INTRODUÇÃO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos defende que “todos os indivíduos têm direito à saúde e bem- estar, com acesso incondicional a alimentos, habitação e cuidados médicos” (1). Coexistem situações em que os indivíduos não têm acesso físico e económico a alimentos seguros e nutritivos (2, 3), encontrando-se numa situação de insegurança alimentar (3, 4).
De acordo com dados do Inquérito Alimentar Nacional de Alimentação e Atividade Física 2015-2016, 10,1% das famílias em Portugal experimentaram insegurança alimentar, ou seja, tiveram dificuldade, durante este período, de fornecer alimentos suficientes a toda a família, devido à falta de recursos financeiros; 2,6% destas famílias, indicaram experimentar insegurança alimentar moderada ou grave, durante este período, referindo a alteração dos seus hábitos alimentares habituais, e a redução do consumo de alimentos, em muito casos alimentando-se com poucos alimentos ou até mesmo que “sentiram fome mas não comeram por falta de dinheiro para adquirir alimentos” (3). De acordo com dados recolhidos no mesmo período, mas no âmbito do projeto Saúde. Come, esta está presente em 19,3% das famílias portuguesas. Para além das problemáticas inerentes à carência alimentar, indivíduos com insegurança alimentar parecem apresentar uma menor prevalência de adesão ao padrão alimentar mediterrânico e maior prevalência de doenças crónicas (5).
A redução da pobreza, a redução das desigualdades sociais ou a promoção do bem-estar dos menos favorecidos contribuirá para uma melhor saúde e bem-estar, nomeadamente melhoria do estado nutricional e dos hábitos alimentares, devendo ser o objetivo das políticas públicas (6, 7) e intervenção cívica. Nos últimos anos, tem-se vindo a reforçar a importância de redes estatais para garantir o acesso a uma alimentação regular, segura e adequada com o desenvolvimento de estratégias para garantir o acesso a alimentos, reduzindo as desigualdades sociais na saúde (6 - 13), sendo vários os modelos de ajuda alimentar utilizados pelos estados, organizações não governamentais, instituições particulares de solidariedade social e grupos de indivíduos da sociedade civil, que assentam num dos três tipos de ajuda alimentar, de acordo com o World Food Programme (14). Situações de pobreza e exclusão social têm vindo a ser identificadas numa faixa demasiado expressiva da população europeia, estimando-se que a atual situação de fragilidade económica, agravada pelo contexto pandémico verificado nos anos de 2019-2022, tenha contribuído para agravar esta realidade (15 - 17). Em Portugal, de acordo com os dados mais recentes relativos ao ano de 2019, verificou-se uma taxa de risco de pobreza de 17,2% e uma taxa de privação material de 15,1% (18). As dificuldades no acesso aos alimentos decorrentes de situações de carência socioeconómica são na verdade um dos problemas onde a intervenção na área da ação social é premente, requerendo a implementação de programas que assegurem a dignidade humana, através da promoção de direitos fundamentais como a alimentação, emprego, moradia, saúde e educação (19).
Apesar de responder à garantia de um direito humano básico - o acesso à alimentação - a caridade alimentar poderá motivar um dilema ético, pelo que com este trabalho se pretende realizar uma reflexão ética acerca da caridade alimentar como salvaguarda do direito humano à alimentação adequada.
Carência Alimentar e Condição de Saúde
De acordo com diversos autores, as famílias em situação de insegurança Alimentar, tendem a apresentar mais frequentemente uma ingestão insuficiente de nutrientes, potenciam situações clínicas agudas como a anemia, bem como dificuldades de aprendizagem em crianças (20 - 22). Por outro lado, vários são os estudos que demonstram que a Insegurança Alimentar é um importante fator de risco para as doenças crónicas (23 - 27), sendo que os indivíduos em situação de Insegurança Alimentar possuem um risco aumentado para o desenvolvimento de metabólicas e cardiovasculares (28-35). Sabe-se também que as implicações da Insegurança Alimentar vão além da dimensão física da saúde, podendo afetar as suas outras dimensões - saúde mental e social, sendo o stress associado a situações de insegurança alimentar um importante mediador neste processo (36 - 39).
Programas de Apoio Alimentar
A União Europeia (EU), apresenta desde 1987, programas de apoio alimentar. O Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados (PCAAC) foi criado pelo Regulamento (CEE) n.º 3730/97 (40), com o objetivo de distribuir alimentos às famílias/pessoas mais carenciadas e também às instituições/organizações que prestam apoio e que trabalham em contacto direto com estas famílias/pessoas, distribuindo géneros alimentícios provenientes das existências (40). Na Tabela 1 é apresentada a composição alimentar dos cabazes alimentares do PCAAC, no período de execução de 2008-2013, sendo caracterizado por períodos de distribuição concentrados numa ou duas entregas anuais (41 - 46).
O PCAAC foi substituído pelo Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas Mais Carenciadas (FEAC), um programa que tem como ambição melhorar o modelo de ajuda alimentar da UE, estando explícito no Regulamento geral do FEAC e no Regulamento específico do Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas (POAPMC), a necessidade de assegurar a oferta de alimentos que sejam nutricionalmente adequados (47). O POAPMC apoia a distribuição de géneros alimentícios às pessoas mais carenciadas, chegando a mais de 80 000 beneficiários (48 - 51), garantindo 50% das necessidades energéticas e nutricionais dos indivíduos (9, 11, 13). Em 2019, foi apresentada uma nova proposta para os cabazes de alimentos, depois de um trabalho de avaliação dos resultados deste modelo de apoio alimentar, caracterizada por promover a distribuição de alimentos que se aproximem, tanto quanto possível, dos hábitos de consumo e preferências alimentares dos destinatários, reduzir o desperdício associado à não utilização de alguns alimentos, bem como aumentar a diversidade dos alimentos incluídos no cabaz, sem que estas alterações tenham implicações significativas na adequação nutricional dos cabazes de alimentos e potenciando a variedade da alimentação (52). Na Tabela 2 é apresentada a composição dos cabazes alimentares do POAPMC, nas suas fases 1 e 2.
Para além dos programas de apoio alimentar governamentais a caridade alimentar é garantida igualmente por um conjunto de entidades com maior ou menor grau de diferenciação e abrangência geográfica (53), tais como a RE-FOOD, a Rede de Emergência Alimentar, o Banco Alimentar contra a Fome, a Cáritas, a Assistência Médica Internacional, a Sociedade São Vicente de Paulo, a Comunidade Vida e Paz, entre outras organizações não governamentais, instituições particulares de solidariedade social e cidadãos anónimos com atuação individual ou organizada; através de peditórios, recolhas e doações de alimentos, motivados por excedentes produzidos, ou resultantes da boa vontade e solidariedade dos demais, havendo na generalidade intermediários no processo, e parcos recursos técnicos, o que motiva a oferta alimentar de alimentos secos, com prazo de validade alargado, muitas vezes processados.
Caridade Alimentar: Dilema Ético
Em Outubro de 2005, a Conferência Geral da UNESCO adotou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (54). Ao tratar das questões éticas suscitadas pela medicina, ciências da vida e tecnologias associadas na sua aplicação aos seres humanos, a Declaração, incorpora os princípios que enuncia nas regras que norteiam o respeito pela dignidade humana, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ao consagrar a bioética entre os direitos humanos internacionais e ao garantir o respeito pela vida dos seres humanos, a Declaração reconhece a interligação que existe entre ética e direitos humanos no domínio específico da bioética.
A caridade alimentar é apoiada por princípios éticos como o da solidariedade e cooperação (art. 13.º), que deve ser incentivada entre os povos, e o da responsabilidade social e saúde (art. 14.º), sendo a promoção da saúde e do desenvolvimento social um objetivo fundamental dos governos que envolve todos os setores da sociedade, incluindo a sociedade civil. A Declaração (54) é clara quando determina que gozar da melhor saúde é um direito humano fundamental, sem distinção de raça, religião, opções políticas e condição económica ou social. É enquadrado neste princípio ético o acesso a alimentação e água adequadas.
A caridade alimentar é também suportada pela garantia da dignidade humana e direitos humanos (art. 3.º), salvaguardando o respeito pela vida e pelo bem-estar do indivíduo e pelo princípio da beneficência (art. 4.º), devendo ser maximizados os efeitos benéficos diretos e indiretos das ações. A caridade alimentar assenta no princípio da beneficência uma vez que permite a garantia de um direito humano básico, a alimentação, sem a qual, este não estaria garantido.
O princípio da igualdade, justiça e equidade (art. 10.º) suporta igualmente a caridade alimentar na salvaguarda do direito humano à alimentação, uma vez que corrobora a igualdade fundamental de todos os seres humanos em dignidade e em direitos, devendo esta ser respeitada para que todos sejam tratados de forma justa e equitativa. Deste modo, cidadãos em situação de vulnerabilidade económica e carência alimentar têm igual direito à alimentação adequada, do que aqueles que têm condição económica e capacidade funcional para os adquirir, razão pela qual, a caridade alimentar potencia a dignidade e os direitos humanos, através da distribuição justa e equitativa de alimentos entre indivíduos em situação de vulnerabilidade social.
Se parece ser irrefutável que a caridade alimentar é apoiada por um conjunto de princípios éticos, a realização da mesma poderá incorrer num conjunto de outros princípios que poderão estar a ser lesados, tais como o da autonomia e responsabilidade individual (art. 5.º). Como tal, poderá assumir-se que em determinadas situações o indivíduo poderá não querer ser apoiado, devendo essa decisão, ao abrigo do princípio da autonomia, ser respeitada.
Deve ser salvaguardado o respeito pela vulnerabilidade humana e integridade pessoal (art. 8.º), bem como a dignidade humana e os direitos humanos (art. 3.º) sendo que os indivíduos e grupos particularmente vulneráveis devem ser protegidos, e deve ser respeitada a integridade pessoal dos indivíduos em causa, garantindo o direito humano a alimentação adequada (cf. art. 14.º). De acordo com a literatura, salvo exceções, como é o caso do POAPMC, o apoio alimentar é caracterizado por alimentos densamente calóricos e pobres nutricionalmente (53), contribuindo para piorar a condição de saúde de um grupo vulnerável, que pela sua condição de insegurança alimentar já apresenta uma maior prevalência de obesidade e doenças metabólicas (5, 6, 12, 20-39).
Considera-se ainda que em determinadas situações, a distribuição de alimentos, provenientes da caridade alimentar, não salvaguarda o princípio da não discriminação e não estigmatização (art. 11.º) da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (54), ao identificar os beneficiários dos mesmos. De facto, nenhum indivíduo ou grupo deve, em circunstância alguma, ser submetido, em violação da dignidade humana, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, a uma discriminação ou a uma estigmatização.
O agravamento da crise, previsível no decorrer e sequência da pandemia COVID-19, aumentou os desafios relacionados com o acesso ao consumo alimentar das famílias em situação de vulnerabilidade económica e social (15 - 17), pelo que se prevê um aumento da necessidade de ajuda alimentar. Tal situação não deverá contribuir para uma alienação das questões éticas implicadas, mas contribuir para uma reflexão apurada e uma melhoria dos procedimentos a ela associados, como forma de garantir o fim último de salvaguarda do bem-estar dos indivíduos implicados.
ANÁLISE CRÍTICA
Até muito recentemente, os modelos de apoio alimentar existentes, não tinham como referência a qualidade nutricional e adequação da alimentação fornecida, sendo muitas vezes, os alimentos distribuídos no âmbito destes programas de ajuda alimentar, pouco interessantes do ponto de vista nutricional. Adicionalmente, os alimentos que mais se encontravam em falta no seio das famílias carenciadas, não correspondiam habitualmente aos alimentos distribuídos por estes programas de apoio alimentar, como por exemplos os produtos hortícolas, a carne e o pescado (9).
Deste modo, este novo modelo de ajuda alimentar pode representar uma janela de oportunidade para assegurar a distribuição de cabazes alimentares adequados do ponto de vista nutricional para as famílias portuguesas mais carenciadas. Na verdade, durante os últimos anos, a oferta alimentar fornecida no âmbito dos programas de ajuda alimentar, em particular do PCAAC, foi sempre muito condicionada pelos excedentes da produção alimentar, tornando-se deste modo difícil garantir a adequação nutricional dos alimentos distribuídos, assegurando necessidades alimentares muito reduzidas aproximadamente 3 a 5 g de alimentos por pessoa/dia (41 - 46), representando um contributo energético e nutricional face às recomendações nutricionais, manifestamente insuficiente.
Com a transição para o POAPMC importa realçar a mudança de paradigma na qualidade nutricional dos modelos de ajuda alimentar em Portugal potenciada por esta distribuição mensal de cabazes de alimentos do PO APMC iniciada em 2017. Estes cabazes de alimentos permitem assegurar 50% das necessidades energéticas e nutricionais diárias dos destinatários e contemplam a distribuição de alguns dos alimentos que habitualmente não estão presentes nos modelos de ajuda alimentar, como carne, pescado e produtos hortícolas (11, 13). As alterações verificadas ao nível da composição alimentar, e consequentemente nutricional, dos cabazes alimentares nestes programas e ao longo das suas fases de implementação tem vindo a ser motivada por um trabalho interministerial, da responsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e com a colaboração do Ministério da Saúde, através do Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável da Direção-Geral da Saúde e do Ministério da Economia, através da ASAE. O recém-criado Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional em Portugal, criado por resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2018 (55), enquanto plataforma interministerial e de participação da sociedade civil, com o objetivo de contribuir para a concretização do Direito Humano à Alimentação Adequada, poderá desempenhar um papel igualmente importante neste domínio.
O trabalho desenvolvido ao nível dos cabazes alimentares fornecidos pelas entidades governamentais, ao nível dos programas de assistência alimentar, deverá assim servir de mote para o planeamento de estratégias e ações de modo a melhorar a qualidade da oferta alimentar dos cabazes fornecidos pelos restantes stakeholders envolvidos no apoio alimentar aos indivíduos em situação de grande vulnerabilidade social. Também Recine (56) refere que a análise de programas de segurança alimentar e nutricional tradicional baseada, por exemplo, na cobertura e aplicação de recursos é importante, mas não suficiente, pois são necessárias três outras dimensões para a monitorização e avaliação das ações que objetivam realizar o direito humano à alimentação e garantia da segurança alimentar e nutricional.
De acordo com Carvalho L (57), num trabalho realizado no Brasil, o Programa de Aquisição de Alimentos constitui uma resposta estruturante no campo da segurança alimentar e nutricional, voltando-se, prioritariamente, à garantia do direito à alimentação. Tal constatação confirma a afinidade com os referenciais e pressupostos bioéticos, como os direitos humanos, a equidade, a proteção, a inclusão social e participação social. Os referenciais bioéticos, quando aplicados às políticas de segurança alimentar, parecem possibilitar uma melhor compreensão e aprimoramento dos programas, contribuindo para o estrito cumprimento dos princípios éticos (57). Esta análise da capacidade normativa dos programas de aquisição de alimentos respondem às necessidades dos autores da área da avaliação das políticas e programas de promoção da saúde (58, 59), os quais, reiteradamente, destacam a importância deste tipo de estudo, que permite refletir acerca do desenho, explicitando as potencialidades e limitações dos valores que fundamentam sua formulação (60).
O presente artigo não pretende ser uma análise desencorajadora da assistência alimentar em Portugal, mas contribuir para uma reflexão apurada e uma melhoria dos procedimentos a ela associados, como forma de garantir o fim último de salvaguarda do bem-estar dos indivíduos implicados, tal como refletido por outros autores, numa perspetiva mais ampla, como é a alimentação (60).
CONCLUSÕES
As dificuldades no acesso aos alimentos decorrentes de situações de carência socioeconómica são na verdade um dos problemas onde a intervenção na área da ação social é premente.
Apesar de responder à garantia de um direito humano básico, a caridade alimentar motiva um dilema ético, contrapondo os princípios éticos que motivam a sua implementação.
Pese embora a sua prática comprometa alguns princípios éticos, o benefício que a mesma permite, justifica a sua realização. Ainda assim, as diferentes formas de violações ao direito humano à alimentação adequada, que produz as diferentes fomes, não são uma eventualidade do destino, mas de uma má conduta dos próprios seres humanos. Deste modo, face à doutrina do desenvolvimento humano, para o futuro, é da maior relevância unir esforços entre comités de ética, para a assunção deste assunto como um pilar basilar de atuação e preocupação no novo milénio.