INTRODUÇÃO
A articulação entre políticas sociais de saúde e de alimentação e nutrição são fundamentais para a promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e impactam diretamente na operacionalização e na efetivação de ações que priorizam a garantia deste direito no Brasil e no mundo (1). No Brasil, os Restaurantes Populares (RPs) são estabelecimentos geridos pelo poder público que se caracterizam pela comercialização de refeições prontas, nutricionalmente equilibradas, sanitariamente seguras, a preços acessíveis, com o intuito de garantir qualidade da alimentação de pessoas/famílias socialmente vulneráveis e em condição de insegurança alimentar e nutricional (2).
Deste modo, os RPs apresentam-se como instituições públicas de grande importância, atuando como dispositivos favoráveis à promoção do DHAA (3), principalmente, quando se considera o impacto da alimentação na vida humana por razões biológicas, afetivas, psicológicas e socioculturais e as difíceis condições socioeconómicas das populações mais vulneráveis. Neste contexto, os RPs tornam-se opções viáveis para obtenção de refeições prontas, seguras e de qualidade, organizando-se como uma política pública de acesso à alimentação e de garantia da segurança alimentar, integrando uma rede de proteção social relevante nas cidades brasileiras (2, 3).
A elaboração de menus para estes restaurantes, por sua vez, deve seguir os princípios básicos das ciências da nutrição, considerando quantidade, qualidade, harmonia e adequação. Além disso, devem- se priorizar alimentos “in natura” e minimamente processados, com a mínima adição de sal e açúcar, devido ao maior valor nutricional destes alimentos (4).
Deste modo, os RPs, assim como as demais Unidades de Alimentação e Nutrição (UAN) têm a finalidade de disponibilizar refeições nutricionalmente equilibradas com bom padrão higio-sanitário, contribuindo para a manutenção e/ou recuperação da saúde pública, auxiliando no desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis no contexto da educação alimentar e nutricional (4, 5).
Partindo destes conceitos, torna-se relevante a avaliação dos menus dos RPs, com o intuito de colaborar com os gestores de UAN na otimização da oferta de refeições adequadas do ponto de vista nutricional e sensorial (6,7). O método de Avaliação Qualitativa das Preparações do Cardápio (AQPC) é utilizado para avaliar a qualidade nutricional das preparações de um menu, analisando técnicas de cocção/confecção, monotonia alimentar e outros aspetos relevantes para uma alimentação adequada, saudável e variada (8), constituindo como um instrumento relevante de apoio no planeamento e avaliação de menus na área da nutrição e alimentação coletiva.
OBJETIVOS
O objetivo do presente trabalho foi avaliar a composição do menu de 2 (dois) RPs de um município do interior de São Paulo, Brasil, considerando o método AQPC.
METODOLOGIA
Estudo transversal descritivo de caráter quantitativo baseado na análise do menu servido aos consumidores de dois RPs de Araraquara, cidade de médio porte com população aproximada de 240 mil habitantes, localizada no interior do estado de São Paulo (SP), Brasil. Estes restaurantes são os únicos RPs de gestão municipal da cidade de Araraquara e, atualmente, comercializam 250 refeições de almoço por dia útil, totalizando aproximadamente 5.500 refeições/mês e 66.000 refeições/ano.
As refeições fornecidas pelos RPs de Araraquara-SP, contemplam prato principal (proteína de origem animal), guarnição, arroz e feijão e salada/entrada, sobremesa e sumo (refresco em pó). Analisou-se o menu do almoço oferecido aos consumidores de segunda a sexta- feira, excluindo-se feriados, durante o final do mês de agosto e o mês de setembro de 2022. A avaliação do menu foi realizada através do método AQPC (8). Este instrumento permite a avaliação quantitativa de aspetos sensoriais e nutricionais apresentados na composição de menus (4). Estes aspetos são: oferta de frutas e de vegetais verdes folhosos, monotonia de cores, presença de carnes gordurosas, de preparações ricas em enxofre, de doce e de fritura, além da ocorrência concomitante de doce e fritura.
A presença de frutas foi avaliada de acordo com a presença de fruta ou de sumo de frutas sem adição de açúcar no menu do dia. A presença de folhosos foi avaliada de acordo com o aparecimento de um ou mais folhosos crus. A monotonia de cores foi analisada de acordo com o número de cores presentes no menu do dia, sendo classificado como monótono o menu com ocorrência de três ou mais alimentos com cores iguais na mesma refeição (4).
A presença de carnes gordurosas foi avaliada de acordo com a quantidade de gordura presente neste alimento, sendo consideradas carnes gordurosas aquelas com quantidade de gorduras superior a 50% do valor energético total da carne. Foram consideradas como gordas preparações como: bisteca grelhada, linguiça toscana, carne louca, pernil suíno e feijoada (4). Na avaliação das preparações ricas em enxofre considerou-se menu com alto teor de enxofre, aquele que contemplava a ocorrência de dois ou mais alimentos ricos em enxofre no mesmo dia. Foram considerados alimentos ricos em enxofre (sulfurados): acelga, batata-doce, brócolos, cebola, couve- de-bruxelas, couve-flor, ervilha, lentilha, maçã, melancia, melão, milho, ovo, rabanete e repolho (4). O feijão foi desconsiderado desta avaliação devido a recomendação de consumo diário orientado pelo Guia Alimentar da População Brasileira (9).
A presença de doces foi contabilizada na ocorrência de sobremesas que possuem o açúcar como principal ingrediente (pudim, bolo, gelatina, doces industrializados ou caseiros). A ocorrência de refrescos em pó foi avaliada separadamente, considerando o teor de açúcar e o alto grau de industrialização desde produto. A presença de frituras foi analisada de forma isolada e considerando a associação concomitante de fritura e doce (4).
O menu analisado encontra-se descrito na Tabela 1 e engloba 5 semanas (final de agosto e setembro), totalizando 24 dias, visto que os RPs não funcionam aos fins-de-semana e feriados (Tabela 1).
O menu foi avaliado a partir da ocorrência diária absoluta dos alimentos ou preparações segundo os critérios acima descritos. Posteriormente, calculou-se ocorrência semanal e mensal dos atributos avaliados. Os dados foram tabulados em frequência relativa conforme o número total de dias do menu (24 dias).
A partir da frequência mensal dos critérios no menu, os itens analisados das preparações foram classificados em categorias, considerando-os aspetos positivos (oferta de frutas e folhosos) e aspetos negativos (monotonia de cores, preparações ricas em enxofre, carne gordurosa, doce, fritura e a fritura associada a doce no mesmo dia) conforme proposto por Prado, Nicolettia e Faria (10). Na Tabela 2 são apresentados os critérios de classificação do menu pelo método AQPC proposto por Prado, Nicolettia e Faria (10).
Não houve necessidade de submissão deste trabalho ao Comitê de Ética em Pesquisa, por se tratar de análise de preparações de menu sem envolver qualquer interação com seres humanos.
RESULTADOS
Os resultados obtidos por meio da aplicação do método AQPC, encontram-se descritos na Tabela 3, juntamente com a classificação dos parâmetros avaliados. Nota-se uma elevada ocorrência de alimentos com cores iguais, incorrendo numa monotonia de cores. Segundo a oferta de folhosos e de frutas o menu foi classificado como “regular”. Para a presença de carnes gordurosas, foi classificado como “bom”, assim como para oferta de preparações ricas em enxofres. O menu não apresentou ocorrência de frituras e, consequentemente, ausência de associação concomitante de frituras com doces (0,0%), tendo sido classificado como “ótimo” para estes critérios. A presença de doces, por sua vez, foi classificada como “regular”, no entanto, destaca-se a ocorrência elevada da oferta de refrescos em pó.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A avaliação de menus é essencial em UANs, pois torna-se um ponto de partida para a realização de práticas alimentares que podem proporcionar um melhor cenário para promoção da saúde e da qualidade de vida. Esta avaliação deve contemplar questões qualitativas e não somente o quantitativo energético e a distribuição de macronutrientes. O estudo realizado por Wolfson et al. (11), corrobora com essa premissa ao demostrar que a redução de conteúdo calórico de menus de restaurantes “fast food” não foi acompanhada pela melhoria do perfil nutricional dos mesmos, visto que, menos de 20% dos itens dos menus com redução calórica foram classificados como saudáveis nestes restaurantes. Ao revisitar os resultados da avaliação de aspetos qualitativos do menu dos RPs de Araraquara, nota-se que a monotonia de cores obteve uma classificação “ruim”, corroborando com o resultado obtido por Boa Morte, Lira e Fonseca (12), em estudo realizado em restaurante universitário, onde se observa, no menu com prato proteico de origem animal, a ocorrência de 65,1% de cores iguais no almoço e 66,3% no jantar, e de 86,5% no almoço e 62,3% no jantar no menu ovolactovegetariano. A monotonia de cores pode contribuir para a baixa aceitação da refeição, pois, a baixa flexibilidade dos alimentos reduz o potencial de atração visual, aumentando probabilidade de recusas, de redução da ingestão e de desperdício alimentar (12). Além disso, reduz a variabilidade de nutrientes disponíveis na dieta, não atendendo às recomendações nutricionais vigentes (9). A análise dos resultados quanto aos aspetos presença de frutas e de folhosos, considerado “regular” no nosso estudo, diverge parcialmente do observado por Maia et al. (6) em quatro UANs institucionais, onde se verificou diferentes percentagens de presença de frutas: 95,0% (“ótimo”), 100,0% (“ótimo”), 5,0% (“péssimo”) e
35,0% (“regular”). Além disso, um estudo realizado por Campos et al. (13) indica que a presença de frutas como sobremesa não foi mencionada em menus de restaurantes portugueses direcionados para o público universitário e Oliveira et al. (14) destaca que, embora as frutas tenham sido oferecidas na maioria dos dias numa instituição de saúde mental portuguesa, a variedade das mesmas era baixa.
López-González et al. (15), num estudo com idosos no mediterrâneo, ao avaliarem a associação entre consumo de frutas e hortaliças, qualidade da dieta e estilo de vida, observaram que a propensão a ser fisicamente ativo e a ingestão de fibras, vitaminas, minerais e flavonoides foi significativamente maior entre os indivíduos que consumiam maior variedade de frutas e vegetais. As frutas e os folhosos devem apresentar um consumo diário em todas as faixas de idade, e o baixo consumo destes contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis (9). Assim, destaca-se a necessidade de prestar atenção para este aspeto nos RPs, tendo em conta a importância das frutas e verduras para agregar maior valor nutricional ao menu, diante do teor de fibras, vitaminas, minerais e compostos bioativos presentes nestes alimentos (16).
O menu dos RPs de Araraquara foi classificado como “bom” ao considerar o critério oferta de alimentos ricos em enxofre, confrontando o resultado obtido no estudo de Boa Morte, Lira e Fonseca (12) que apresentou o menu padrão (prato principal composto por proteína animal) e ovolactovegetariano classificado como “ruim” e “péssimo”, respetivamente. Num estudo realizado por Souza, Schneider, Weis (17) num serviço de alimentação e nutrição de uma empresa privada da região noroeste do Rio Grande do Sul, o menu o também foi classificado como “péssimo” devido a elevada incidência de alimentos ricos em enxofre (100,0%). Por outro lado, a pouca oferta de leguminosas como acompanhamento ou ausência total em alguns dias foi verificada por Oliveira et al. (14), impactando negativamente na aceitação do menu de instituição de saúde mental portuguesa. Assim, importa relatar, que o enxofre é um mineral essencial responsável por diversas funções no organismo, no entanto, o alto consumo deste pode acarretar alguns desconfortos gástricos devido à presença de compostos sulfurados, devendo ser ponderado na alimentação (4).
Quanto ao critério presença de carnes gordurosas, o menu do RPs foi classificado como “bom”, resultado compatível com o observado no estudo Ygnatios, Lima e Pena (4), que apresentou 15,0% de ocorrência de carnes gordurosas, e de Meira et al. (18), que verificou a percentagem de 20,4%. No estudo José et al. (19) a ocorrência de carnes gordurosas foi de 6,6%, sendo o menu classificado como “ótimo” para este critério. É importante enfatizar a importância da gordura na dieta humana no transporte e absorção de vitaminas lipossolúveis, no fornecimento de energia, ácidos gordos essenciais e na agregação de sabor ao alimento. Todavia, o consumo de gordura deve ser feito de forma equilibrada obedecendo os níveis de recomendação diária, e evitando, principalmente, gorduras saturadas e trans, visto que, o consumo em desequilíbrio pode favorecer o aparecimento de dislipidemias, obesidade, doenças ateroscleróticas, vasculares e outras (9).
A oferta de frituras isoladas, e de frituras em associação com doces, destacou-se positivamente entre os indicadores avaliados pela ausência no menu (0,0%). Corroborando com este resultado, Miquelanti et al. (20) também verificou a ausência de ocorrência de frituras associadas a doce (0,0%) e a ocorrência de 7,1% de fritura no menu com prato proteico de origem animal (“ótimo”). No entanto, no mesmo estudo, Miquelanti et al. (20) aponta ocorrência de 78,6% de fritura (“péssimo”) e de 21,4% de fritura associada a doce no menu vegetariano (“bom”). No estudo de Ygnatios, Lima e Pena (4), o indicador de fritura isolada também se destacou positivamente, com ocorrência de 10,0% (“ótimo”).
A presença de doces foi considerada “regular”, assemelhando-se com os resultados de Maia et al. (6), onde se verificou uma percentagem de 40,0% numa das quatro UANs avaliadas no seu estudo, e de Santana et al. (21), que encontrou 40,3% de ocorrência de doces num restaurante universitário do Oeste da Bahia. A oferta de doces como sobremesas em restaurantes públicos portugueses, por sua vez, esteve presente em 97,8% dos menus (13). Os doces são alimentos ricos em açúcares e é necessário que sejam consumidos de forma moderada, evitando os excessos.
No presente estudo avaliamos ainda a oferta de refrescos em pó e os resultados encontrados revelam uma elevada oferta destes produtos nos RP’s (100,0%), assim com relatado por Campos et al. (13) que verificou a oferta de bebidas açucaradas e de sumos de fruta natural em 31,2% e 8,7% dos menus avaliados, respetivamente. Este aspeto pode ser considerado como ponto negativo do menu dos RPs, devido ao grau de processamento de refrescos em pó e o seu potencial de agregar açúcares simples, aditivos e conservantes alimentares às refeições (9). Neste sentido, importa destacar os resultados obtidos por Silva et al. (22), num estudo de análise qualitativa de menu em escolas do Rio de Janeiro, onde foi verificada a ausência de oferta de bebidas ricas em açúcar e de baixo valor nutricional, e por Huang et al. (23), que aponta redução de açúcar das bebidas servidas em restaurantes do Reino Unido entre os anos de 2018 e 2020.
Abordados os resultados do presente estudo, cabe ponderação para a relevância e inovação do mesmo, considerando o papel social dos RPs e a ausência de artigos científicos que contemplem a avaliação de menus de restaurantes deste tipo pelo método AQPC no Brasil e no mundo. Além disso, ressalta-se a relativa facilidade de replicação do método AQPC na prática do nutricionista e o potencial do mesmo em guiar o planeamento dos menus no campo da alimentação coletiva.
Existem outros instrumentos de avaliação de menus que podem ser utilizados, considerando o público a que se destina o menu. A Grelha de Avaliação Qualitativa de Ementas - GAQE (24), por exemplo, é utilizada para avaliação de menus destinados a população adulta, enquanto que, para a população idosa, pode-se utilizar a Ferramenta de Avaliação Qualitativa de Ementas Destinadas a Idosos (25) e, para crianças, recomenda-se o Sistema de Planeamento e Avaliação de Refeições Escolares - SPARE (26). Neste sentido, o APQC destaca-se pela versatilidade, pois, pode ser aplicado para avaliação qualitativa de menus de diferentes públicos, assim como, a Avaliação Qualitativa de Ementas - AQE (27), desenvolvido para avaliação geral de menus na restauração portuguesa.
Como limitação do estudo, importa considerar a pequena extensão da amostra (dois RPs), no entanto, acreditamos que este trabalho ofereça elementos importantes para a comunidade científica, como parâmetro comparativo de menus de restaurantes com perfil similar noutras localidades, oferecendo indícios da necessidade de ampliação da amostra em estudos posteriores com o intuito de conhecer qualitativamente os menus ofertados ao público atendido pelos RPs em escala ampliada e mais representativa.
CONCLUSÕES
Os resultados apresentados demostram que o menu dos RPs apresenta grande potencial de oferta de nutrientes, principalmente no que tange a oferta de vegetais folhosos crus e fruta. A ausência de fritura e de frituras em associação com doces, encontrada no presente estudo, é excelente para promoção de hábitos alimentares mais saudáveis. A oferta de carnes gordurosas e de alimentos ricos em enxofre também é satisfatória. Deste modo, acredita-se que os RPs cumprem um papel importante para a garantia do DHAA na cidade de Araraquara-SP. Importa considerar, no entanto, a necessidade de pequenos ajustes, principalmente, no que diz respeito a monotonia de cores para que o menu se torne ainda mais atrativo e adequado do ponto de vista da diversidade nutricional. Como ponto adicional de atenção, pode citar-se a oferta elevada de refrescos em pó (altamente industrializados e ricos em açúcar). Deste modo, sugere-se a sua substituição por sumos de frutas ou de polpa de fruta, sem adição de açúcar, para uma melhoria do perfil nutricional do menu.
Como ponto adicional de atenção, pode citar-se a oferta elevada de refrescos em pó (altamente industrializados e ricos em açúcar). Deste modo, sugere-se a sua substituição por sumos de frutas ou de polpa de fruta, sem adição de açúcar, para uma melhoria do perfil nutricional do menu.
CONFLITO DE INTERESSES
Os autores MSS, DMM, JEBS e GSN não apresentam nenhum conflito de interesses. As autoras PFO e SS são funcionárias da Prefeitura Municipal de Araraquara que realiza a gestão dos RPS, e buscam realizar a avaliação do cardápio com foco a melhoria do serviço de oferta de refeições aos consumidores nos RPs.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
MSS: Responsável pela idealização e deliniamento experimental do trabalho, colaborando na orientação para coleta e análise dos dados e para redação do manuscrito; DMM e JEBS: Realizaram a coleta e análise de dados e colaboraram na redação do manustrito; GSN, PFO e SS: Colaboraram na definição do deliniamento experimental do trabalho e na análise de dados, redação e revisão do manuscrito.