INTRODUÇÃO
A evolução observada nos últimos anos nas opções terapêuticas disponíveis - farmacológicas e não só - para o tratamento, prevenção e reabilitação dos doentes exige dos profissionais de saúde, independentemente das suas áreas de intervenção, uma constante atualização de conhecimentos e competências refletidas nas suas práticas profissionais, com vista a garantir a efetividade, eficiência e segurança na utilização dessas opções terapêuticas, promovendo uma maior qualidade de vida para os doentes (1, 2).
Neste contexto de constante evolução, a oferta de novos medicamentos, em diversas áreas terapêuticas, tornou-se crescente e tem contribuído para importantes ganhos em saúde por parte da população (3, 4).
No entanto, os medicamentos não apresentam apenas benefícios. Cada medicamento acarreta riscos decorrentes da sua utilização, isoladamente ou por interação com outras substâncias, riscos esses que se refletem em problemas de segurança para os doentes ou até em diminuição da eficácia dos medicamentos (3, 5, 6). As interações podem ocorrer com outros medicamentos (interação medicamento-medicamento), com uma doença (interação medicamento-doença) ou até mesmo com alimentos/nutrientes (interação medicamento-alimento/nutriente). Esta última, interação medicamento-alimento (IMA) resulta de uma relação física, química, fisiológica ou fisiopatológica entre um medicamento e um alimento (5, 6). Embora seja um fenómeno pouco estudado, o seu potencial é bastante elevado, considerando que a maior parte dos medicamentos são administrados por via oral, o que em si mesmo é um fator de risco para estas interações tornando-se mais relevantes em medicamentos cuja janela terapêutica seja reduzida ou em medicamentos de menor biodisponibilidade, mais suscetíveis aos efeitos das alterações na sua farmacocinética (absorção, distribuição, metabolismo (biotransformação) e excreção de um fármaco e farmacodinâmica (efeitos fisiológicos dos fármacos nos organismos) provocadas pelos alimentos (7 - 9).
Vários fatores podem desencadear uma IMA, como (1) a natureza dos nutrientes ou componentes alimentares, (2) características físico-químicas do próprio medicamento, (3) o tempo de trânsito nos diferentes segmentos do trato gastrointestinal, (4) o tempo de contato com as vilosidades intestinais, (5) os mecanismos de absorção intestinal, (6) características dos próprios doentes, entre outros (8, 10). O conhecimento de todas as particularidades associadas à utilização de um medicamento tem um enorme potencial de crescimento, nomeadamente no que diz respeito às incompatibilidades físico-químicas entre os medicamentos e os alimentos, para que baseada na evidência científica se tomem as decisões que possam minimizar a ocorrência de possíveis interações entre os mesmos. Os profissionais de saúde, em particular os nutricionistas e os farmacêuticos e os técnicos de farmácia podem deparar-se no decurso da sua prática profissional com a dúvida se é possível a associação de determinado medicamento com alimentos e/ou refeições específicas. Estas questões podem inclusivamente ser colocadas pelos próprios doentes. A evidência disponível sobre a temática mostra que os profissionais de saúde têm, de forma geral, pouco conhecimento sobre estas interações (11 - 13).
Por isso é imprescindível o reconhecimento das IMA por parte destes profissionais, de forma a melhor aconselhar e informar os doentes, controlando os riscos dessas interações, e alertando-os para possíveis consequências. Neste contexto, este estudo tem como objetivo caracterizar o conhecimento dos profissionais de saúde, particularmente das áreas da nutrição e da farmácia sobre interações entre medicamentos e alimentos, com recurso a um inquérito por questionário.
METODOLOGIA
Foi realizado um estudo observacional, transversal e descritivo, com uma abordagem qualitativa dirigido a profissionais de saúde - nutricionistas e profissionais de farmácia (farmacêuticos e técnicos de farmácia) que no exercício da sua atividade profissional, podem aconselhar medicamentos e/ou alimentos, bem como cuidados particulares na utilização combinada dos mesmos, como por exemplo tomar um medicamento às refeições ou fora destas.
A amostra foi selecionada por conveniência entre os profissionais que exercem a sua atividade na região de Lisboa. O instrumento utilizado para a recolha de dados foi um inquérito por questionário, desenvolvido especificamente para o estudo, após revisão de literatura. Previamente à sua disponibilização aos participantes no estudo, o questionário foi submetido a um pré-teste, do qual não resultaram alterações significativas à sua estrutura e conteúdo. A disponibilização do questionário aos participantes procedeu-se de duas formas: distribuído em formato impresso em farmácias comunitárias e clínicas/ consultórios de nutrição e disponibilizado online entre janeiro e março de 2018. A versão online foi desenvolvida através da aplicação IPLNet Inquéritos suportada no software de uso livre "LimeSurvey”. Em termos de estrutura, o questionário foi dividido em duas partes: uma primeira, constituída por cinco questões com vista à caracterização sociodemográfica da amostra, e uma segunda parte constituída por 28 questões/afirmações, referentes a IMA. Para cada questão/ afirmação foram dadas três opções de resposta - “sim”, “não” e “não sei”, estando previamente definida para cada questão/afirmação a opção associada a um conhecimento adequado relativamente à interação descrita - opção correta, bem como a opção associada a um conhecimento inadequado/incorreto - opção incorreta, revelando a opção “não sei”, um défice de conhecimento sobre a interação descrita. A todos os participantes foram apresentados os objetivos do estudo, bem como garantida a confidencialidade e anonimato das respostas dadas, no cumprimento dos princípios éticos da investigação com pessoas. Para a análise estatística, as variáveis qualitativas foram caracterizadas através de frequências absolutas e relativas e as variáveis numéricas por medidas de tendência central, como a mediana, quando aplicável, média e desvio-padrão. Para a identificação de diferenças entre grupos para a mesma variável, recorreu-se ao teste t-Student, assumindo-se uma significância de 5% e para a identificação de correlações entre variáveis, ao coeficiente rSpearman, também com uma significância de 5%. Os resultados obtidos foram analisados e tratados estatisticamente com recurso ao software estatístico SPPS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 22.0. O presente estudo foi apreciado pela Comissão de Ética da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, ESTeSL.
RESULTADOS
Caracterização da Amostra
A amostra foi constituída por 105 participantes, distribuídos por três grupos profissionais: 49 Farmacêuticos (46,7%), 33 Técnicos de Farmácia (31,4%) e 23 Nutricionistas (21,9%), com diferenças significativas entre sexos (p=0,012). Dos participantes no estudo 72 (68,6%) eram do sexo feminino com uma idade média de 32,5±11,1 anos e uma mediana de 28,0 anos. Já os homens apresentaram uma idade média de 34,3±10,0 anos e uma mediana de 29,0 anos. As diferenças não foram estatisticamente significativas (p=0,417). Em termos de formação académica, 54 (51,4%) participantes eram detentores do grau de Mestre (6 técnicos de farmácia -5,7%, 36 farmacêuticos -34,2%, 12 nutricionistas -11,4%) com uma prevalência superior nos participantes do sexo masculino, embora sem significado estatístico (p=0,394). O tempo de experiência profissional dos participantes no estudo foi muito diversificado, variando entre um e 39 anos, num valor médio de 8,2±9,8 anos, apresentando a maioria (63,8%) até cinco anos de experiência profissional. As diferenças entre homens e mulheres foram estatisticamente significativas (p=0,025). A (Tabela 1) apresenta a caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes no estudo.
Conhecimento Geral Relativo a Interação Medicamento-Alimento
Relativamente ao conhecimento sobre IMA, para o total das 28 questões/afirmações, os nutricionistas apresentam um conhecimento superior aos farmacêuticos e técnicos de farmácia identificando a opção correta em 14,8±7,3 questões/afirmações, sendo esses valores de 13,4±6,2 e 10,4±4,8 para os farmacêuticos e técnicos de farmácia, respetivamente, (Tabela 2). Em termos de mediana, esta corresponde a 17,0 para os nutricionistas, 13,0 para os farmacêuticos e 10,0 para os técnicos de farmácia. Estas diferenças foram estatisticamente significativas (p=0,018). Considerando a idade e o tempo de experiência profissional dos participantes e a possível influência no conhecimento sobre IMA, verifica-se uma correlação positiva fraca (0,214) entre a idade e o conhecimento (p=0,028) mas não entre o tempo de experiência profissional e o conhecimento (p=0,124).
Conhecimento Específico por Categoria de Interação Medicamento-Alimento
Relativamente ao conhecimento específico sobre interações entre grupos farmacoterapêuticos e alimentos ou nutrientes, para as interações entre medicamentos anti-infeciosos e alimentos/nutrientes (11 questões/afirmações), são os farmacêuticos que apresentam um conhecimento superior, identificando a opção correta em 5,5±2,5 questões/afirmações. O grupo dos técnicos de farmácia apresenta o valor mais baixo, identificando a opção correta em 4,6±2,0 questões/ afirmações. No entanto, estas diferenças não são estatisticamente significativas (p=0,254). Para esta categoria de IMA, existe correlação positiva entre o tempo de experiência profissional e o conhecimento (0,189) e entre a idade e o conhecimento (0,262), ambas estatisticamente significativas (p=0,05 e p<0,01, respetivamente). No entanto, de facto, para os três grupos profissionais, o conhecimento sobre esta categoria de IMA é limitado. E embora algumas interações sejam relativamente bem conhecidas (e.g. interação entre tetraciclinas e leite/derivados), para outras o conhecimento é consideravelmente inferior (e.g. amoxicilina e alimentos em geral) - dados não apresentados.
Para as interações entre medicamentos que atuam no Sistema Nervoso Central (SNC) e alimentos/nutrientes (seis questões/afirmações), são os nutricionistas que apresentam um conhecimento superior, identificando a opção correta em 3,1±1,5 questões/afirmações. O grupo dos técnicos de farmácia apresenta o valor mais baixo, identificando a opção correta apenas em 1,6±1,5 questões/afirmações. Estas diferenças são estatisticamente significativas (p<0,01). Para esta categoria de IMA, não existe correlação nem entre o tempo de experiência profissional e o conhecimento nem entre a idade e o conhecimento dos participantes. Para algumas IMA potencialmente relevantes do ponto de vista clínico dentro desta categoria (e.g. interação entre a fenitoína e alimentos em geral ou entre levodopa e dieta hiperproteica) menos de metade dos farmacêuticos e técnicos de farmácia revelaram um conhecimento adequado, sendo esse valor de 69,6% e 52,2%, respetivamente no grupo dos nutricionistas - dados não apresentados.
Para as interações entre medicamentos que atuam no aparelho cardiovascular e alimentos/nutrientes (sete questões/afirmações), são os nutricionistas que apresentam um conhecimento superior, identificando a opção correta em 4,3±2,1 questões/afirmações. O grupo dos técnicos de farmácia apresenta o valor mais baixo, identificando a opção correta apenas em 2,6±1,4 questões/afirmações. Estas diferenças são estatisticamente significativas (p<0,01). Também para esta categoria de IMA, não existe correlação nem entre o tempo de experiência profissional e o conhecimento nem entre a idade e o conhecimento dos participantes.
Para as interações entre medicamentos que atuam no sangue/ medicamentos antialérgicos e alimentos/nutrientes (duas questões/ afirmações) são os farmacêuticos que identificam mais opções corretas - 1,1±0,7 e os técnicos de farmácia que identificam menos opções corretas - 0,85±0,8, não sendo estas diferenças estatisticamente significativas (p=0,339). Para esta categoria de IMA, não existe correlação nem entre o tempo de experiência profissional e o conhecimento nem entre a idade e o conhecimento dos participantes. O conhecimento nesta categoria é particularmente relevante em interações como a que se verifica entre a varfarina e a vitamina K - dados não apresentados. Por fim, para as interações entre medicamentos que atuam no sistema circulatório e alimentos/ nutrientes (duas questões/afirmações), são os nutricionistas que apresentam um conhecimento superior, identificando a opção correta em 1,1±0,8 questões/afirmações. O grupo dos técnicos de farmácia apresenta também para esta categoria o valor mais baixo, identificando a opção correta em 0,8±0,7 questões/afirmações. Estas diferenças não são estatisticamente significativas (p=0,202). Para esta categoria de IMA, não existe correlação nem entre o tempo de experiência profissional e o conhecimento nem entre a idade e o conhecimento dos participantes.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONCLUSÕES
Com base nos resultados obtidos, os profissionais de saúde, neste caso - profissionais da área da nutrição e da farmácia - revelam claramente lacunas no conhecimento sobre interação entre medicamentos e alimentos/nutrientes. Estes resultados, reforçam as evidências reunidas por estudos anteriores (11, 12), em que se verificou que não só os profissionais de saúde têm pouco conhecimento sobre este tema, como desconhecem as particularidades químicas da interação entre medicamentos e alimentos.
Dos grupos profissionais que participaram no estudo, e conforme os resultados apresentado na Tabela 2, os nutricionistas revelaram um nível de conhecimento superior aos profissionais da farmácia, com uma taxa de resposta correta de 52,9%, ou seja das 28 questões/ afirmações apresentadas no questionário, este grupo profissional assinalou corretamente 14,8±7,3 questões/afirmações, enquanto os farmacêuticos fizeram-no em 13,4±6,2 e por último, os técnicos de farmácia, demonstraram um nível de conhecimento substancialmente inferior, com uma taxa de conhecimento global de 37,7%, assinalando apenas 10,4±4,8 questões/afirmações corretas.
Os dados obtidos neste estudo revelam que há um conhecimento superior em função da idade dos profissionais e uma possível influência do tempo de experiência profissional, embora sem significado estatístico. Globalmente, e considerando a (baixa) dimensão da amostra, as diferenças encontradas não tiveram significado estatístico, nem ao nível do conhecimento global (p=0.78), nem no nível de conhecimento específico por categoria de IMA. Ainda assim, os dados obtidos e agora apresentados permitem caracterizar algumas lacunas que estes profissionais apresentam sobre este tema. Os resultados demonstram que será necessário tomar medidas urgentes para adequar o conhecimento desses profissionais sobre este tema, pois segundo o código deontológico da ordem dos farmacêuticos (artigo 5.º capítulo II, e artigo 8.º capitulo I), os profissionais da farmácia são os grandes responsáveis pela promoção do uso seguro e racional dos medicamentos, assegurando que os doentes tenham acesso aos medicamentos corretos, na dose certa, no tempo adequado, e com associações adequadas, é da responsabilidade de cada um desses profissionais zelar para a saúde e o bem-estar do doente, promovendo o direito de acesso a um tratamento com qualidade, eficácia e segurança (14). Assim como os profissionais de farmácia, é indispensável que os nutricionistas tenham um amplo conhecimento sobre os fatores que potencialmente podem interferir no tratamento dos doentes, tais como hábitos alimentares, por exemplo, para que possam prevenir a ineficácia terapêutica, e desnutrição nos doentes (15). Porém, as conclusões deste trabalho aplicam-se apenas a esta amostra, não podendo ser generalizados às classes profissionais em estudo. Seria importante que estudos próximos procurassem abranger uma maior amostra, idealmente com algum tipo de estratificação e ainda que avaliassem não só o conhecimento per si sobre as IMA como ainda a prática que resulta desse conhecimento e o impacto que tem no uso seguro e racional do medicamento. É necessário sensibilizar os profissionais sobre a importância do conhecimento dessas interações e implementar ações para a segurança dos doentes na terapia medicamentosa. Formação contínua a estes profissionais e informações atualizadas podem ser ferramentas importantes para assegurar o uso seguro e racional de medicamentos, enquanto tecnologias de saúde, e evitar e diminuir os riscos das possíveis interações entre essas substâncias e alimentos.