Introdução
Particularmente nos países em desenvolvimento, o cancro de cabeça e pescoço é considerado um problema mundial de saúde pública (Lenza, Silva, Sonobe, Buetto & Martins, 2013). Como fatores de risco major para o aparecimento do cancro de cabeça e pescoço destacam-se o tabaco, a ingestão de álcool, bem como a interação de ambos e o vírus do papiloma humano. Outros fatores adicionais englobam défice na dieta de vitaminas e minerais, o estado imunitário, condições hereditárias e exposição a fatores de risco profissionais (Chi, Day & Neville, 2015).
O cancro da laringe e hipofaringe são tumores malignos frequentes na área de cabeça e pescoço (Wang et al., 2020). O cancro da laringe é um dos tumores que mais comummente atinge a região da cabeça e pescoço, representando 25% dos tumores malignos que afetam esta área e 2% de todas as doenças malignas (Lenza et al., 2013). A nível da laringe e hipofaringe, os tumores que afetam estas áreas têm uma incidência em Portugal de 1% e 0,72%, respetivamente (Bray et al., 2018). O tratamento cirúrgico é o tratamento mais comum para este tipo de neoplasias (Wang et al., 2020).
Quando se procede à confeção de um Faringostoma ou de um Esofagostoma?
Perante tumores da laringe com invasão faríngea, é necessário realizar laringectomia total e remover grande parte da faringe, havendo em algumas situações necessidade de confecionar um faringostoma para prevenir complicações cirúrgicas, tais como fístulas faringocutâneas, principalmente quando não existe a possibilidade de encerramento imediato com retalho ou enxerto.
A fístula faringocutânea é uma comunicação entre o trato digestivo e a pele do pescoço e é a complicação mais comum após laringectomia total, sendo elevada a sua taxa de morbilidade, a qual pode ocorrer entre a 1ª e a 4ª semana após a cirurgia (Do, Chung, Chang, Kim, & Rho, 2017; Álvarez-Morujo et al., 2020). É uma complicação grave que tem um grande impacto na qualidade de vida da pessoa, atrasando a cicatrização da ferida operatória, aumentando a permanência no hospital, afetando funções como a recuperação vocal e da deglutição (Wang et al., 2020). Quando existe a presença de fístula, o risco de infeção aumenta, podendo ocorrer rutura da artéria carótida ou da veia jugular, assim como rejeição do próprio retalho (Do et al., 2017).
O início da dieta oral, perante a presença de fístula, fica atrasado, e pela necessidade de antibioterapia e cicatrização, o começo do tratamento complementar com radioterapia pode também ficar comprometido (Do et al., 2017). Nestas situações pode ocorrer a formação de um faringostoma, não decorrente de um procedimento cirúrgico, mas decorrente da complicação de uma fístula faringocutânea. A fístula faringocutânea requer uma abordagem global desde a prevenção ao tratamento, onde o enfermeiro desempenha um papel crucial na deteção precoce e no sucesso do tratamento (Do et al., 2017). Quando a fístula faringocutânea é detetada tardiamente, existe má vascularização, extensa inflamação e necrose, podendo ser necessário primeiro construir cirurgicamente um faringostoma, de forma a isolar a ferida do fluxo de saliva e do conteúdo faríngeo, sendo posteriormente feita a reconstrução, quando a ferida estiver estável e limpa (Do et al., 2017).
O faringostoma consiste numa comunicação entre a faringe restante e o exterior através da pele cervical, por onde é drenada saliva, e associado a este estoma encontra-se o esofagostoma (Binelfa, Acuña, González, Gattorno, & González, 2006), que consiste numa ligação do esófago à pele cervical, local onde se introduz uma sonda esofagogástrica (SEG), para alimentação e hidratação (Ferro & Marty, 2009). O momento da cirurgia é essencial e deve permitir-se a possibilidade de encerramento espontâneo, o que significa geralmente 3 meses (Mallet & Kara, 2008).
Diagnósticos e intervenções de enfermagem à pessoa com o Faringostoma e Esofagostoma
Cirurgias major como a laringectomia total provocam enorme impacto físico, social e emocional na pessoa e família (Canduela et al., 2018) cujas consequências e possíveis complicações estão potenciadas na presença de um faringostoma e esofagostoma.
A pessoa com faringostoma e esofagostoma (Figura 1) requer cuidados específicos e individualizados, pela complexidade cirúrgica e pela proximidade do trato digestivo com a via respiratória, o que inclui assegurar que não há passagem de saliva ou alimentação para a árvore traqueobrônquica.
O período de tempo até ao encerramento do faringostoma e esofagostoma é longo, implicando geralmente prolongados períodos de internamento e a necessidade de cirurgia(s) reconstrutiva(s). Da nossa experiência, percebemos que a pessoa, a maior parte das vezes, tem apenas real consciência do seu estado após a alta hospitalar e quando retorna ao seu domicílio e ao convívio com a sua família e amigos.
Com a confeção de um faringostoma, a saliva passa a ser drenada para o exterior através do mesmo, requerendo por parte da equipa de enfermagem uma contínua vigilância, avaliação e adaptação, não só dos materiais utilizados para a realização do penso, mas também nos ensinos realizados à pessoa ou familiar acerca do autocuidado.
Tendo em conta o tipo de efluente do faringostoma (saliva) e a sua quantidade, a humidade será contínua, levando muitas vezes ao aparecimento de feridas de humidade na pele circundante ao faringostoma, principalmente na sua porção inferior. É consensual que a primeira linha de cuidados deve ser sempre a prevenção de situações de lesão visto que, com a existência de lesão, há um aumento dos custos de saúde, bem como um aumento das horas de cuidados de enfermagem (Martinho, Faustino & Escada, 2012). Com esse intuito devem ser realizados ensinos à pessoa sobre não deglutir a saliva e a higiene da pele com produtos de limpeza que não alterem o pH, devendo ser preferencial o uso do tradicional “sabão”, e posteriormente aplicar-se um hidratante/emoliente (Martinho et al., 2012). Nas pessoas em risco de desenvolver uma dermatite por incontinência recomenda-se um agente que tenha a função de proteção, que pode ser um creme barreira ou a película polimérica (Martinho et al., 2012). Assim, a limpeza da zona deve ser realizada com cloreto de sódio a 0,9% e mediante a avaliação realizada pode ser utilizado uma película de proteção cutânea, que vai criar um revestimento respirável e transparente na pele ou um creme barreira.
Na realização do penso do faringostoma, existem vários materiais que podem ser utilizados, devendo o mesmo ser adaptado à pessoa, tendo em conta a fase de cicatrização em que o faringostoma se encontra, a localização do mesmo, a quantidade de efluente, o estado da pele em redor, se se encontra a fazer tratamento com radioterapia e o conforto da pessoa. A execução do penso do faringostoma pode passar pela utilização de compressas de tecido não tecido ou carboximetilcelulose como penso primário (o mesmo não deve exercer pressão sobre o faringostoma) e como penso secundário, podem ser utilizadas compressas ou pensos absorventes. A literatura apresenta o uso de alginato no tratamento de fístulas faringocutâneas para a gestão do exsudato salivar (González-Antolín, 2017).
O uso de fraldas/absorventes de incontinência com maior capacidade de absorção e de afastar a humidade do contacto com a pele é também descrito como uma medida adjuvante (Martinho et al., 2012).
Em termos de fixação do penso, pode ser utilizado adesivo (deve ser realizada tricotomia frequente para maior adesividade), ligadura (evitando que a mesma faça compressão cervical) ou rede tubular (nº 6/8, tendo em conta o doente e dimensão do penso realizado).
Dependendo da localização do faringostoma, existe também a possibilidade de adaptação de saco de fístula ou de dispositivo de ostomia de eliminação. Na escolha do material deve ser tomada em conta a quantidade de saliva/efluente e a capacidade da pessoa ou familiar/cuidador em colocar o dispositivo em drenagem ou substituir o mesmo.
Para assegurar a continuidade de cuidados é necessário proceder ao registo no Sclínico dos cuidados realizados, sendo que o alvo dos nossos cuidados é o doente e o familiar/cuidador.
No pós-operatório são diversos os focos que estão subjacentes aos cuidados destes doentes, que incluem a ferida cirúrgica, limpeza das vias aéreas, autocuidado, imagem corporal e conhecimento entre outros. Optámos por nos focarmos nos cuidados dirigidos ao cuidar do faringostoma e esofagostoma. O nosso foco será a capacitação para o autocuidado, uma vez que por um período de tempo indeterminado, mas por norma prolongado, existe a necessidade de cuidados ao faringostoma, na maioria dos casos mais do que uma vez por dia. Essa capacitação para o autocuidado será sempre adaptada à pessoa ou familiar/cuidador, após avaliação da capacidade das mesmas. Esta é iniciada ainda enquanto a pessoa se encontra internada, continuando durante o seu acompanhamento em ambulatório.
Os cuidados com o traqueostoma são igualmente importantes, uma vez que tanto o faringostoma como o esofagostoma são frequentemente confecionados anatomicamente acima do traqueostoma, tornando-o vulnerável à entrada, quer de saliva, quer de conteúdo alimentar para a árvore traqueobrônquica. Para prevenir que tal aconteça, muitas vezes opta-se por colocar alginato de cálcio em tira ou compressa enrolada em redor da cânula externa. Por vezes, torna-se necessário o uso de cânula com cuff, quando a quantidade de saliva/efluente é muito elevada ou existe frequente refluxo gastro esofágico, tornando-se necessário articular com a equipa médica para instituição de terapêutica.
O Quadro 1 mostra os principais diagnósticos e intervenções direcionadas para a ostomia respiratória. De salientar que o suporte informático de registo - Sclínico - não possui nenhum diagnóstico dirigido especificamente ao cuidado ao faringostoma, pelo que em complemento utilizamos algumas intervenções dirigidas aos cuidados à pele e penso, utilizando as notas gerais para escrever a restante informação pertinente.
Foco: Autocuidado
Tal como com o faringostoma, também a pele peri traqueostoma deve ser vigiada, de forma a evitar o aparecimento de lesões de humidade. Caso seja necessário deve-se utilizar película de proteção cutânea ou creme barreira.
Associado ao faringostoma é confecionado também um esofagostoma, por onde é introduzida uma PEG (gastrostomia percutânea endoscópica) para alimentação e hidratação. A manutenção da mesma requer cuidados e ensinos que devem ser realizados à pessoa e ao seu familiar/cuidador, tais como: fixação da PEG com fita de nastro; verificação o nível a que se encontra a PEG antes de iniciar a administração de alimentação; indicação para não se deitar cerca de 1 hora após a refeição, optando por permanecer sentado ou deambular; realização de polifracionamento alimentar e administração lenta da dieta.
Como estratégia para proteção da via aérea e consequente prevenção de aspiração pulmonar, deve-se controlar o conteúdo gástrico e reduzir o refluxo gastro esofágico (Moro, 2004). Para prevenir a passagem de alimentação para árvore traqueobrônquica em caso de refluxo gastro esofágico, é colocada uma compressa em redor da PEG que exerce um efeito tipo tamponamento.
De forma a assegurar a continuidade de cuidados, através dos registos utilizamos o foco autocuidado da ostomia de alimentação, promovendo o potencial para melhorar o conhecimento e capacidade do próprio e do familiar/cuidador (Quadro 2).
Foco: Autocuidado
Torna-se importante salientar que, na pessoa que é submetida a laringectomia total com confeção de faringostoma e esofagostoma, a realização de cuidados orais é fundamental, tendo em conta a extensão da cirurgia, o estado nutricional de base da pessoa, a localização das suturas operatórias e o tipo de efluente que este estoma drena (saliva). A realização preventiva de cuidados orais é essencial para a redução de pneumonias em doentes em estado crítico, assim como a higiene oral com antisséptico, assumem uma grande importância na redução da carga microbiana, melhorando o quadro clínico, reduzindo infeções e propiciando condições favoráveis à melhoria da pessoa (Romani & Cruz, 2013; Silveira, Maia, Gnatta, & Lacerda, 2010). É fundamental que os enfermeiros compreendam a importância da realização dos cuidados orais na pessoa submetida a confeção de faringostoma e esofagostoma, assim como a importância dos ensinos realizados acerca dos mesmos, não só à pessoa mas também aos seus familiares/cuidadores.
É função da equipa de enfermagem ensinar, instruir, treinar, supervisionar e apoiar a pessoa com ostomia respiratória no desenvolvimento do seu conhecimento e capacidade para o autocuidado da mesma. Este processo inicia-se no internamento, devendo ser mantido no ambulatório, referenciando posteriormente para os apoios na comunidade.
A monitorização e seguimento destas pessoas deve ser realizada por um enfermeiro com formação específica na área da Estomaterapia, englobando a avaliação do estado geral da pessoa, a avaliação do estoma e pele periestoma, capacitação para o autocuidado e adesão ao plano terapêutico, adequando a periodicidade deste seguimento às necessidades da pessoa (DGS, 2017). Este seguimento deve ser realizado para reavaliação do autocuidado, prevenção e deteção de complicações da pele peri-estoma e do estoma e avaliação da adaptação aos acessórios de ostomias, introduzindo alterações, sempre que necessário (DGS, 2017).
Conclusão
Predominantemente, o tratamento do faringostoma e esofagostoma é conservador, devendo a equipa de enfermagem atuar de modo a manter a pessoa estável, o mais independente possível, realizando os cuidados inerentes. Da nossa prática clínica, e pelo facto deste tipo de situações não serem muito comuns, constatamos que existe algum desconhecimento na comunidade sobre como cuidar de uma pessoa com faringostoma e esofagostoma. Sintetizamos por essa razão aqueles que nos parecem ser os cuidados mais específicos neste tipo de situação.
O nosso maior foco é a capacitação da pessoa com faringostoma e esofagostoma e seus familiares/cuidadores para a realização do autocuidado, promovendo a sua readaptação à sua nova condição.
O planeamento dos cuidados de enfermagem, com base em conhecimentos e habilidades técnico-científicas acerca do tratamento de feridas, aliadas à dimensão psicossocial e tendo em conta as necessidades físicas e emocionais da pessoa, resultará em intervenções de maior qualidade, procurando que o retorno da pessoa à comunidade se faça com a maior qualidade de vida possível.