%; n=25) e bolacha maria (45,9%; n=17). Relativamente ao recheio, as opções mais escolhidas foram manteiga (54,1%; n=20), fiambre de porco (35,1%; n=13) e marmelada (32,4%; n=12). Relativamente à carne, pescado e ovos, verificou-se uma maior preferência por carne de porco (64,9%; n=24), seguida de carne de vaca (56,8%; n=21), frango (54,1%; n=20), carnes processadas (43,2%; n=16) e cabrito (37,8%; n=14). Em relação ao peixe, a distribuição é relativamente uniforme entre peixe magro (56,8%; n=21) e peixe gordo (51,4%, n=19). O bacalhau foi ainda a preferência de 18 doentes (48,6%). Já os ovos foram uma opção eleita por 71,1% da amostra (n=26). No que se refere aos cereais e derivados, tubérculos e leguminosas, verifica-se uma maior preferência pela broa (75,7%; n=28), batata (59,5%; n=22), pão (51,4%; n=19) e arroz (40,5%; n=15). A opção mais escolhida nas leguminosas foi o feijão (59,5%; n=22) e o grão-de-bico (45,9%; n=17). Quanto às sobremesas, verificou-se uma maior preferência por pudim (59,5%; n=22), leite creme (59,5%; n=22) e aletria (48,6%; n=18). Em relação à forma de apresentação da fruta, a forma privilegiada foi a fruta ao natural (62,2%; n=23) e a maçã/ pêra (83,8%; n=31), banana (64,9%; n=24), uvas (59,5%; n=22), e laranjas/ tangerinas (48,6%; n=18) foram as opções mais escolhidas. Quanto à forma de apresentação dos hortícolas, a sopa foi a forma privilegiada de apresentação (83,8%; n=31) e a penca (35,1%; n=13), cenoura (32,4%; n=12) e couve branca/lombarda (32,4%; n=12) foram os hortícolas mais mencionados. Relativamente aos frutos oleaginosos, verificou-se uma maior preferência por nozes (56,8%; n=21). Relativamente às bebidas, verificou-se maior preferência por água (62,2%; n=23), café (43,2%; n=16) e vinho (40,5%; n=15). No que concerne aos condicionantes da ingestão alimentar (Tabela 3), salientam-se a companhia durante as refeições (70,3%; n=26), a forma de apresentação (51,4%; n=19) e a quantidade/volume das refeições (37,8%; n=14).
a “iogurtes sólidos biológicos” (2,7%; n=1)
b “bolachas húngaras” (2,7%; n=1), “pão de leite” (2,7%; n=1), “bolachas integrais” (2,7%; n=1), “rabanadas” (2,7%; n=1)
c “salpicão e chouriço” (2,7%; n=1)
d “arroz-doce, mousse de chocolate e baba de camelo” (2,7%; n=1), “suspiro” (2,7%; n=1), “bolo-rei e fogaça” (2,7%; n=1), “bolo de bolacha e marmelada com queijo” (2,7%; n=1), “bolo de bolacha” (2,7%; n=1), “arroz-doce e pão de ló” (2,7%; n=1), “mousse chocolate e tapioca” (2,7%; n=1), “mousse chocolate (2,7%; n=1), “marmelada com queijo” (2,7%; n=1)
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Não foi encontrado, até ao momento, na literatura, estudos que avaliassem as preferências alimentares de doentes hospitalizados com diagnóstico específico de síndrome demencial ou comprometimento cognitivo. Apesar de não ser possível identificar um padrão alimentar, foi demonstrado que estes doentes possuem preferências que devem, sempre que possível, ser consideradas através da personalização da dieta hospitalar. A preferência por alimentos e bebidas habitualmente não incluídos ou menos disponibilizados nas ementas hospitalares, tais como: como broa, bolos, pudim, leite creme, feijão, nozes, grão-de-bico, aletria, café, vinho, fiambre de porco, marmelada leva à ponderação da necessidade de inclusão desses alimentos nas ementas e lista de alimentos suplementares hospitalares. Salientam-se como fatores mais selecionados a companhia, forma de apresentação e quantidade/volume das refeições. Quando questionados sobre em que medida a quantidade poderia influenciar a ingestão alimentar, a resposta refletiu aversão face a quantidades elevadas de comida, o que leva à necessidade de ponderar a redução das capitações em determinadas situações. Em ambiente hospitalar, as barreiras que condicionam a ingestão alimentar dos doentes podem estar relacionadas com as caraterísticas do doente (sexo, idade, atividade física, tempo de internamento, mastigação/ deglutição, perda de autonomia ou apetite, alterações sensoriais, fatores socioeconómicos, assistência na administração das refeições, condição clínica do doente), a instituição hospitalar (capitações inadequadas, ambiente do local de refeição, prescrição da dieta, enfermaria, horário e sistema de entrega de refeições ou as caraterísticas da refeição (aspeto, aroma, temperatura, diversidade, consistência, métodos de confeção, sabor) (8, 9). Estes determinantes devem ser identificados para facilitar o desenvolvimento de estratégias que melhorem a ingestão alimentar dos doentes. Uma sugestão de melhoria seria incluir uma avaliação da qualidade de vida, fator indissociável da alimentação que deve ser considerado na avaliação global do doente. Por outro lado, existiram grupos alimentares com um reduzido número de respostas, nomeadamente os hortícolas, uma vez que nos questionários aplicados aos cuidadores, os mesmos não conseguiram discriminar os hortícolas preferidos do doente, possivelmente, pela forma de apresentação preferencial ser na sopa. Apesar das limitações, o questionário pode ser usado como ferramenta complementar na avaliação nutricional e das preferências alimentares do doente, o que poderá facilitar a personalização da dieta hospitalar pelo nutricionista. É crucial uma boa coordenação entre o nutricionista e a empresa de fornecimento de refeições para uma maior eficácia na disponibilização da alimentação, garantindo o conforto e bem-estar do doente.
CONCLUSÕES
A alimentação via oral, quando disponível, deverá ser a primeira estratégia a ser utilizada nos doentes com demência (4, 6). No presente estudo, a maioria dos doentes mencionou preferir sabores doces, alimentos cozidos, quentes de consistência normal e como bebida a água. Nos fatores condicionantes da ingestão alimentar salientam-se a companhia, forma de apresentação e quantidade/volume das refeições. Apesar de não se ter identificado um padrão alimentar, conclui-se que estes doentes possuem preferências que devem, sempre que possível, ser respeitados através da personalização da dieta hospitalar. Possibilita ainda a reflexão sobre a revisão dos alimentos disponibilizados em contexto hospitalar e a relevância da integração de nutricionistas de forma a estabelecer a melhor intervenção nutricional a cada doente.
CONFLITO DE INTERESSES
Nenhum dos autores reportou conflito de interesses.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
SS: Contribuiu para a conceção e desenho do estudo, recolha e análise dos dados, interpretação dos resultados e redação do manuscrito. CP-R: Contribuiu para a revisão crítica do manuscrito e aprovação para publicação da versão final. SM: Contribuiu para análise, tratamento dos dados, revisão crítica do manuscrito e aprovação para publicação da versão final. ID: Contribuiu para a revisão crítica do manuscrito e aprovação para publicação da versão final. Todas as autoras leram e aprovaram a versão final do manuscrito.