INTRODUÇÃO
O transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) envolve a infusão de células-tronco hematopoiéticas saudáveis em pacientes com medula óssea disfuncional ou exaurida (1). O TCTH tornou-se um procedimento bem estabelecido como tratamento para muitos pacientes com malignidades hematológicas, erros inatos do metabolismo ou síndromes de falência da medula óssea (2).
Algumas das possíveis complicações em pacientes submetidos a TCTH são as infecções, doença do enxerto contra o hospedeiro (GvHD), óbito e rejeição do transplante (3). Os distúrbios metabólicos também representam uma complicação a longo prazo na crescente população de sobreviventes, com estudos tendo encontrado risco aumentado de síndrome metabólica (SM) e doenças cardiovasculares (DCV) nos sobreviventes do TCTH, bem como uma alta prevalência de SM e sua associação com eventos cardiovasculares (4-6).
A SM é definida como um grupo de fatores de risco cardiometabólicos interconectados que aumentam diretamente o risco de doença cardiovascular aterosclerótica e diabetes mellitus tipo 2 (7). Entre os diversos fatores que a constituem estão a hipertensão arterial, a obesidade abdominal, o metabolismo da glicose prejudicado e as dislipidemias (8). Assim como na população sem cancro, a SM também constitui um fator de risco cardiovascular potencial em sobreviventes de TCTH (6).
Os avanços no tratamento do cancro permitiram o aumento do número de sobreviventes de doenças hematológicas, portanto, a prevenção e o diagnóstico de complicações endócrinas e metabólicas precoces e tardias, que impactam na qualidade de vida do paciente, são de grande relevância (9).
Estudo de coorte realizado com iranianos com idade superior a 15 anos selecionados da população em geral associaram a SM a um maior risco de mortalidade por DCV, morbidade e internamento hospitalar (10). Resultados semelhantes foram encontrados em estudo de coorte realizado com adultos acima de 70 anos diagnosticados com SM (11). Também, já foram evidenciados resultados adversos à saúde entre os pacientes hospitalizados com diagnóstico primário de cancro e SM (12, 13). Entretanto, nenhum estudo explorou os efeitos da SM no tempo de permanência hospitalar em pacientes submetidos ao TCTH autólogo.
OBJETIVOS
Verificar a prevalência de SM e de seus componentes isolados entre os pacientes internados para a realização do TCTH e seu possíveis impactos no tempo de permanência hospitalar, complicações e desfecho cínico.
METODOLOGIA
Estudo transversal, quantitativo, realizado num hospital universitário em Fortaleza, Ceará, Brasil. Esse trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa (CEP) do Hospital Universitário Walter Cantídio, sob o parecer n.° 4.865.251.
Foram incluídos na amostra participantes de ambos os sexos, maiores de 18 anos, submetidos pela primeira vez ao TCTH autólogo no período de 2019 a 2023. Foram excluídos indivíduos que possuíam limitações físicas para realizar as medidas antropométricas e os que apresentaram infecção pela doença por coronavírus 19 (COVID-19) no período de internamento.
No momento da admissão hospitalar foram recolhidas informações sobre dados clínicos, demográficos, medidas antropométricas, análises clínicas, pressão arterial e triagem de risco nutricional (NRS 2002). Os dados sobre complicações durante o internamento, desfecho clínico (alta e óbito), Karnofsky Performance Scale (KPS) e tempo de hospitalização foram obtidos de processo clínico. A KPS é aplicada pela equipa médica na admissão hospitalar.
A gestão dos dados do estudo foi feita através da plataforma digital de coleta e gestão de dados Research Electronic Data Capture (REDCap) (14).
O indicador antropométrico utilizado para avaliar o estado nutricional foi o índice de massa corporal (IMC), com a utilização das medidas de peso corporal e altura. Foi utilizada a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), para os adultos, e o proposto pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) para os idosos (> 60 anos) (15, 16). Para avaliar a obesidade central ou abdominal foi utilizada a circunferência da cintura (CC), aferida com auxílio de uma fita métrica antropométrica inelástica, segundo padronização de Callaway et al. (17). A CC foi medida como a menor circunferência entre as costelas e a crista ilíaca enquanto o participante estava em pé com o abdómen relaxado, ao f inal de uma expiração normal.
A SM foi identificada durante a admissão hospitalar, em momento prévio ao transplante, segundo o National Cholesterol Education Program (NCEP- ATP III), que define como critério diagnóstico a presença de três dos seguintes fatores: obesidade abdominal (CC ≥ 102cm para homens e ≥ 88cm para mulheres, hipertrigliceridemia (≥ 150 mg/dL) ou em tratamento medicamentoso para hipertrigliceridemia, níveis baixos de colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL-c) (< 40 mg/dL para homens e < 50 mg/dL para mulheres) ou em tratamento medicamentoso para HDL-c baixo, hipertensão arterial sistémica (HAS) (pressão arterial ≥ 130/85 mmHg) ou uso de anti-hipertensivo e glicemia de jejum elevada (≥ 110 mg/dL) ou em tratamento (18).
As análises estatísticas foram realizadas utilizando o programa estatístico R. Os dados foram submetidos à análise de normalidade através do teste Shapiro-Wilk. As variáveis foram apresentadas em média e desvio padrão e frequência simples. Na investigação de associação entre as variáveis categóricas, utilizou-se o teste de qui-quadrado de Pearson e o teste exato de Fisher. A comparação de médias ocorreu através do teste Mann-Whitney ou teste t de Student.
Posteriormente, os dados foram submetidos à análise de regressão, ajustados para idade, KPS e infeção durante o internamento. Adotou-se um nível de significância de 5%.
RESULTADOS
A amostra total foi composta por 173 pacientes, maioria do género feminino (53,2%, n=92), com idade média de 49,84± 13,89 anos e maior prevalência de mieloma múltiplo (MM) (54,9%, n=95), como diagnóstico de base. A média do IMC foi de 28,34±4,67 para os adultos e 28,16± 4,11 para os idosos. Observou-se que 56,6% (n=98) dos pacientes possuíam pelo menos uma comorbidade, sendo a HAS a mais frequente, com prevalência de 31,2% (n=54). Quanto aos dados clínicos, a média da triagem NRS (2002) foi de 3,18 ±0,54, o escore de KPS foi em média de 93,64 ±9,91. A maioria, 75,1% (n=130) dos pacientes, apresentou algum tipo de infecção durante o período de internamento e 2,3% (n=4) faleceram. O tempo médio de internamento foi de 20,64 ±5,02 dias (Tabela 1).
Tabela 1: Características demográficas e clínicas de pacientes admitidos para realização do transplante de células-tronco hematopoiéticas autólogo, Fortaleza, Brasil, 2019-2023

DM: Diabetes Mellitus
DRC: Doença Renal Crónica
HAS: Hipertensão Arterial Sistémica
LH: Linfoma de Hodgkin
LLA: Leucemia Linfoide Aguda
LMA: Leucemia Mieloide Aguda
LMC: Leucemia Mieloide Crônica
LNH: Linfoma Não Hodgkin
KPS: Karnofsky Performance Scale
Dos 173 pacientes, um total de 148 indivíduos possuía todos os parâmetros necessários para realizar o diagnóstico de SM.
Desses 148 pacientes, identificou-se a presença de SM em 53,4% (n=79). Vinte e cinco pacientes possuíam dados incompletos que impediram a identificação da presença da SM. Além disso, 1 caso não possuía dados sobre CC, 19 sobre glicemia de jejum, 24 sobre triglicerídeos e 26 sobre HDL-c.
Em relação às variáveis que compõem os critérios de diagnóstico da SM, entre aqueles que possuíam as informações necessárias para o diagnóstico de cada componente, encontrou-se as seguintes prevalências: CC elevada em 65,7% (n=113) dos pacientes, hipertrigliceridemia em 50,3% (n=75), pressão arterial sistólica elevada em 49,7% (n=86), HDL-c baixo em 49% (n=72), pressão arterial diastólica elevada em 38,7% (n=67) e hiperglicemia em 12,4% (n=19) (Tabela 2).
Tabela 2: Prevalência de síndrome metabólica e seus componentes em pacientes admitidos para realização do transplante de células-tronco hematopoiéticas autólogo. Fortaleza, Brasil, 2019-2023

*Vinte e cinco pacientes não possuíam dados suficientes para identificar a Síndrome Metabólica. Quanto aos seus componentes, 1 não possuía dados sobre Circunferência de Cintura, 19 sobre glicemia de jejum, 24 sobre triglicerídeos e 26 sobre HDL-c
A presença de obesidade abdominal foi associada ao género feminino (p< 0,001). Adicionalmente, foi encontrado significativamente, maior média de idade no grupo de pacientes diagnosticados com SM, obesidade abdominal, pressão arterial sistólica alta e hipertrigliceridemia (p< 0,05) (Tabela 3).
Tabela 3: Relação entre síndrome metabólica e as variáveis demográficas e NRS dos pacientes submetidos ao transplante de células-tronco hematopoiéticas autólogo, Fortaleza, 2019-2023
Na análise da existência de interação da SM, e seus componentes, com infecção, desfecho clínico (alta ou óbito) e tempo de permanência hospitalar, apenas a presença infecção durante o internamento foi associada significativamente, a pressão diastólica alta (p= 0,022) (Tabela 4).
Tabela 4: Relação entre síndrome metabólica e taxa de infecção, tempo de permanência hospitalar e desfecho clínico dos pacientes submetidos ao transplante de células-tronco hematopoiéticas autólogo, Fortaleza, 2019-2023
Após análise de regressão linear ajustado para as variáveis idade, infecção e KPS, não foram encontradas associações significativas entre a SM, bem como seus componentes, com o tempo de permanência hospitalar e desfechos clínicos.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O grupo de pacientes deste estudo em que foi avaliado a presença de SM apresentou alta prevalência (53,4%) no momento de admissão hospitalar, entretanto, não se observou associação significativa entre a presença da SM ou de seus componentes com o tempo de permanência hospitalar e demais desfechos.
Diferentes definições de SM levam a discrepâncias nas estimativas de prevalência, entretanto, evidências disponíveis mostraram variações de 12,5% a 31,4% na prevalência global observada em adultos (18-59 anos), incluindo na análise subgrupos de acordo com a área geográfica e o nível de rendimento do país (19).
Em relação aos pacientes submetidos ao TCTH, estudos encontraram, após o transplante, prevalências de SM variando de 25,6% e 37,5%, aumentando para 53% em pacientes com mais de 50 anos (20, 6). Em diversos estudos epidemiológicos, a prevalência da SM aumenta com a idade, visto que existem muitos pontos em comum nas alterações bioquímicas do processo de envelhecimento e na SM (21). De maneira semelhante, nesse estudo, os pacientes diagnosticados com SM apresentaram maior média de idade.
Quanto aos componentes da SM, entre aqueles com os dados necessários para a análise de cada critério, foi possível observar uma alta prevalência da obesidade abdominal (67,5%), significativamente maior entre as mulheres. Observou-se também idade maior no grupo com CC elevada. Os valores encontrados são maiores que o encontrado em adultos com mais de 30 anos em todo o mundo (30%), sendo a obesidade abdominal conhecida por ser um importante fator de risco para desenvolvimento de diabetes e DCV (22). Dados semelhantes foram encontrados em estudo que identificou como uma das anormalidades cardiometabólicas mais comuns entre as mulheres na pós-menopausa diagnosticadas com cancro o aumento da CC (≥88cm), demonstrando ainda associação entre obesidade abdominal e a maior mortalidade por todas as causas e mortalidade específica por cancro (23).
Através dos dados coletados na admissão hospitalar, previamente ao transplante, também foi encontrada alta prevalência de hipertrigliceridemia (50,3%), pressão arterial sistólica elevada (49,7%) e HDL-c baixo (49%). Assim como o resultado encontrado nesse estudo, Makris et al. através de uma revisão sistemática, mostraram que os pacientes com MM tinham níveis de HDL-C significativamente mais baixos em comparação com controlos saudáveis (24).
Os tipos de tratamento empregados nas neoplasias hematológicas, especialmente quimioterapia e/ou radiação associada aos regimes de condicionamento do TCTH e uso de drogas imunossupressoras, podem induzir alterações metabólicas que podem gerar sintomas agudos e crónicos que exercem um forte impacto no estado nutricional, dada a toxicidade gastrointestinal que frequentemente impede a ingestão adequada de proteínas e calorias (25). Além disso, pacientes com cancro podem apresentar desequilíbrios metabólicos em função da doença, do tratamento e de suas complicações, com alterações no perfil lipídico, lipoproteico e glicémico (26). Dessa forma, é possível que os resultados encontrados estejam relacionados com os fatores e análise dos dados e redação do manuscrito; FBD, KSNB e SCL: Definição do supracitados.
A maioria dos pacientes (75%) apresentou algum tipo de infecção durante o período de internamento e 2,3% faleceram. Entre as complicações em pacientes submetidos a TCTH estão as infecções (3), sendo as infecções bacterianas que ocorrem precocemente, após o TCTH autólogo, associadas ao aumento da mortalidade (27). Em contrapartida, os fatores associados à diminuição de infecções estão relacionados a recuperação imunológica mais rápida (28).
Neste estudo, a presença de infecção durante o internamento foi associada significativamente a pressão diastólica alta. Apesar da falta de evidências diretas de que a hipertensão aumenta a probabilidade de novas infecções (29), comparados com aqueles sem hipertensão, pacientes com hipertensão apresentam um estado imunológico caracterizado por disfunção endotelial e stress oxidativo (30).
O stress oxidativo pode desempenhar um papel duplo nas infecções, visto que os radicais livres protegem contra microrganismos invasores e podem causar danos aos tecidos durante a inflamação resultante (31). Quanto ao tempo de internamento, a média foi de 20,64±5,02 dias. Um internamento hospitalar típico para a realização de TCTH autólogo dura em média de 2 a 3 semanas (32). A presente investigação mostrou que não houve associação entre a presença de SM ou seus componentes isoladamente, com o tempo de internamento hospitalar.
Apesar de estudos já terem relatado resultados adversos à saúde significativamente maiores entre os pacientes hospitalizados com diagnóstico primário de cancro e SM (12, 13), não foram encontrados trabalhos que investigassem a associação entre a presença de SM pré- TCTH e o tempo de internamento hospitalar.
O estudo possui como limitações a utilização de parte dos dados oriundos dos processos clínicos, o que provocou a impossibilidade de avaliar a prevalência de SM e alguns de seus componentes na amostra total por dados incompletos. Também, o tempo de acompanhamento, uma vez que os pacientes só foram avaliados até a alta hospitalar. Destaca-se que o ideal é que o acompanhamento para avaliar os desfechos clínicos continue após o TCTH, visto que os sobreviventes a longo prazo parecem ter um risco aumentado do surgimento prematuro de SM e DCV (5, 6, 26).
Apesar de não ter sido encontrada associação entre SM e o tempo de internamento, visto que os distúrbios metabólicos representam uma complicação a longo prazo (4), destaca-se a importância de avaliar os pacientes antes do transplante, para identificação de fatores de risco e realização de intervenções precoces. Ainda, dada a sua escassez, ressalta-se a importância da realização de novos estudos relacionando a SM e seus componentes com desfechos clínicos no pós- TCTH imediato, incluindo o tempo de internamento hospitalar.
CONCLUSÕES
Este estudo revelou alta prevalência SM e de seus componentes analisados individualmente em pacientes submetidos ao TCTH. Entretanto, não foi encontrada associação entre SM e o tempo de permanência hospitalar e demais desfechos clínicos. Apesar disso, sabe-se que a SM pode causar uma série de malefícios a longo prazo, sugerindo-se intervenção multiprofissional nos casos necessários.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
RBA: Conceção, planeamento e delineamento do estudo, coleta, análise e a interpretação dos dados, também a redação do manuscrito; KNS e FRSS: Colheita e análise dos dados e redação do manuscrito; FBD, KSNB e SCL: Definição do delineamento do estudo, colheita e análise dos dados, revisão do manuscrito; ABVJ: Definição do delineamento do estudo, análise estatística dos dados, revisão do manuscrito; PSM: Planeamento e delineamento do estudo, análise e a interpretação dos dados, redação e revisão do manuscrito.














