INTRODUÇÃO
As alergias alimentares (AA) podem ser definidas como uma resposta exacerbada do sistema imunitário contra proteínas alimentares, que são reconhecidas como um perigo para o organismo (1). Estas são classificadas de acordo com o mecanismo patológico em três tipos: as mediadas por imunoglobulinas E (IgEs); as não mediadas por IgEs e ainda as mistas (2).
Nos últimos anos, a sua prevalência, assim como de outras doenças alérgicas, aumentou significativamente, em particular nos países desenvolvidos. São vários os fatores de risco identificados e propostos como causas do desenvolvimento desta doença, como por exemplo as alterações na integridade da barreira cutânea e na microbiota intestinal. Contudo, a sua natureza multifatorial dificulta a elucidação das causas envolvidas nesta patologia (3).
Curiosamente há evidência que a biodiversidade desempenha um papel importante no desenvolvimento da tolerância imunológica aos alergénios ambientais e ali- mentares: crescer no campo está associado a um menor risco de desenvolver asma e doenças alérgicas, o que está associado a uma estimulação imunológica inespecífica precoce devido, entre outras coisas, à maior biodiversidade microbiana no ar deste habitat (4).
Eliminar da dieta o alergénio responsável pela resposta alérgica e todos os alimentos onde este pode estar presente é a principal forma de gestão da doença. No entanto, esta estratégia não protege o doente de eventuais reações alérgicas acidentais, além de afetar negativamente a qualidade de vida destes indivíduos a nível nutricional, psicológico, social e financeiro. Por estas razões, o desenvolvimento de fármacos capazes de reverter esta condição tem sido um dos principais alvos de trabalho dos investigadores, particularmente na área da Imunoterapia com alergénios (AIT) contudo, ainda só um medicamento, destinado a indivíduos com alergia ao amendoim, foi aprovado (5).
Assim, este trabalho foi desenvolvido com o intuito de ser um documento de trabalho dirigido aos profissionais de saúde em Portugal, redigido com base na mais recente evidência científica. Além disto, desenvolveu-se, inclusivamente, uma sugestão de fluxograma para acompanhamento pelos profissionais de saúde das etapas que podem constituir o diagnóstico médico das AA.
METODOLOGIA
Pubmed e Web of Science foram as bases de dados consultadas entre janeiro e março de 2022 para a execução deste trabalho. “Food allergy” foi a palavra-chave utilizada na primeira fase de pesquisa, cujo objetivo foi selecionar alguns artigos de revisão que fizessem uma apresentação global do tema. Após a análise desses artigos e tomada a decisão de abordar neste trabalho exclusivamente as alergias alimentares mediadas por IgEs, iniciou-se o segundo momento de pesquisa. Além de “food allergy” recorreu-se aos termos “diagnosis”, “treatment” “pathogenisis”, “prevention” e “elimination diets”. O espaço temporal de pesquisa foi limitado aos trabalhos publicados nos últimos 5 anos, tendo em conta a atualidade do tema e a elevada quantidade de informação publicada. Por fim, a publicação numa revista científica cujo fator de impacto pertença ao quartil Q1 foi o critério utilizado para a aceitação dos artigos. Ainda assim, alguns artigos de revistas científicas pertencentes ao quartil Q2 foram aceites atendendo à relevância da sua informação. Desta forma, foram consultados um total de 63 artigos, dos quais 41 foram utilizados para a redação deste revisão e, 22 foram excluídos.
Alergias Alimentares: Epidemiologia e Breve Contextualização
As AA afetam quase 10 % da população mundial e a sua prevalência tem aumentado significativamente nos últimos anos, em particular nos países desenvolvidos (6). Estima-se que nos EUA, 4% a 6% das crianças e 4% dos adultos têm alguma AA, e que na Europa, a doença atinge cerca de 17 milhões de pessoas dos quais, 3,5 milhões têm menos de 25 anos (1, 7). Os ovos, leite e derivados, amendoins, frutos secos, peixe, marisco, trigo, soja e o sésamo são responsáveis por 90% das reações. Esta é uma doença que, em regra, surge nas crianças e que, por norma, o organismo acaba por conseguir ultrapassar, contudo a alergia a alguns alimentos como o amendoim e os frutos secos mantém-se, frequentemente, ao longo do tempo (1).
De realçar que as AA são mais comuns em crianças do que em adultos e que a gestão das mesmas difere substancialmente com a idade e fase da vida. Existem muitos desafios em estimar a prevalência de AA, uma vez que a AA auto relatada geralmente superestima a prevalência em comparação com estimativas baseadas num diagnóstico médico (8).
Mecanismo Fisiopatológico das Alergias Alimentares IgE Mediadas
Em indivíduos com AA constata-se um fenómeno designado de sensibilização, que ocorre geralmente por via oral, mas também por via cutânea e pulmonar, ainda que não seja tão frequente (3, 9). Nesta situação, após a passagem do antigénio pelo epitélio ocorre a libertação de citocinas pro-inflamatórias denominadas alarminas (IL-25, IL-33 e TSLP), que promovem o início de uma resposta imunológica do tipo Th2 (10). Esta, regulada por diversas citocinas pró-inflamatórias, nomeadamente, a IL-4, IL-5, IL-9 e IL-13, caracteriza-se pela diferenciação das células T naïve em células T helper 2, pela recombinação dos linfócitos B para a classe das IgEs e pelo recrutamento dos mastócitos para os tecidos (11, 12). As IgEs produzidas são libertadas na corrente sanguínea e ligam-se ao respetivo recetor (FcεRI) presente à superfície dos mastócitos e dos basófilos, ativando-o. Numa futura exposição ao alergénio, este estabelece ligação cruzada com as IgEs presentes à superfície das células referidas anteriormente, induzindo a sua desgranulação e culminando na libertação de mediadores inflamatórios, como a histamina, responsáveis pela resposta alérgica imediata (2, 9, 10).
Fatores de Risco
Diversos aspetos têm sido apontados como fatores de risco para o desenvolvimento das AA, sendo a idade, a influência do meio ambiente, a predisposição genética, as comorbilidades atópicas, a dieta, a microbiota, a higiene, o momento e via de exposição ao alimento e a integridade da barreira epitelial considerados os mais importantes e responsáveis pelo acentuado aumento de casos desta patologia (3, 9, 13). De seguida, apresenta-se uma análise detalhada relativamente ao papel da integridade da pele e da microbiota intestinal, uma vez que um elevado número de estudos tem permitido atribuir uma forte associação entre estes dois fatores de risco e o desenvolvimento de AA.
Integridade da Pele
A exposição cutânea a pequenas doses de alergénios alimentares previamente à sua ingestão oral tem revelado ser um fator relevante para o desenvolvimento de AA (15). Quando a integridade da pele se encontra alterada, a penetração dos alergénios através da mesma está facilitada, o que favorece a ocorrência do processo de sensibilização (9, 15).
Marcha Atópica é a designação dada ao desenvolvimento de doenças alérgicas como as AA, a asma e a rinite alérgica, que progrediram de uma situação inicial de Dermatite Atópica (DA). Segundo diversos estudos e enquadrados neste conceito, indivíduos com DA apresentam alto risco de desenvolverem AA, sendo a sua prevalência nesta população de 40% (16). Um outro estudo revelou ainda que 16,2% das crianças com AA têm DA e que este valor é superior na faixa etária especifica dos 0 aos 2 anos aproximando-se dos 22,7% (17).
No entanto, é importante referir que a sensibilização cutânea pode desencadear-se numa pele que não apresente lesões, mas cuja função barreira se encontra alterada (14). Por fim, a exposição a poluentes e a detergentes capazes de danificar as thight junctions, a exposição a Alternaria alternata, a ácaros e a Staphiloccocus aureus presentes no pó da casa, facilitam o início do processo inflamatório contra as proteínas alimentares (13, 18).
Microbiota Intestinal
A microbiota intestinal tem demonstrado ter um papel imunorregulador importante e, numa situação de disbiose o desenvolvimento de AA parece ser potenciado. Neste sentido, vários têm sido os estudos realizados na tentativa de perceber as diferenças existentes entre indivíduos alérgicos e não alérgicos no que se refere aos microrganismos colonizadores do intestino. Contudo, os resultados que são obtidos variam muito, o que poderá ser em parte explicado pelas diferenças existentes entre os vários estudos, mas, pode por outro lado refletir que uma microbiota saudável não tem uma composição fixa, estando dependente do equilíbrio entre as várias espécies (19). Na Tabela 1 encontram-se, em síntese, os resultados obtidos de estudos realizados recentemente, que permitem também concluir que indivíduos alérgicos apresentam uma microbiota com menor diversidade e uma redução no número de espécies de bactérias produtoras de ácidos gordos de cadeia curta, como o butirato, consequência da dieta ocidental tipicamente rica em alto teor de gorduras e baixa ingestão de fibras (20, 21). Estes medeiam o efeito imunorregulador da microbiota e têm sido encontradas baixas concentrações destes compostos em pessoas com AA (22).
Testes de Diagnóstico
A obtenção da história clínica do doente é o primeiro passo para o diagnóstico da doença (23). Se esta for consistente com uma possível AA, o passo seguinte envolve a realização de testes que detetam a presença de IgEs específicas para o alergénio (sIgE), como é o caso do Skin Prick Test e a determinação da concentração plasmática das sIgE (23, 24). Importa referir que estes testes são apenas indicadores de sensibilização, e por isso, nunca poderão ser utilizados para diagnóstico na ausência da história clínica (23). Além disto, estes dois métodos podem gerar resultados inconclusivos e discordantes com a história clínica. Nessas situações e perante um baixo risco de reação alérgica, procede-se à realização de uma Prova de provocação oral ( PPO) que é, até ao momento, o único método definitivo de diagnóstico, mas que apresenta um baixo perfil de segurança e que continua a ser o padrão de ouro dos testes de AA (8, 24).
O Basophil Activation Test (BAT) e o Mast Cell Activation Test (MAT) são dois testes in vitro que ainda não estão aprovados para uso clínico, mas que têm demonstrado evidências de serem uma alternativa promissora à PPO, como testes confirmatórios (23, 25, 26). Através da citometria de fluxo, estes testes avaliam a expressão de marcadores de ativação à superfície destas células, com destaque para o CD63, e que se expressam exclusivamente em indivíduos alérgicos (23, 24). No caso específico de alergias a frutos secos e sementes de sésamo, o BAT apresentou uma precisão de 97 a 100% e permitiu reduzir entre 5 a 15% da PPO realizados, dos quais, 50 a 75% eram positivos, sendo um método muito mais seguro para o doente (26).
Em suma, parece que o diagnóstico depende da combinação do conhecimento da fisiopatologia e da epidemiologia com a história do doente e os resultados dos exames. É claramente possível haver sensibilização sem reatividade clínica e vice-versa (27).
Na Figura 1 é apresentada uma sugestão de fluxograma para acompanhamento pelos profissionais de saúde das etapas que podem constituir o diagnóstico médico das AA.
Prevenção
A introdução tardia de alimentos potencialmente alergénicos na dieta das crianças foi a estratégia defendida durante muito tempo para prevenir AA. No entanto, a falta de evidência científica capaz de demonstrar o efeito protetor desta medida, assim como os resultados obtidos no ensaio clínico Learning Early about Peanut Allergy, em 2015, levaram a grandes alterações na abordagem à prevenção desta doença nos últimos anos (28).
Uma revisão sistemática publicada em 2021, analisou 28 recomendações sobre a prevenção de AA em crianças. Constata-se que a introdução precoce dos alergénios alimentares na dieta da criança e uma dieta materna e infantil isenta de restrições são os pilares das recomendações mais recentes (29). Em 2020, a Academia Europeia de Alergia e Imunologia Clínica fez uma atualização da sua orientação publicada em 2014 e que não consta da revisão sistemática anteriormente analisada. As duas principais alterações efetuadas relativamente a essa versão são a recomendação de incluir na dieta complementar o ovo cozido até ao primeiro ano de vida e de introduzir o amendoim entre os 4 e os 11 meses de idade, se a prevalência de alergia ao mesmo for muito alta na população (30, 31). Relativamente aos restantes alergénios major, não é feita qualquer referência quanto à melhor altura para se proceder à sua introdução na dieta infantil (30, 31).
Dietas de Eliminação e o seu Impacto na Saúde
Nas dietas de eliminação, o alergénio responsável pela resposta alérgica e todos os alimentos onde este possa estar presente são retirados da dieta do individuo. Estas são, até ao momento, a principal forma de controlo e gestão das AA, pois são a única forma de evitar a ocorrência de uma reação alérgica (31). A leitura de rótulos alimentares, o risco associado às refeições fora de casa e o perigo de possíveis contaminações cruzadas são algumas das dificuldades enfrentadas diariamente por estas pessoas (33).
Além disto, a implementação destas dietas não é isenta de riscos nutricionais para o doente (34). A população pediátrica requer especial atenção, pela sua inerente suscetibilidade e por ser a mais afetada por este tipo de doenças. Alterações no desenvolvimento cognitivo e motor, impacto no crescimento, deficiências em micronutrientes e dificuldades de alimentação são alguns dos problemas que com mais frequência são reportados (32, 33). O caso específico de mães a amamentar crianças com AA requer uma avaliação muito rigorosa da possível relação causal entre a amamentação e os sintomas sugestivos de AA. Isto é importante porque a adoção de dietas de eliminação afeta, não só a composição nutricional do leite materno, mas também o aporte nutricional da mãe (35). Por estes motivos, um acompanhamento nutricional personalizado é essencial nestes casos, para assegurar que todas as necessidades nutricionais em função da faixa etária do doente são devidamente satisfeitas com alternativas alimentares e suplementação adequadas a cada situação (31-34).
Tratamento
O único medicamento atualmente aprovado para o tratamento das AA, o Palforzia, enquadra-se na Imunoterapia com Alergénios (AIT) e foi aprovado pela Food and Drug Administration em janeiro de 2020 nos Estados Unidos da América, e mais tarde na Europa, a 17 de dezembro do mesmo ano pela European Medicines Agency, estando indicado para crianças dos 4 aos 17 anos alérgicas ao amendoim, mas que poderá ser continuado depois de estas atingirem os 18 anos (36). Aquele induz a dessensibilização em indivíduos alérgicos e, reduz a severidade das reações alérgicas que ocorrem após exposição ao alergénio, contudo não permite curar a doença. Por isso, o consumo de amendoim deve ser evitado pelas crianças que se encontram em tratamento (36, 37).
ANÁLISE CRÍTICA
O progresso alcançado pela comunidade científica na descoberta e compreensão das razões que têm motivado o aumento do número de casos de AA tem sido notável. Ainda assim, o conhecimento existente não é suficiente para estabelecer relações causa-efeito. Aliás, a recente alteração do paradigma em torno da prevenção evidencia que a doença está longe de ser totalmente compreendida. A assistência e orientação médica e nutricional individualizada têm-se revelado fundamentais na minimização dos efeitos causados pela evicção dos alimentos alergénicos na saúde. Em termos de terapêutica, a aprovação do Palforzia, em 2020, foi efetivamente um acontecimento revolucionário.
Em suma, as AA são uma patologia que requerem investigação contínua e aprofundada dos mecanismos em torno da sua etiologia, pois desta forma, a implementação de medidas de prevenção adequadas, bem como o desenvolvimento de novos fármacos para o combate desta doença serão melhor sucedidos, sendo desta forma possível reduzir, respetivamente, a morbilidade e as repercussões geradas no dia a dia destes doentes.