INTRODUÇÃO
A Síndrome do Túnel Cárpico (STC) é uma das neuropatias mais comuns em adultos e resulta da compressão do nervo mediano no seu trajeto ao longo do túnel cárpico, no punho (1 - 4). Consequentemente, ocorre uma diminuição do fluxo sanguíneo local, causando irritação das fibras nervosas e descarga de potenciais de ação autónomos (5). Quando prolongada, a compressão pode provocar danos estruturais irreversíveis com desmielinização axonal, aumentando o stress oxidativo e provocando um ciclo vicioso, resultando em mais danos (5). Os sintomas incluem dor neuropática, parestesias, disestesia e comprometimento motor funcional (1, 5). Quanto à etiologia, é maioritariamente idiopática, ocorrendo de forma espontânea e bilateral (1 - 4). Já as causas secundárias incluem trauma de alta energia do punho, anomalias estruturais do túnel cárpico, gravidez, distúrbios endócrinos, artrite reumatóide e fatores ocupacionais, como movimentos repetitivos ou exposição a ferramentas vibratórias (1). Do ponto de vista do impacto na funcionalidade e qualidade de vida, é uma patologia que acarreta custos económicos e sociais associados à perda de dias de trabalho, mudança de ocupação e necessidade de intervenções cirúrgicas (1, 5). Não existe um consenso sobre o melhor tratamento, sendo a intervenção cirúrgica de descompressão do nervo mediano o mais frequentemente aplicado no STC grave, pela eficácia a médio-longo prazo. Nos casos ligeiros a moderados de STC, é frequentemente recomendado um tratamento conservador que inclui uso de talas, fisioterapia, injeção local de corticoides e toma de anti-inflamatórios e diuréticos, contudo o nível de evidência sobre estas opções é limitado (3, 5).
O Ácido Alfa-Lipoico (ALA) é um tiol natural existindo sob a forma de dois enantiómeros diferentes - o isómero R, biologicamente ativo, e o isómero S. A forma S é obtida apenas por técnicas sintéticas e a forma R ocorre naturalmente em organismos vivos, incluindo humanos, em pequena quantidade (6, 7). O ALA possui propriedades antioxidantes: regenera antioxidantes endógenos, regula a transcrição de genes, dá suporte metabólico à célula nervosa e modula a liberação de citocinas neurotróficas (2, 3, 8). Tem sido utilizado no alívio de sintomas e défices associados a diversas neuropatias, surgindo, por isso, como potencial tratamento sintomático no STC (2, 8). O objetivo desta revisão é avaliar a eficácia do ácido alfa-lipoico no alívio sintomático do STC idiopático em adultos.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica, no dia 20 de agosto de 2022, nas bases de dados The Cochrane Library, PubMed, Scopus e Trip medical database. Foram utilizados os termos MeSH “pain”, “paresthesia”, “hypoesthesia”, “carpal tunnel syndrome” e “alpha-lipoic acid”, nas línguas portuguesa e inglesa, não tendo sido definido um horizonte temporal.
Os critérios de seleção dos artigos utilizados estão descritos na Tabela 1. Foi aplicada a escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Academy of Family Physicians, para classificar os resultados dos artigos em níveis de evidência (NE) e forças de recomendação (FR).
RESULTADOS
Dos 212 artigos encontrados, excluíram-se 201 após leitura do título e do resumo e 8 após leitura integral do artigo. Deste modo, foram selecionados 3 artigos para a presente revisão, todos eles Ensaios Clínicos Aleatorizados e Controlados (ECAC) (Figura 1).
The Use of Alfa-Lipoic Acid-R in Patients with Mild-Moderate Carpal Tunnel Syndrome: A Randomised Controlled Open Label Prospective Study (4).
O ECAC de Passiatore e colaboradores foi publicado em 2020 na revista BMC Malaysian Orthopedic Journal e teve como objetivo avaliar o efeito do Ácido Alfa-Lipoico-racémico (ALA-R) no tratamento de doentes com STC ligeiro a moderado. Os resultados foram obtidos apenas relativamente à mão dominante. Como outcome primário foram avaliados os sintomas e funcionalidade dos doentes com a recurso ao Boston Carpal Tunnel Questionnaire (BCTQ), e outcome secundário, a redução da dor medida através da Escala Visual Analógica (EVA) da dor, efeitos secundários e satisfação geral.
O estudo contemplou uma população de 134 doentes com STC, propostos para resolução cirúrgica que foram divididos em 2 grupos: no Grupo A (intervenção) foram administrados 600 mg de ALA-R uma vez por dia, durante 60 dias, e no Grupo B (controlo) não foi administrada qualquer substância (Tabela 2).
Na primeira visita foi realizada a eletromiografia e avaliados a dor diurna e noturna, os sintomas e a funcionalidade. Dois meses depois, os sintomas, a funcionalidade e a dor diurna e noturna voltaram a ser avaliados.
Três participantes do Grupo A (4,5%) não completaram o estudo devido a efeitos secundários (1 por cefaleia e 2 por náuseas). Três doentes do Grupo B desistiram.
Quanto à evolução de sintomas e funcionalidade (Tabela 2), os resultados do BCTQ melhoraram no Grupo A, mas não mudaram significativamente no grupo B, sendo que não se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos.
*osteoartrite cervical, hiperglicemia não diabética
ALA: Ácido Alfa-Lipoico
AR: Artrite Reumatóide
BCTQ: Boston Carpal Tunnel Questionnaire
DM: Diabetes Mellitus
EVA: Escala Visual Analógica da Dor~
F: Sexo Feminino
IMC: Índice de Massa Corporal
M: Sexo masculino
MELD: Model for End-Stage Liver Disease
SNP: Sistema Nervoso Periférico
STC: Síndrome do Túnel Cárpico
Relativamente à dor diurna e noturna, os resultados diminuíram no Grupo A e aumentaram ligeiramente no Grupo B, havendo uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos. Quando questionados “como se sente com a sua doença?”, 9 (14%) doentes do Grupo A referiram não necessitar tratamento posterior. Já os do Grupo B, todos pediram continuação do tratamento.
Dada a ausência de dados sobre aleatorização, alocação e ocultação dos tratamentos, as autoras da presente revisão baseada na evidência atribuem um NE 2 ao presente estudo.
Effect of Alpha-Lipoic Acid on Clinical and Neurophysiologic Recovery of Carpal Tunnel Syndrome: A Double-Blind, Randomized Clinical Trial (3)
Este estudo foi realizado no México por Guízar e colaboradores, tendo sido publicado em 2018 na revista Journal of Medicinal Food. Trata-se de um ECAC, duplo-cego, controlado, cujo objetivo foi avaliar o efeito da terapia adjuvante com ALA, em monoterapia, após descompressão cirúrgica do STC, na melhoria clínica e neurofisiológica. Foi desenvolvido entre março de 2015 e junho de 2016, com uma amostra de 20 adultos com STC idiopático. Os participantes foram avaliados clínica e neurofisiologicamente ao diagnóstico, imediatamente antes da cirurgia (avaliação pré-operatória, 4 semanas após avaliação basal), e às 4, 8 e 12 semanas após a cirurgia. A avaliação clínica consistiu na realização do teste de Phalen, Tinel e aplicação do BCTQ. A avaliação eletrofisiológica foi feita com base nos critérios de Dumitru. Os participantes foram aleatorizados por um investigador independente, através de envelopes selados, 10 participantes para o grupo de intervenção e outros 10 para o grupo controlo (Tabela 2). Todos os restantes intervenientes desconheciam o grupo de tratamento a que os participantes foram alocados. O grupo de intervenção recebeu 600 mg de ALA-R, uma vez por dia, 1 mês antes e 3 meses após a cirurgia. O grupo controlo recebeu uma forma farmacológica idêntica de calcinato de magnésio (Tabela 2).
Dos 20 participantes, 19 finalizaram o estudo, sendo que 1 do grupo controlo desistiu. Não existiram diferenças estatisticamente significativas nas características sociodemográficas entre grupos. Na avaliação pré-operatória, o grupo de intervenção teve uma melhoria estatisticamente significativa em todos os parâmetros em estudo, exceto na amplitude sensorial, ao contrário do grupo controlo onde não houve qualquer melhoria. Já na avaliação final, houve uma melhoria estatisticamente significativa em todos os parâmetros no grupo de intervenção. No grupo controlo verificou-se uma redução substancial da latência motora, sem outras melhorias significativas a nível eletrofisiológico, apresentando também melhoria clínica (Tabela 2). Os processos de aleatorização e de administração de tratamento foram expostos de forma clara. Tendo sido feita a ocultação na administração do tratamento. Contudo utilizam uma amostra pequena o que condiciona um aumento do risco de viés e diminui a magnitude do efeito. Assim sendo, as autoras da presente revisão atribuem um NE 2.
Alpha-Lipoic Acid After Median Nerve Decompression at the Carpal Tunnel: A Randomized Controlled Trial (8)
O estudo realizado por Boriani e colaboradores foi publicado em 2017 no The Journal of Hand Surgery. Trata-se de um ECAC, triplamente cego, cujo objetivo foi avaliar os efeitos do ALA no período pós-operatório da cirurgia de descompressão do nervo mediano do punho em doentes com STC primário.
A amostra de 64 doentes foi igual e aleatoriamente distribuída pelos grupos A (grupo intervenção) e P (grupo controlo) (Tabela 2).
Todos os pacientes foram submetidos a cirurgia de descompressão do nervo mediano, sob anestesia local e em ambulatório. Nos 40 dias que se seguiram à cirurgia, todos receberam um comprimido por dia, os do grupo A contendo 800 mg de ALA, e os do grupo P de placebo (Tabela 2).
O endpoint primário deste ensaio clínico foi o score eletrofisiológico de Bland, avaliado através da realização de uma eletromiografia, 3 meses após a cirurgia. O score pós-operatório foi comparado com o valor do mesmo exame, realizado 3 a 5 semanas antes da cirurgia.
Os endpoints secundários foram a ocorrência de dor na base da mão (nas eminências tenar e/ou hipotenar), a utilização de analgésicos após as primeiras 48h pós-cirúrgicas, a discriminação estática de dois pontos na extremidade do dedo indicador (medida no dia da cirurgia e 3 meses após) e os sintomas e funcionalidade avaliados pelo BCTQ (aplicado no dia da cirurgia e 3 meses depois).
Durante o follow-up, 8 participantes do Grupo A e 6 do Grupo P abandonaram o seguimento, pelo que 50 completaram o estudo (Grupo A: n=24; Grupo P: n=26).
Da análise dos resultados dos dois grupos, conclui-se que não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos A e P no que se refere ao score eletromiográfico (p>0,05), o mesmo se verificando em relação à utilização de analgésicos para além das 48 horas após a cirurgia (p>0,05). Por outro lado, verificou-se uma diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos no que se refere à dor na base da mão. Já a discriminação estática de 2 pontos melhorou em ambos os grupos. Relativamente à pontuação do BCTQ, verifica-se que houve melhoria estatisticamente significativa, em ambos os grupos, quando se comparou o pré com o pós-tratamento (p<0,05). Contudo, não se verifica uma diferença estatisticamente significativa quando se compara o grupo A com o grupo P (p>0,05) (Tabela 2).
Atendendo aos processos de aleatorização e ocultação, bem como ao tamanho amostral, atribuiu-se um NE 2.
ANÁLISE CRÍTICA
A utilização do ALA na STC é uma prática relativamente recente e apresenta escassa literatura que a fundamente, o que a torna um tema pertinente, mas desafiante, para revisão. Existe um protocolo de revisão sistemática e metanálise, de Glenardi e colaboradores (2021), intitulado “Efficacy of Alpha-Lipoic Acid for the Treatment of Carpal Tunnel Syndrome: A Systematic Review and Meta-analysis”, que ainda se encontra em desenvolvimento (9), pelo que esta revisão traz, desde já, alguns insights sobre esta temática.
Na pesquisa efetuada, alguns dos artigos relacionados com o uso do ALA no STC, referiam-se à utilização de uma associação de ALA a outras substâncias com propriedades neurotróficas, analgésicas e anti-inflamatórias, como vitaminas e minerais, ácido gama linolénico, L-acetil-carnitina, equinácea, curcumina, entre outras, e foram excluídos desta revisão pela possível introdução de fatores de confundimento sobre o real potencial do ALA no alívio sintomático na STC e impossibilitar a comparação dos estudos.
Apesar de não existir um consenso sobre o “gold standard" do tratamento, a cirurgia de descompressão do nervo mediano tem sido o tratamento preferencial no STC grave, com melhoria a médio e longo prazo (5). Para os casos ligeiros a moderados e para os doentes que preferem uma abordagem conservadora, existem tratamentos conservadores que apresentam baixo nível de recomendação, o que justifica a procura por alternativas.
Considerando os resultados dos artigos selecionados, estes evidenciam algum benefício da administração de ALA para o tratamento sintomático do STC. À luz da evidência atual, a administração de ALA pode ser considerada em algumas situações, uma vez que parece exercer um efeito neuroprotetor, podendo diminuir a incidência de sintomas e melhorar os parâmetros eletromiográficos, quer quando utilizado isoladamente, quer como co-adjuvante da cirurgia. Estes resultados benéficos podem ser explicados pelo seu efeito antioxidante e neuromodulador. De salientar ainda que os resultados destes estudos mostraram que o ALA é uma substância segura, não tendo sido descritos efeitos laterais graves. Contudo, os resultados descritos devem ser interpretados com cautela. Por um lado, devido ao número reduzido de estudos e ao NE atribuído a cada um deles e, por outro, devido ao pequeno tamanho amostral, ao reduzido tempo de acompanhamento e à heterogeneidade verificada entre eles. Alguns estudos referem-se ao seu uso isolado e outros como terapia adjuvante de cirurgia, para além do facto de uns usarem ALA na sua forma R e outros em formulações racémicas, em diferentes quantidades. Considerando que a forma R sofre rápida e completa absorção e a S, presente nas formulações racémicas, uma absorção mais lenta, com efeitos menos evidentes, interferindo na ação farmacológica do suplemento, tal pode também levantar algumas questões sobre resultados em função do suplemento usado (7).
Assim sendo, considera-se necessária a realização de ECACs com metodologias mais homogéneas, com menos fatores de heterogeneidade, que envolvam maior número de participantes e com um follow-up mais alargado. Só assim se poderá obter conclusões mais robustas sobre o papel e eficácia do ALA no alívio sintomático do STC (SORT B).