INTRODUÇÃO
A evidência científica mostra que as práticas alimentares inadequadas desde o início da vida fetal até aos dois anos podem ter efeitos negativos e irreversíveis no futuro da criança, uma vez que afetam diretamente o seu estado nutricional, saúde, desenvolvimento, cognição e mortalidade, perpetuando ciclos de pobreza e desigualdade (1, 2). No sul de Angola, onde a insegurança alimentar apresenta níveis inadequados, esta situação torna-se ainda mais preocupante (3).
Para garantir o acesso a uma alimentação adequada, são necessários esforços multissectoriais e sustentáveis que permitam melhorar o estado nutricional e as práticas alimentares das gerações futuras (4-7). O estado nutricional da população angolana tem sido reconhecido como um desafio em relatórios nacionais. Assim, têm surgido estratégias e políticas públicas e outras ações, onde intervêm entidades como organizações da sociedade civil e agências das Nações Unidas (8), dirigidas sobretudo à população pediátrica (9-12), para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em especial o 2 e 3 (13). Destaca-se o Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2012-2025, que é central para a execução da Estratégia de Desenvolvimento a Longo Prazo para 2025, e que apresenta um projeto para prevenção e tratamento de patologias na área da nutrição (11, 12), e o Plano Estratégico Multissectorial de Nutrição 2019-2025 que propõe a redução da prevalência de desnutrição crónica de 38% para 19%, identificando este como o principal problema de nutrição em Angola (9).
Sabe-se que um dos fatores para o aumento do risco da desnutrição crónica é a insegurança alimentar, e que esta pode estar fortemente ligada a fenómenos climáticos extremos, que impactam a produção agrícola, como a seca, o que se verifica no sul de Angola (6, 14, 15). A Classificação Integrada de Fases da Insegurança Alimentar (IPC, sigla da expressão em inglês Integrated Food Security Phase Classification) implementada em 2021, nas províncias do sul, projetou que entre outubro de 2021 e março de 2022, 58% da população inquirida iria experienciar níveis elevados de insegurança alimentar e dificuldade no acesso a alimentos, principalmente devido a estiagem prolongada (3, 16).
Assim, face à insegurança alimentar observada, pretende-se analisar a evolução dos indicadores do estado nutricional e de práticas alimentares, em crianças < de 5 anos das províncias do sul de Angola, Cunene, Huíla e Namibe, de forma a suportar o desenvolvimento de intervenções mais eficazes e sustentáveis.
METODOLOGIA
Foi realizada uma revisão bibliográfica da melhor evidência dos últimos 15 anos, entre novembro de 2021 e março de 2022, através da pesquisa no título e no resumo das palavras-chave combinadas, em português e inglês, nas bases de dados Pubmed, Web of Science, Science Direct, Cochrane, Scopus, WHO Global Health Library e Google Scholar. Nas bases de indexação selecionadas, não foram encontrados artigos científicos que apresentassem as palavras-chave combinadas: “estado nutricional”, “desnutrição”, “práticas alimentares”, “crianças menores de 5 anos”, “sul de Angola”, “Cunene”, “Huíla”, “Namibe”, desta forma nenhum artigo cumpriu os critérios de pesquisa. Seguidamente, foi realizada uma pesquisa manual em revistas portuguesas e foram consultadas as seguintes entidades: as agências locais da Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Programa Alimentar Mundial (PAM); o Ministério da Saúde (MINSA) e o Ministério da Agricultura e Pescas (MINAGRIP) de Angola; organizações da sociedade civil que atuam na região e instituições locais de ensino médio e superior. Incluíram-se os trabalhos que avaliaram o estado nutricional e práticas alimentares de crianças < 5 anos nas províncias do Cunene, Huíla e Namibe, o que resultou na seleção de 6 relatórios de inquéritos populacionais, nacionais e provinciais, disponibilizados à data da realização desta revisão.
Descrição dos Relatórios dos Inquéritos Populacionais Selecionados
O primeiro relatório analisado compreende o Inquérito sobre a Nutrição em Angola 2007 (INA 2007). Este foi realizado pelo MINSA com apoio metodológico da UNICEF e OMS, e analisou os resultados das medidas pós-guerra civil de forma a servir de base para elaborar estratégias de melhoria do estado nutricional e redução da mortalidade infantil. Este inquérito nacional avaliou uma amostra representativa de 1400 crianças nas três províncias do sul (17).
Seguiu-se o Inquérito de Indicadores Múltiplos e de Saúde 2015-2016 (IIMS 2015-2016), realizado pelo Instituto Nacional de Estatística e pelo MINSA, com base no The Demographic and Health Surveys Program (DHS) da United States Agency for International Development, e nos Multiple Indicator Cluster Surveys (MICS) da UNICEF, estudou indicadores demográficos, de saúde geral e de nutrição. Este estudo nacional obteve uma amostra representativa de 1200 crianças do Cunene, Huíla e Namibe (18).
Os três inquéritos, Nutrition Surveys in Drought-Affected Municipalities of Huíla and Cunene 2019 (SMART 2019), Report on Nutrition and Mortality Survey - Cuando Cubango and Namibe 2020 (SMART 2020), e Nutrition Assessment in Drought-Affected Provinces Huíla and Cunene (SMART 2021), foram realizados pela UNICEF e MINSA de acordo com a metodologia Standardized Monitoring and Assessment of Relief and Transaction Methodology (SMART), para avaliar o impacto da seca no estado nutricional e mortalidade de crianças < de 5 anos e intervir eficazmente. Em 2019 e 2020, estes inquéritos provinciais, incluíram os municípios mais afetados pela seca (SMART 2019: N=1704, 5 municípios no Cunene (N=816) e 5 na Huíla (N=888); SMART 2020: N=846, 3 municípios no Namibe); e em 2021 incluíram municípios selecionados aleatoriamente, obtendo-se uma amostra representativa (Cunene: N=456; Huíla: N=394) (19-21).
Por fim, analisou-se o inquérito de Avaliação da Vulnerabilidade e da Segurança Alimentar e Nutricional (AVSAN 2021), realizado pelo MINAGRIP com apoio do Programa de Fortalecimento da Resiliência e da Segurança Alimentar e Nutricional em Angola (FRESAN), financiado pela União Europeia. Este integrou a IPC e visou avaliar a insegurança alimentar e vulnerabilidade das populações. Foi realizado nos 17 municípios de intervenção FRESAN (Cunene, 6 municípios: N=3094; Huíla, 6 municípios: N=3644; Namibe, 5 municípios: N=2607) (22).
Os inquéritos selecionados, apesar de usarem metodologia diferente, analisaram indicadores semelhantes sobre o estado nutricional e práticas alimentares de crianças menores de 5 anos, o que permite a comparação de resultados. Os indicadores e os resultados analisados estão descritos nas secções seguintes e sumariados na Tabela 1. Na análise crítica são também exploradas limitações e diferenças metodológicas que possam afetar a comparabilidade dos dados.
Tabela 1: Resultados dos indicadores do estado nutricional e práticas alimentares na infância, no Cunene, Huíla e Namibe, nos últimos 15 anos


E/I:
IMC: Índice de Massa Corporal
MDD:
MMF:
MAD:
P/A:
PB:
INA 2007: Relatório do Inquérito sobre a Nutrição em Angola (17)
IIMS 2015-2016: Inquérito de Indicadores Múltiplos e de Saúde em Angola (18)
SMART 2019: Nutrition Surveys In Drought-Affected Municipalities of Huíla And Cunene (19)
SMART 2020: Report On Nutrition And Mortality Survey Cuando Cubango And Namibe (21)
AVSAN 2021: Relatório geral - Avaliação da Vulnerabilidade e da Segurança Alimentar e Nutricional das províncias do Cunene, Huíla e Namibe (22)
SMART 2021: Nutrition Assessment in Drought-Affected Provinces Huíla and Cunene (20)
a de acordo com a referência original AVSAN 2021 foi observada preferência problemática de dígitos na avaliação antropométrica relativa ao indicador (22)
b de acordo com a referência original INA 2007 os dados apenas incluem as províncias Cunene e Huíla (17)
c de acordo com a referência original SMART 2019 os dados não são representativos por falta de poder amostral (19)
Estado Nutricional das Crianças Menores de 5 Anos do Sul de Angola
Desnutrição Aguda Global
Nos relatórios revistos, foram utilizados cinco critérios diferentes para determinar a desnutrição aguda global (DAG) em crianças menores de 5 anos:
1) peso-para-altura ≤ -2 z-score (P/A), definido pela OMS (17, 18, 23);
2) peso-para-altura ≤ -2 z-score e/ou edema bilateral, proposto pela OMS/UNICEF (22, 24);
3) peso-para-altura < -2 z-score e/ou edema bilateral (P/A e/ou edema), proposto pela SMART (19-21, 25);
4) perímetro braquial < 125 mm e/ou edema bilateral (PB e/ou edema) (24, 25);
5) desnutrição aguda global combinada (cDAG): peso-para-altura < -2 z-score e/ou perímetro braquial < 125 mm e/ou edema bilateral (P/A e/ou PB e/ou edema) - aqui agregam-se casos de DAG estimados pelos critérios 3 e 4, excluindo a dupla contagem de casos, de acordo com a SMART (25).
No INA 2007 e no IIMS 2015-2016 salientam-se as prevalências de DAG (P/A) no Cunene, 12,3% e 10,5%, respetivamente (17, 18). Nos SMART 2019 e 2021 (P/A e/ou edema) atingiram-se valores próximos dos 10% no Cunene e na Huíla (19, 20). Para o critério PB e/ou edema destacam-se os resultados do INA 2007 na Huíla (18,0%) e no Cunene (12,7%), e do SMART 2021 na Huíla (14,5%) (17, 20). Por fim, a prevalência de cDAG estimada é > 10%, à exceção do Namibe (SMART 2020: 8,8%), destacando-se os últimos dados na Huíla, 19,3% (19-22).
Desnutrição Crónica Global
O indicador de desnutrição crónica global (DCG) definiu-se de acordo com o critério “estatura-para-idade ≤ -2 z-score” proposto pela OMS (17, 18, 22, 23) e pelo critério SMART “estatura-para-idade < -2 z-score” (E/I) (19-21, 25).
No INA 2007 destaca-se que a DCG afetou 35,6% das crianças na Huíla e 29,9% no Cunene (17). Já no IIMS 2015-2016 estimou-se uma elevada prevalência nas três províncias (Huíla: 43,6%; Cunene: 39,3% e Namibe: 33,8%) (18). Os 3 relatórios SMART também estimaram prevalências superiores a 30%, tendo em 2021 atingido 50,7% na Huíla e 46,7% no Cunene (19-21).
Baixo Peso Global
A prevalência de baixo peso global foi determinada nos 6 trabalhos de acordo com o critério “peso-para-idade < -2 z-score” (P/I) (23). Desde 2015-2016 o baixo peso global afeta aproximadamente 3 em cada 10 crianças no Cunene e na Huíla e em 2021 no Namibe, atingiu 2 em cada 10 crianças (18-22).
Excesso de Peso
A prevalência de excesso de peso foi estimada nos relatórios SMART e no AVSAN 2021, para os critérios “peso-para-altura > 2 z-score” (P/A) e “Índice de Massa Corporal-para-idade > 2 z-score” (IMC), respetivamente. Nestes relatórios, verificam-se valores inferiores ou próximos de 1% (19-22).
Práticas alimentares na infância no sul de Angola
Aleitamento Materno Exclusivo até aos 6 Meses
A maioria dos relatórios apresenta dados sobre aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses, porém o indicador foi construído de formas diferentes. No INA 2007 foi questionado ao cuidador se nos primeiros 6 meses a criança consumiu outros alimentos ou bebidas adicionalmente ao leite materno (17). Nos inquéritos SMART, com base em perguntas de “sim ou não” sobre a ingestão nas 24 horas anteriores, de uma lista de alimentos, foi inferido se as crianças < 6 meses tinham consumido outro item para além do leite materno (19-21). Já no AVSAN, foi perguntado aos cuidadores com que idade as crianças < 5 anos consumiram pela primeira vez outro alimento ou bebida além do leite materno (22).
Salientam-se os resultados do INA 2007, onde no Cunene e na Huíla apenas 34,4% das crianças avaliadas receberam aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses (17). No AVSAN 2021 destaca-se que a prevalência nas três províncias aumentou para 40,8% (22). Já o SMART 2021 reporta os valores mais elevados na região do Cunene e da Huíla, 73,1% e 63,2%, respetivamente (20).
Diversidade Alimentar Mínima, Frequência de Refeições Mínima e Dieta Mínima Aceitável
O IIMS 2015-2016 e o AVSAN 2021 estudaram três indicadores preconizados pela UNICEF e OMS para avaliar as práticas alimentares de crianças dos 6 aos 23 meses, com base na ingestão nas 24 horas anteriores: a Diversidade Alimentar Mínima (MDD, sigla da designação em inglês Minimum Dietary Diversity), avalia a diversidade alimentar, através do cálculo da proporção de crianças que recebeu alimentos de pelo menos 4 dos 7 grupos alimentares usados na construção do indicador; a Frequência de Refeições Mínima (MMF, sigla da designação em inglês Minimum Meal Frequency), avalia a proporção de crianças que obteve pelo menos o número mínimo de refeições considerado no indicador; e a Dieta Mínima Aceitável (MAD, sigla da designação em inglês Minimum Acceptable Diet), avalia a proporção de crianças que atingiu os critérios mínimos dos 2 indicadores anteriores (26).
No IIMS 2015-2016 salienta-se que, nas 3 províncias, cerca de 3 em cada 10 crianças atingiram os critérios da MDD e MMF, exceto no Cunene, onde apenas 3,9% cumpriu as recomendações da MDD (18). Em relação à MAD, na Huíla e no Namibe menos de 2 em cada 10 crianças alcançaram os critérios, e no Cunene apenas 1,9% atingiu (18). No AVSAN 2021 destaca-se ainda que, em toda a região, apenas 3,5% das crianças atingiram os critérios da MAD (22).
Outros Indicadores Sobre Práticas Alimentares na Infância
Três inquéritos estudaram outros dados sobre práticas alimentares na infância, com base na ingestão de alguns grupos de alimentos nas 24 horas anteriores.
No IIMS 2015-2016 analisou-se a ingestão dos 6 aos 23 meses destacando-se que, 67% a 85% das crianças consumiram alimentos ricos em vitamina A (como carne, peixe, ovo, hortofrutícolas de polpa laranja e de folha verde escura) e que a ingestão de alimentos ricos em ferro (como carne, peixe e ovo) alcançou 76% das crianças na Huíla, 62,6% no Namibe e apenas 38,4% no Cunene (18).
O AVSAN 2021 estudou a ingestão de crianças < 5 anos, verificando--se que em média apenas fizeram 1,7 refeições diárias, apenas cerca de 30% consumiram carne, peixe ou ovo e em proporção semelhante não consumiram hortícolas, apenas cerca de 20% das crianças consumiram fruta e os cereais e tubérculos foram os alimentos presentes na alimentação de cerca de 90% das crianças (22).
Por fim, o SMART 2021 estimou que, no Cunene e na Huíla, mais de 60% das crianças dos 6 aos 23 meses apenas realizou ≤ 2 refeições no dia anterior (20).
ANÁLISE CRÍTICA
Estado Nutricional das Crianças Menores de 5 Anos no Sul de Angola
Desnutrição Aguda Global
Analisando os resultados da DAG ao longo dos 15 anos, e considerando os diferentes critérios para este indicador, destaca-se que a província do Cunene apresenta uma tendência geralmente decrescente, contrariamente ao que se verifica na Huíla e no Namibe (17-22). A prevalência de DAG no Cunene (INA 2007: 12,3% vs. SMART 2021: 9,1%) passou de um valor “alto” (≥ 10 % e < 15 %) para um valor “médio” (≥ 5% e < 10%) (17, 20, 27). Este decréscimo verifica-se ainda que no SMART 2021 se tenham incluído os casos de edema, ao contrário do INA 2007 (17, 20), isto pode refletir o descrito na literatura: a inclusão de casos de edema parece não trazer diferenças significativas nos resultados de DAG (28). Ainda que não haja evidência que suporte, o decréscimo da DAG no Cunene poderá resultar das intervenções em nutrição em curso no sul de Angola, devido à insegurança alimentar e à desnutrição infantil já identificadas (3, 8).
Já na Huíla (INA 2007: 5,9% vs. SMART 2021: 12,6 %) e no Namibe (INA 2007: 8,9% vs. AVSAN 2021: 9,9%) os resultados aparentam uma tendência crescente e os dados mais recentes aproximam-se do nível de prevalência “alto”, sugerindo uma possível tendência crescente nas duas províncias (17, 20, 22).
Considerando o perímetro braquial, a situação na Huíla (SMART 2021: 14,5%) e no Namibe (AVSAN 2021: 7,1%) parece oscilar, não seguindo a tendência anterior (17, 20, 22). Os resultados de DAG obtidos por medição do PB não são avaliados pela classificação do critério P/A, pois não são comparáveis. Existe evidência de que os dois critérios não identificam os mesmos casos de DAG, o que pode justificar as diferenças nas prevalências de DAG estimadas pelos dois critérios (17, 19, 20, 22, 29). É descrito que a concordância entre os critérios apresenta uma grande heterogeneidade entre inquéritos e países, podendo haver uma tendência para estimar menor prevalência de DAG através do PB (29, 30). No entanto, em regiões com maior prevalência de desnutrição crónica a tendência pode ser contrária, uma vez que crianças com DCG podem apresentar em simultâneo, menor estatura e menor peso (29, 30).
Adicionalmente, apesar da medição do PB ser frequentemente usada para monitorização da desnutrição aguda a nível comunitário em países de rendimento médio-baixo, por ser mais económico, simples e rápido, a sua utilização pode apresentar limitações (31, 32). São usados os mesmos pontos de corte para ambos os sexos e para todo o grupo etário dos 6 aos 59 meses, apesar do perímetro braquial apresentar diferenças significativas entre sexos, idades e em crianças com DCG (29, 30). Adicionalmente, ainda não existem limiares validados para classificar os resultados deste critério (16). Desta forma, os resultados para o PB não devem ser considerados isoladamente, devem ser comparados com a prevalência de DAG estimada pelo critério P/A (29, 30).
Já a cDAG, em 2021, atingiu valores próximos de 20% na Huíla, superiores aos estimados pelos critérios P/A e PB (20, 22). A utilização da cDAG, ainda que não conste das guidelines de monitorização da DAG, pode ser útil para resolver a subestimação de casos de DAG identificados pelos critérios P/A e PB em separado, permitindo sinalizar e tratar um maior número de crianças (16, 30, 33).
Por fim, acrescenta-se que a prevalência de DAG no sul de Angola, estimada mais recentemente no AVSAN 2021 (9,0%) (22), se encontra cerca de duas vezes acima do target definido pela OMS nos Global Nutrition Targets (GNT) 2025 (< 5%) (34) e acima da região de África central (6,2%), onde se localiza Angola, acima de todo o continente africano (6,0%) e do nível mundial (6,7%), de acordo com os dados do Global Nutrition Report (GNR) 2022 (35).
Desnutrição Crónica Global
Desde 2007, a DCG atinge mais de 30% das crianças e aparenta uma tendência geralmente crescente nas três províncias, tendo em 2021 atingido cerca de metade das crianças na Huíla e no Cunene (17-22). Esta tendência vai contra a tendência mundial que se encontra em decréscimo (35), em direção ao objetivo internacional para reduzir em 40% as crianças afetadas por DCG (34). Em 2021, a prevalência no sul de Angola (AVSAN 2021: 47,1%) (22) classifica-se como “muito alta” (prevalência de DCG ≥ 30%) (27) e está 10% acima do apurado para a África central (36,8%), a região africana com maior valor de DCG, e acima do estimado para todo o continente (30,7%) e a nível global (22,0%) (35).
Baixo Peso Global e Excesso de Peso
A prevalência de baixo peso global apresenta também uma tendência crescente (17, 22). Já a prevalência de excesso de peso, apesar de não ter sido avaliada em todos os inquéritos, parece oscilar dentro do nível “muito baixo” (< 2,5%) (27), não ultrapassando 1% (19-22). Este é um cenário diferente do que acontece a nível mundial (5,7%) e em África (5,3%), que se encontram num nível “médio” (≥ 5,0% e < 10,0%) e em aparente crescimento, divergindo do target 2025 (34, 35).
Práticas Alimentares na Infância no Sul de Angola
Relativamente às práticas alimentares, nenhum indicador foi avaliado por todos os trabalhos, o que limita a análise da sua evolução (17-22). O aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses foi estimado em 4 relatórios. Salienta-se que os seus resultados devem ser comparados criticamente devido às diferenças metodológicas identificadas e ao facto dos resultados do SMART 2019 não serem representativos por falta de poder amostral (17, 19, 20, 22).
Os valores mais recentes de aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses são superiores aos iniciais (17-22), sugerindo uma evolução positiva. Verifica-se que os últimos dados da região (Cunene: 73,1%; Huíla: 63,2%) (20), são superiores aos de África central, do continente africano e a nível mundial (cerca de 44%), e que ultrapassam o objetivo de se atingir ≥ 50% até 2025, definido pela OMS (34). Este resultado parece alinhado com a tendência mundial de crescimento (35), porém pode dever-se ao descrito na literatura: ainda que a insegurança alimentar se possa relacionar negativamente com o aleitamento materno, em alguns casos pode levar ao seu aumento, devido ao acesso limitado a outros alimentos (36).
Já os indicadores de ingestão alimentar MDD, MMF e MAD, apresentam nas três províncias um decréscimo acentuado entre 2015 e 2021, o que pode representar uma redução na qualidade e quantidade alimentar para um maior número de crianças dos 6 aos 23 meses, devido a menor diversidade alimentar e a um menor número de refeições diário (18, 22). Isto parece estar em linha com a redução da ingestão alimentar de todos os grupos alimentares estudados, como hortícolas, frutas, peixe e carne vermelha, reportada para África no GNR (7).
Os dados mais recentes da região (MDD: 10,7%; MMF: 20,7%; MAD: 3,5%) (22), evidenciam a necessidade de intervenções mais efetivas que permitam uma aproximação aos valores de África central (MDD: 19,3%; MMF: 34,4%; MAD: 9,4%), de todo continente africano (MDD: 23,8%; MMF: 44,7%; MAD: 13,2%), e a nível global (MDD: 28,9%; MMF: 51,7%; MAD: 18,2%) (35).
É de salientar que não foram encontrados dados sobre o consumo alimentar individual no sul de Angola ou a nível nacional, que permitam avaliar eficazmente o consumo na região. Como descrito, apenas o IIMS 2015-2016 e o AVSAN 2021 apresentam alguns dados sobre ingestão alimentar, por grupo alimentar, nas 24 horas anteriores, com base em perguntas de resposta “sim ou não” (18, 22).
Em suma, na região, observa-se uma redução da prevalência de DAG no Cunene e uma tendência positiva no aleitamento materno, porém, no geral, o estado nutricional, a diversidade e a frequência alimentar não atendem aos padrões desejados. Esta situação pode estar relacionada com a insegurança alimentar que afeta o sul de Angola, uma consequência das alterações climáticas que agrava a seca e provoca perdas na produção agropecuária (3, 15, 22, 37).
A situação alimentar e nutricional atual reforça a necessidade de monitorização frequente, através da implementação sistemática de inquéritos populacionais, como parte da estratégia pública (7), que permitam avaliar a evolução do estado nutricional e o consumo alimentar individual. Existem programas internacionais que harmonizam as guidelines e metodologia de recolha de dados fidedignos e comparáveis de avaliação do estado nutricional, como a MICS e a SMART, que podem ser implementadas sempre que necessário (25, 38) e a DHS que deve realizar-se a cada 5 anos (39), sendo que a SMART parece apresentar uma das metodologias mais completas (30, 40). Por sua vez, a avaliação do consumo alimentar a nível individual é também muito importante para melhor estimar as inadequações nutricionais e adaptar de forma mais direcionada as medidas de intervenção, contudo a sua metodologia ainda não se encontra harmonizada.
Por fim, ressaltam-se ainda outras limitações à análise realizada. Os inquéritos abrangeram áreas geográficas distintas, 1) o SMART 2019 e 2020 avaliaram apenas os municípios mais afetados pela seca, o que pode agravar os seus resultados (19, 21); 2) o AVSAN 2021 apenas incluiu os municípios da Huíla abrangidos pelo FRESAN, o que pode justificar discrepâncias entre o AVSAN 2021 e o SMART 2021, apesar de realizados no mesmo ano (20, 22). Outras diferenças podem dever-se à época de inquirição: o SMART 2021 foi aplicado na época de escassez de alimentos e o AVSAN 2021 na de maior abundância (20, 22). E por f im, no AVSAN 2021, os dados da Huíla de desnutrição aguda e de desnutrição crónica podem apresentar problemas de qualidade (22).
CONCLUSÕES
Globalmente nos últimos 15 anos, no sul de Angola, o estado nutricional e as práticas alimentares de crianças < de 5 anos aparentam ter piorado, indicando a necessidade de intervenções que permitam a aproximação aos targets de 2025.
A desnutrição aguda global, a desnutrição crónica global e o baixo peso global têm vindo a aumentar na região, à exceção da DAG que parece estar a diminuir no Cunene. A DAG na Huíla classifica-se como “alta” e a DCG em toda a região classifica-se como “muito alta”, afetando cerca de metade das crianças na Huíla e no Cunene. Por outro lado, destaca-se positivamente a prevalência de excesso de peso, que permanece baixa. O aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses na região apresenta sinais positivos, superando o target para 2025, contudo a diversidade e frequência alimentar das crianças dos 6 aos 23 meses aparentam um decréscimo. Estes resultados parecem relacionar-se com os níveis inadequados de insegurança alimentar verificados na região.
Ainda que já existam estratégias políticas e programas de intervenção para a mitigação da desnutrição infantil e da insegurança alimentar na região, como o Plano Estratégico Multissectorial de Nutrição 2019-2025 e a atuação local de organizações da sociedade civil, os resultados evidenciam que estas problemáticas continuam a ser um desafio. Assim, como parte da estratégia públicas para mitigar a situação atual, recomenda-se a monitorização sistemática do estado nutricional e a avaliação do consumo alimentar individual das crianças na região, de acordo com as guidelines internacionais, como por exemplo a avaliação SMART. Recomenda-se ainda a ampliação da capacitação dos profissionais de saúde na área da nutrição, através do alargamento da oferta de formação profissional e académica, como de licenciaturas e mestrados em ciências da nutrição, bem como o desenvolvimento de novas parcerias estratégicas e o possível reforço de infraestruturas em nutrição.
AGRADECIMENTOS
Este artigo foi realizado no âmbito da parceria técnica da Universidade do Porto no Programa FRESAN - Fortalecimento da Resiliência e da Segurança Alimentar e Nutricional em Angola, uma iniciativa do Governo de Angola, financiada pela União Europeia, cogerida e cofinanciada pelo Camões - Instituto da Cooperação e da Língua I.P.
O seu conteúdo é da exclusiva responsabilidade dos autores e não reflete necessariamente a posição da União Europeia ou envolve a expressão de qualquer opinião por parte da Cooperação Portuguesa.
Este conteúdo não reflete a posição oficial do Ministério da Saúde da República de Angola que não deve ser, por isso, veiculado às informações ou interpretações que possam surgir deste artigo.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
IV, RL, CL, DT: Revisão bibliográfica, participação na conceção do estudo, recolha, análise e interpretação de dados, elaboração do manuscrito; LG, SR, KF: Análise crítica dos dados, revisão do manuscrito e aprovação da versão final para publicação. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do artigo.














