INTRODUÇÃO
Portugal é, de entre os países europeus, aquele que apresenta uma das mais elevadas taxas de prevalência da diabetes, sendo que cerca de 13,6% da população portuguesa entre os 20 e os 79 anos de idade tem a doença (1). Para indivíduos com diabetes tipo 2 (DT2), um programa desportivo bem implementado poderá prevenir o desenvolvimento e/ou otimizar o tratamento da doença (2). Um programa desportivo implica o afinamento ao nível do rendimento desportivo e da recuperação do treino. A disponibilidade de hidratos de carbono (HC) é importante para maximizar o rendimento aeróbio durante períodos de longa duração de intensidade moderada a alta bem como para recuperação pós-treino aguda (3).
Diferentes tipos de treinos podem afetar os valores glicémicos no sangue de maneiras diferentes. Por norma, treinos aeróbios de baixa intensidade diminuem os valores glicémicos (4,5) enquanto treinos de alta intensidade aumentam os valores glicémicos (6). Existem mecanismos de controlo internos que são responsáveis pela regulação dos valores glicémicos. Em situações de hipoglicémia, os mecanismos caraterísticos de controlo das catecolaminas e das hormonas contra-reguladoras são importantes na regulação de concentrações baixas de glicose sanguínea (7). Esses mecanismos permitem a indução ao processo da glicogenólise (hepático e muscular) e neoglucogénese (predominantemente hepático) (8 - 11) de forma a responder às necessidades energéticas exigidas durante o treino através de uma fonte endógena de glicose, o HC utilizado pelo corpo como substrato energético. Em situações de hiperglicémia, a insulina é o composto responsável na regulação de concentrações elevadas de glicose sanguínea. Na DT2 esses mecanismos não estão regularizados (12, 13) e indivíduos podem ter complicações de baixos a altos níveis de açúcares no sangue durante e/ou após o treino em resposta às intervenções do protocolo desportivo (14). Essa particularidade dificulta as recomendações utilizadas para o uso de HC nas diferentes fases do treino para o rendimento aeróbio e recuperação.
É necessário otimizar o programa desportivo na diabetes para prevenir um descontrolo glicémico, melhorar o rendimento e a recuperação no desporto. Tendo em conta as recomendações dietéticas para os HC em indivíduos saudáveis no desporto, o seguinte artigo pretende, com base na fisiopatologia da diabetes, justificar e considerar a implementação de um novo modelo de estratégia dietética nos indivíduos com DT2.
METODOLOGIA
Foi efetuada uma pesquisa bibliográfica através da base de dados “Pubmed”, “Scopus” e “SPORTDiscus”. A estratégia de pesquisa incluiu a utilização das seguintes terminologias e associações: “Diabetes”; “non insulin dependent diabetes”; “physiopatology”; “dysglycemia”; “exercise”; “carbohydrate ratio”; “glucose”; “fructose”; “metabolic health”; “sports recovery”; “aerobic performance”; “endurance”. Não houve restrição da data de publicação na qual a totalidade dos artigos foi considerada antes de dezembro de 2022.
A pesquisa foi realizada entre dezembro e fevereiro de 2022. Os artigos recolhidos foram armazenados no programa Endnote para otimizar a gestão de referências bibliográficas. Durante o período de pesquisa, foi recolhido no total 624 artigos. A exclusão dos artigos esteve dependente do título e/ou resumo que não estivessem enquadrados com o tema deste trabalho. No final da seleção, foram incluídos 56 artigos.
Os artigos que foram aprovados para serem incluídos neste artigo de caráter profissional foram utilizados para fundamentar os seguintes tópicos: fisiopatologia da diabetes tipo 2, exercicio na diabetes tipo 2, recomendações de hidratos de carbono no treino, tipos de hidratos de carbono no treino, rácio glicose:frutose e conclusões.
Fisiopatologia da Diabetes Tipo 2
O rendimento desportivo na resistência aeróbio é definido pela taxa de consumo de oxigénio (VO2max) e pelos níveis sanguíneos do limiar de lactato (15). A recuperação após o treino é definida por quatro princípios: reparação, rehidratação, reabastecimento e redução de inflamação e dor muscular. Os HC são responsáveis pela taxa de reabastecimento de glicogénio. O glicogénio, que é armazenado no tecido hepático e muscular, é a fonte de combustível predominante em treinos de intensidade moderada a alta. As concentrações de glicogénio muscular e hepático podem ser determinados a partir de biópsias de tecido (16).
Um dos mecanismos caraterísticos da DT2 é a presença de uma resistência insulínica periférica (NIDDM) (17). Essa resistência insulínica limita a captação de glicose nas células responsáveis pela glicólise durante o treino e a síntese de glicogénio no tecido hepático e muscular no pós-treino. Indivíduos com DT2 frequentemente exibem níveis elevados de lactato em associação com uma capacidade oxidativa aeróbia reduzida e uma diminuição do VO2max (18, 19). A síntese de glicogénio muscular e hepático em indivíduos com DT2 também estão limitadas (20, 21). Todos estes mecanismos traduzem numa maior fadiga cardiovascular (22).
No intestino delgado, diferentes tipos de HC possuem diferentes tipos de transportadores para a sua absorção. A glicose usa principalmente um transportador chamado transportador dependente de sódio (SGLT1) e transportador de glicose 2 (GLUT2) e a frutose é absorvida principalmente através de um transportador chamado transportador de glicose 5 (GLUT5) e GLUT2 (23, 24). SGLT1 é um transportador ativo secundário enquanto o GLUT5 é um transportador que usa difusão facilitada mediada (25). Estudos indicam que os níveis de SGLT1, GLUT2 e GLUT5 foram maiores em doentes com diabetes (24, 26) e consequentemente aumentam a absorção de açúcares na circulação sanguínea. Em conjunto com uma baixa captação celular periférica de glicose derivada de uma resistência insulínica, indivíduos com DT2 em repouso possuem uma hiperglicemia com uma frequência elevada (27).
Exercicio na Diabetes Tipo 2
Nos indivíduos com DT2, o risco de hipoglicémia induzida por exercício é relativamente baixa porque é possível haver um melhor controlo glicémico através do uso de protocolo dietético e/ou de treino. No entanto, aqueles que estão a realizar um protocolo de insulinoterapia (14), medicamentos hipoglicémicos (27, 28) ou até ter uma resistência do mecanismo de controlo hipoglicémico (10, 29, 30), podem estar em risco de hipoglicémia (28) e será necessário haver um reajuste ao nível de estratégias dietéticas e de treino.
Durante o treino, sendo que há a necessidade de haver a estimulação da neoglucogénese para responder às necessidades energéticas, existe uma inibição significativa da insulina (7, 31). Para haver uma captação celular durante o treino, o mecanismo predominante parece ser um mecanismo independente da ação da insulina chamado via mediada por contração muscular (32 - 34). Esse mecanismo é mediado por uma maior translocação dos níveis de GLUT4 para o sarcolema (membrana plasmática do tecido muscular) (35). Ao ultrapassar a via de mecanismo dependente da estimulação da insulina, o treino poderá melhorar o rendimento aeróbio no NIDDM. Após o treino, parece haver uma melhor sensibilidade à insulina (36 - 38) e embora tenha sido caraterizada extensamente (39), os mecanismos subjacentes permanecem ainda por explicar em detalhe (40).
Embora o exercício tenha muitos benefícios na diabetes, não é isento de riscos na qual pode haver situações em que os indivíduos com DT2 podem apresentar hipoglicémia e/ou hiperglicemia na fase peri-treino e pós-treino. Por exemplo, independentemente de protocolos dietéticos, as situações de hiperglicémia podem resultar de uma estimulação excessiva da neoglucogénese hepática (8 - 11) e as situações de hipoglicémia podem resultar de uma concentração elevada de insulina (14).
Recomendações de Hidratos de Carbono no Treino
Para não mitigar o rendimento aeróbio, durante treinos prolongados (≥30 min), para indivíduos em condições saudáveis, é recomendado uma fonte exógena de HC (41), especialmente em indivíduos com baixas reservas de glicogénio pré-treino (16). O principal tipo de HC que é ingerido em maior proporção no treino de resistência aeróbio é a glicose (42 - 44).
De forma a otimizar o rendimento aeróbio e a recuperação pós- treino em desportos de resistência aeróbio, é sugerido as seguintes recomendações de HC: i) na fase pré-treino, a ingestão deve corresponder a uma taxa de 1-4 g/kg/h em 1-4 horas antes do treino;
ii) na fase peri-treino, a ingestão é recomendada com uma dose de 30g de HC a partir dos 60 minutos com o aumento progressivo de acordo com a duração; iii) na fase pós-treino, a ingestão deve corresponder a uma taxa de 1,2 g/kg/h de massa corporal nas primeiras 4 horas (41 - 43).
De acordo com a literatura de uma relação dose-resposta entre a ingestão de HC e o rendimento de resistência em treinos aeróbios, estudos demonstraram que o uso de vários tipos de HC que utilizem múltiplos transportadores pode resultar num melhor rendimento desportivo em comparação com o uso único de um transportador de HC (42, 44).
Tipos de Hidratos de Carbono no Treino
Os HC que são normalmente utilizados em contexto desportivo são a glicose e frutose (glicose:frutose). A oxidação de HC durante o treino é parcialmente dependente da ingestão de HC exógenos. A glicose ingerida durante o treino é estabelecida a partir de uma relação dose- dependente com uma taxa de oxidação que atinge um pico de 1,0 g/ min (45).
Em comparação, a glicose tem uma taxa de oxidação mais alta do que a frutose (60 g/h vs. 30 g/h). Independentemente do tipo de HC, nenhum é capaz de ter uma taxa de oxidação superior a 60 g/h (42, 46). Houve sugestões de que a menor taxa de oxidação da frutose é devido a uma menor taxa de absorção intestinal (47, 48) e da necessidade de ser convertida em glicose e lactato no fígado (49). Durante o treino, recomenda-se escolher um HC que seja rapidamente oxidado para que não se acumule no intestino (50). Se a frutose for ingerida em grandes quantidades (≥1 g/kg) num curto espaço de tempo pode resultar em desconforto gastrointestinal. Quando a frutose e glicose são ingeridos simultaneamente durante o treino, as taxas de oxidação de HC exógenos podem atingir valores de pico mais altos (48, 51) com uma menor ocorrência de desconforto gastrointestinal (50). Portanto, é recomendado que a frutose seja ingerida com outro tipo de HC de oxidação rápida.
Enquanto em repouso a frutose em excesso promove a via da lipogénese (52), durante o treino é redirecionado para ser convertido em glicose e lactato e entrar no ciclo de Cori (53, 54). Níveis reduzidos de glicogénio parecem induzir a frutose a entrar na via do ciclo de Cori durante o treino, refletindo o plano das reservas de glicogénio no fluxo de vias metabólicas da frutose (54). A frutose (após a sua conversão no fígado) é direcionadas para as vias de oxidação no tecido muscular que fornece substrato de energia adicional quando a taxa de glicólise é limitante (51). A frutose possui um índice glicémico substancialmente mais baixo do que a glicose (23 vs. 100) (55).
Rácio Glicose:Frutose
A ingestão combinada poderá ser uma estratégia mais adequada para ajudar a maximizar o rendimento de resistência durante sessões prolongadas de treinos de moderada a alta intensidade, acelerar a reposição de glicogénio hepático e muscular pós-treino e reduzir as queixas gastrointestinais que são comuns após a ingestão de HC (3,50,56). No entanto, a ingestão combinada de glicose:frutose, em comparação com a ingestão de glicose isolada, não acelera ainda mais a recuperação do glicogénio muscular pós-treino (57).
Existem várias recomendações para a relação glicose:frutose no treino. O rácio mais recomendado e referenciado é de 2:1 e pode ser usado em todas as durações e fases do treino, mas parece que é mais benéfico para treinos com duração de até 2h (46, 58). Existe também estudos que mostram que a ingestão de frutose é benéfica antes do treino prolongado, pois fornece uma fonte de HC para os músculos em contração sem a ocorrência de uma hipoglicémia transitória e atraso da fadiga (59, 60).
Não existem, no entanto, ainda estudos acerca das recomendações de proporções dos tipos de HC antes, durante e/ou após o treino para indivíduos com DT2 (43).
CONCLUSÕES
De acordo com a fisiopatologia da NIDDM, existe uma maior expressão dos transportadores dos HC no intestino e uma menor captação celular de HC derivado principalmente de uma resistência insulínica periférica. Estes mecanismos irão implicar em níveis elevados de lactato (18), uma diminuição do VO2max (19) e uma diminuição dos níveis de glicogénio muscular e hepático (20, 21). Estas particularidades irão induzir a um baixo rendimento aeróbio e recuperação pós-treino em indivíduos com DT2 (22).
Os HC exógenos têm um papel particularmente importante para a oxidação de HC no treino, especialmente nos indivíduos com baixos níveis de glicogénio na fase pré-treino. A ingestão combinada e a utilização de um rácio de glicose:frutose é a melhor estratégia para melhorar o rendimento e recuperação desportiva (56). As recomendações atuais para a população em geral em exercícios aeróbios de duração prolongada é de 2:1 (glicose:frutose) (46, 58). Devido a situações de hipoglicémias e/ou hiperglicémias que os indivíduos com DT2 podem apresentar durante o treino aeróbio (27, 28), seja devido por protocolos de insulinoterapia, medicamentos hipoglicémicos ou alterações do mecanismo de controlo interno (12, 14, 28 - 30, 61), as recomendações de HC atuais na fase peri-treino e pós-treino poderão estão desajustadas para esta população específica.
Com base nos aspetos bioquímicos da frutose durante o treino (52 - 55), este tipo de HC, utilizado em conjunto com a glicose, poderá ser considerado em indivíduos com DT2 com baixos níveis de glicogénio para fornecer um substrato de energia adicional ao melhorar a taxa de oxidação de HC, maximizar a reposição de glicogénio pós-treino e também ajudar no controlo glicémico através de uma conversão em glicose.
Perspetivas futuras sugerem explorar novas estratégias dietéticas dando ênfase à proporção de frutose em relação à glicose e definir o seu rácio ideal nas diferentes fases de treino aeróbio na população com NIDDM. Poderá haver também a necessidade de realizar avaliações de subgrupos de acordo com diversos fatores que podem interferir na regulação glicémica (protocolo de insulinoterapia, categoria de medicamento hipoglicémico, tipo e duração de treino, nível de concentração de glicogénio, entre outros). Para cada um dos subgrupos poderá ser definido modelos estratégicos de rácios de HC. Futuros estudos deverão verificar se existe alterações significativas dos parâmetros de avaliação de rendimento aeróbio, parâmetros de avaliação de recuperação e dos parâmetros de avaliação dos valores glicémicos em relação ao rácio de glicose:frutose (por exemplo: rácio 2:1 vs. rácio 1:1). Por outras palavras, futuros estudos sugerem verificar se existe:
associação entre o rácio glicose:frutose e o VO2max;
associação entre o rácio glicose:frutose e os valores de lactato;
associação entre o rácio glicose:frutose e os níveis de concentração do glicogénio hepático e muscular;
associação entre o rácio glicose:frutose e os valores glicémicos.