Introdução
A doença oncológica é um problema atual e transversal a todas as faixas etárias. Estão disponíveis várias estratégias terapêuticas capazes de um controlo eficaz da doença, existindo muitas vezes uma possibilidade de cura. As abordagens terapêuticas passam frequentemente por tratamentos agressivos com efeitos colaterais importantes, nos quais se destaca a quimioterapia (Miller et al., 2016). Este recurso terapêutico é utilizado na maioria dos casos, em algum momento do percurso de doença, sendo responsável por inúmeros efeitos colaterais (Bahrami, 2011), com efeitos negativos nos doentes e nos seus familiares cuidadores (Kotronoulas et al., 2012). A maioria das vezes, a avaliação e gestão destes efeitos colaterais ou complicações é efetuada pelo doente (ou pessoa significativa), no domicílio. Nas duas últimas décadas, tem-se assistido a uma mudança na administração dos agentes citostáticos, e concomitantemente do tratamento de quimioterapia. De um cenário hospitalar, em contexto de enfermaria, pressupondo internamento, para um cenário de hospital de dia, em contexto de ambulatório; ambas contemplando uma administração, dos agentes citostáticos, essencialmente parenteral. Isto deveu-se essencialmente ao facto, de hoje, ser possível uma melhor gestão dos efeitos secundários da quimioterapia, permitindo que os tratamentos sejam melhor tolerados, sem recurso ao internamento (Cusack et al., 2004). Por outro lado, nos últimos anos também se tem assistido ao aumento generalizado do uso de quimioterapia por via oral, o que também contribui para a mudança no paradigma do tratamento oncológico. A auto-administração da quimioterapia oral engloba uma série de desafios para os doentes e profissionais de saúde por forma a garantir uma adequada adesão e toxicidades controladas (Weingart et al., 2008). A não adesão pode reduzir a eficácia do tratamento e levar a complicações graves para a saúde, incluindo a morte (Font et al., 2019; Makubate et al., 2013). As taxas de adesão aos agentes antineoplásicos orais podem ser tão baixas quanto 46% (Greer et al., 2016). Apesar disso, a maioria das instituições de saúde não praticam procedimentos padronizados para a monitorização da adesão aos tratamentos (Weingart et al., 2012). A adesão é definida como a medida em que o comportamento de ingestão de medicação de um doente corresponde às recomendações acordadas pelo clínico (World Health Organization, 2003). As tecnologias estão a ser cada vez mais utlizadas para auxiliar os doentes com doenças crónicas a aderirem aos esquemas terapêuticos (Hamine et al., 2015). Os telemóveis são uma plataforma tecnológica que permite a transmissão de intervenções comportamentais, monitorizações e recolha de dados em tempo real (Heron et al., 2010); e também podem facilitar o acesso dos doentes aos serviços de saúde, nomeadamente quando existe uma localização geográfica distante desse serviço ou mobilidade limitada. Mensagens de texto e aplicativos móveis (app´s) são as duas grandes estratégias (ferramentas), baseadas na utilização de telemóveis, que mais frequentemente são utilizadas para dar suporte a doentes com doenças crónicas (Hamine et al., 2015). A maioria das estratégias estudadas foi capaz de melhorar os sintomas dos doentes, independentemente das funcionalidades, complexidade e diferenças na intervenção (Lancaster et al., 2018), melhorando ainda os resultados de autogestão e autoeficácia do doente.
Com base nestas novas potencialidades na área da saúde, surge o conceito de eHealth. O termo genericamente abrange uma ampla gama de tecnologias, incluindo computadores, telefones, telemóveis ou outras formas de comunicação sem fio, usadas no acesso aos cuidados de saúde, comunicação com os profissionais de saúde, gestão de cuidados e educação (Pagliari et al., 2005). Dentro deste conceito, surge o conceito de saúde móvel (mHealth), definida pelo Global Observatory for eHealth da Organização Mundial da Saúde como “medical and public health practice supported by mobile devices, such as mobile phones, patient monitoring devices, personal digital assistants (PDAs), and other wireless devices” (WHO Global Observatory for eHealth, 2011).
Também no âmbito da doença oncológica, se tem assistido a um fenómeno idêntico, a inovação constante em abordagens informáticas para a monitorização dos sintomas (Magalhães et al., 2019), existindo uma ampla variedade de plataformas informáticas que capturam eficientemente os sintomas relatados pelos doentes (Basch et al., 2005). A viabilidade e a aceitabilidade do doente de tais abordagens têm sido amplamente estudadas, revelando-se bem-recebidas (Basch et al., 2005; Berry et al., 2011). O relato dos sintomas pelos doentes denomina-se de PROs (“Patient-reported outcome”) e o seu uso rotineiro no atendimento do doente oncológico tem-se revelado uma estratégia utlizada para a monitorização dos sintomas associadas ao tratamento (Basch et al., 2011), demonstrando muitos benefícios, como a melhoria da comunicação entre profissionais de saúde e doentes, e tem levado a uma melhor consciencialização sobre os sintomas e inclusive a melhores indicadores de sobrevivência (Yang, et al., 2018). Foi demonstrado recentemente que o uso de um sistema baseado na internet para avaliar os PROs, combinado com alertas por e-mail para enfermeiros, resultou em melhor qualidade de vida relacionada com a saúde (HR-QoL); em menos visitas ao serviço de urgência; em menos internamentos por complicações; e em maior sobrevida global, em comparação com os cuidados habituais (Basch et al., 2017; Basch et al., 2016).
Por outro lado, envolver os doentes na gestão responsável de sua saúde é amplamente reconhecido como uma maneira de responder eficazmente a esses desafios tecnológicos. De facto, são os doentes que apresentam uma gestão ativa e eficaz dos seus cuidados de saúde, que demonstram obter resultados clínicos mais positivos do que os doentes passivos e não envolvidos no processo de tratamento (Barello et al., 2016). Considera-se assim que o engagement em intervenções de mudança de comportamento suportado em eHealth e mHealth é importante para a eficácia da intervenção (Short et al., 2018), no entanto, a investigação nesta área tem negligenciado este aspeto (Skrabal Ross, et al., 2018; Warrington et al., 2019).
A literatura tem demonstrado que uma das principais barreiras à implementação do sistema de eHealth tem sido a falta de envolvimento dos doentes (Lancaster et al., 2018), resultando em baixas taxas de utilização destas ferramentas. Os utilizadores com elevado nível de envolvimento são aqueles que geralmente veem mais melhorias nos resultados relacionados com a saúde.
Numa ampla e recente revisão da literatura sobre a utilização dos recursos de mHealth na área da saúde, não foram demonstradas diferenças nas toxicidades dos sintomas relacionados com quimioterapia, quando os doentes recorreram a app´s para relatar sintomas e receber aconselhamento de autocuidado (Marcolino et al., 2018). Já uma revisão da literatura recente, acerca dos resultados da utilização de app’s, na melhoria dos resultados clínicos em doentes com cancro (Osborn et al., 2019), demostra que estas podem melhorar os aspetos relacionados com o controlo dos sintomas, mas mostra baixos níveis de evidência para outros tipos de resultado.
As últimas evidências disponíveis (Magalhães et al., 2020), no que diz respeito à utilização de app´s durante o tratamento de quimioterapia, têm demonstrado uma eficácia na melhoria do nível da fadiga, um relato mais preciso dos eventos adversos associados ao tratamento e ao aumento da auto-eficácia e melhoria da qualidade de vida.
Desenvolvimento
Os processos tradicionais de prestação de cuidados e serviços de saúde estão a passar por uma mudança drástica para atender às necessidades presentes e futuras dos doentes, muito à custa da proliferação da tecnologia, no qual a informação relativa à saúde das pessoas é oportuna e omnipresente. O avanço das tecnologias no âmbito da eHealth e, mais especificamente, na mHealth tem oferecido alternativas promotoras da interação entre os profissionais de saúde e os doentes, fora do contexto habitual de consulta hospitalar cara-a-cara (Fortney et al., 2011).
Nesta nova era, é possível dotar os profissionais de saúde com informações detalhadas, e em tempo real, sobre o estado de saúde dos doentes, bem como propor soluções personalizadas em função da informação recebida (Azar et al., 2016). Se integradas e apoiadas adequadamente, essas ferramentas podem melhorar o tratamento, capacitar melhor os doentes e previsivelmente reduzir os custos médicos, agilizando o uso dos recursos de saúde (Badawy et al., 2016; Hung et al., 2016).
Os dispositivos móveis, em especial as app’s, visam melhorar o acesso das pessoas à informação e ao conhecimento, sem restrições de tempo e espaço. A possibilidade da queda de barreiras de tempo e espaço permite também novas formas de comunicação, de vigilância e de intervenção (Boulos et al., 2014; Clay, 2011) podendo, em suma, potenciar uma nova forma de “cuidar”. Tais características agregam valor estratégico para a nova sociedade da era da informação.
Aliás, esta visão inovadora e com sentido de oportunidade é latente nas primeiras publicações relativas à app “Mobile Phone Project” (Larsen et al., 2011; Larsen et al., 2008; Weaver et al., 2007), em que, para além da monitorização das complicações associadas ao tratamento de quimioterapia, tinha como principal objetivo o ajuste da dose das terapêuticas orais, em função das toxicidades apresentadas pelo doente.
A capecitabina oral é autorizada pela EMEA (European Medicines Agency) em 2001 (Colomer et al., 2010), e em 2007 é publicado o primeiro estudo referenciando a app “Mobile Phone Project” (Weaver et al., 2007), que tinha, entre os seus objetivos, o ajuste da dose da capecitabina em função das toxicidades apresentadas pelo doente. Ao se fornecer a dose máxima tolerável a cada doente, a probabilidade de resposta ao tratamento era maximizada, regulando os efeitos secundários para níveis seguros e aceitáveis para os doentes. A inovação passou pelo controlo individualizado que a app possibilitava em tempo real; a toxicidade era monitorizada desde o domicílio do doente, permitindo adaptações sistemáticas da quimioterapia oral.
Podemos situar o aparecimento desta funcionalidade na década em que se inicia o advento das terapêuticas orais (Colomer et al., 2010) e em que a administração se realiza longe da vigilância dos profissionais de saúde, e particularmente dos enfermeiros.
A forma de disponibilização dos aplicativos tem variado ao longo do tempo. Historiando, podemos referir que, numa fase inicial, eram disponibilizados como programas incorporados nos próprios telemóveis ou então disponibilizados para PDA (personal digital assistants).
Desde 2015, todas as aplicações têm sido disponibilizadas para smartphones, encontrando-se acessíveis nas plataformas Apple iOS® ou Android® (Magalhães, 2020). As aplicações para dispositivos móveis são maioritariamente disponibilizadas em língua inglesa. No entanto, também existem aplicações em mandarim, coreano, alemão e italiano. Em Portugal, um grupo de investigadores encontra-se a desenvolver uma aplicação informática - a iGestSaúde, modulo quimioterapia, que visa monitorizar, promover e apoiar o processo de autogestão dos sintomas associados ao tratamento de quimioterapia, bem como a gestão do regime terapêutico associado (Magalhães, 2020).
A evidência mais atual no âmbito da eHealth tem sido disseminada através de várias formas, incluindo literatura revista por pares, atas ou resumos de congressos, relatórios, apresentações e blogs. A base de evidências é heterogénea em termos de qualidade, abrangência e objetividade do relatório de intervenções neste âmbito, tornando as comparações entre as estratégias de intervenção difíceis. Estas dificuldades, aliadas à heterogeneidade dos conteúdos dos artigos, apelaram à publicação de um conjunto de normas que possam harmonizar e melhorar a qualidade de futuras publicações nesta área, para facilitar a triagem de evidências emergentes e a identificação de lacunas nas evidências (Tomlinson et al., 2013). E, é neste contexto que surge o CONSORT-EHEALTH, visando fornecer orientações sobre a notificação de estudos que envolvam intervenções baseadas em eHealth e mHealth (Eysenbach, 2011).
Para melhorar a abrangência dos relatórios das intervenções de saúde móvel (mHealth), o Grupo de Revisão de Evidência Técnica da mHealth da Organização Mundial da Saúde também desenvolveu uma lista de verificação para relatórios de avaliação de evidências no âmbito da saúde móvel, o “mHealth Evaluation, Reporting and Assessment” (mERA) (Agarwal et al., 2016). O princípio orientador deste grupo foi identificar um conjunto mínimo de informações necessárias para definir o que é a intervenção em saúde móvel (conteúdo), onde está a ser implementada (contexto) e como foi implementada (características técnicas), para assim se apoiar a replicação da intervenção.
Também existe a “Mobile App Rating Scale” (MARS), construída para avaliar a qualidade das app’s (Stoyanov et al., 2015). A escala MARS possui 29 itens medidos em uma escala de 5 pontos agrupados em seis domínios (engagement, funcionalidade, estética, informação, impacto subjetivo e percebido). O engagement, avaliado através da medição de características de como classificar a app: divertida, interessante, personalizável, interativa (por exemplo, envia alertas, mensagens, lembretes, dá feedback, permite compartilhar conteúdos, etc.) ou se é bem direcionada ao público-alvo.
Implicações para a prática
As app’s abrem a possibilidade de um atendimento 24 horas por dia, no qual os alertas eletrónicos gerados podem ser monitorizados em tempo real pela equipa de saúde (Milani et al., 2016). Na prática, os serviços fora do horário de expediente semanal poderão não ser robustos o suficiente para uma resposta clínica eficaz, durante todo o tempo. Embora as app’s facilitem a comunicação com as equipas de saúde, emitam alertas aos serviços, e muitas vezes deem orientações de autocuidado, é necessário ter cuidado em garantir que os doentes entendam que o aplicativo não é um substituto ao atendimento usual, mas sim um complemento (Subbe et al., 2019).
Atualmente, qualquer pessoa pode criar e publicar aplicativos médicos ou de saúde nas lojas de aplicativos (Apple store® ou Android store®) sem ter que testá-los, e os utilizadores podem experimentá-los por livre arbítrio, sem qualquer garantia de qualidade e acompanhamento diferenciado. Por estes motivos, começa-se a abordar o conceito de prescrição de app’s (Byambasuren et al., 2018), por forma a se garantir que os aplicativos funcionam, têm políticas de privacidade e segurança de dados justas e, no mínimo, que podem ser utilizadas com segurança.
A recém-criada NHS Apps Library (acessível em: https://www.nhs.uk/apps-library/) retrata bem a preocupação dos sistemas de saúde nesta área, procurando dar resposta às grandes questões de fragilidade de segurança e de proteção dos dados identificados em aplicativos anteriormente recomendados (Huckvale et al., 2015). Alguns países como os Estados Unidos e o Reino Unido criaram a plataforma AppScript (https://www.appscript.net/), que é uma base de dados que reúne todas as app’s passíveis de serem indicadas pelos sistemas de saúde.
A criação destes repositórios, como as diretrizes clínicas nacionais, aliado a um órgão regulador reconhecido pode decidir qual a matriz de avaliação para se aferir acerca da segurança dos aplicativos e determinar quais os que se podem consideram seguros para uso na prática, naquele país específico.
Apesar de tudo, tem havido inúmeros esforços, a nível mundial, por forma a se garantir as devidas avaliações de qualidade e eficácia dos aplicativos de mHealth. No entanto, cada um tem o seu percurso de desenvolvimento e a sua estrutura própria de avaliação, como pode ser observado neste trabalho. No entanto, ainda permanece uma falta de consenso sobre como determinar se os aplicativos são eficazes e seguros (Torous et al., 2016).
Implicações para a investigação
Existe um amplo consenso acerca da avaliação de intervenções clínicas, como as intervenções farmacológicas, onde os ensaios controlados randomizados são o método ideal. No entanto, ainda não existe consenso para a avaliação de intervenções complexas, como as que utilizam intervenções no âmbito da eHealth. No entanto, acredita-se que é no “pluralismo metodológico” (Brown et al., 2008; Kaplan, 2001) que reside a capacidade de captar e avaliar intervenções neste âmbito. Ou seja, é fundamental interpretar o resultado da investigação quantitativa, pois pode fornecer informações numéricas importantes (métricas) sobre o desempenho dos aplicativos móveis e como são clinicamente relevantes para a prática (ao diminuírem as toxicidades, ao melhorarem a adesão aos tratamentos, ao melhorarem a qualidade de vida, entre outros). Mas também pela possibilidade de generalização dos resultados, nos quais a prática baseada na evidência se fundamenta e hierarquiza na metodologia de investigação utlizada. Já a investigação qualitativa pode fornecer informações sobre tópicos como a facilidade de uso, a experiência do uso, pois será determinante para o seu uso bem-sucedido.
É assim necessário reconhecer também a importância da realização de um trabalho quantitativo e qualitativo combinado (Pluye et al., 2014; Scott et al., 2009), para a avaliação das intervenções no âmbito da eHealth. Van der Meijden et al. (2003) argumentam que a integração de métodos de recolha de dados qualitativos e quantitativos oferece uma oportunidade de melhorar a qualidade dos resultados através da triangulação, pois os dados de diferentes fontes complementam-se por forma a fornecer um quadro analítico mais completo. Neste domínio, é possível identificar estudos de métodos mistos (Breen et al., 2017; Forbat et al., 2009; R. Maguire et al., 2005; McCann et al., 2009; Moradian et al., 2018; Andrew Weaver et al., 2014; Wright et al., 2018; Jiemin Zhu et al., 2017b), com uma componente quantitativa e qualitativa, mas a abordagem metodológica para a sua análise seria diferente dos modelos de revisão sistemático da literatura que habitualmente são apresentados.
Independentemente da postura teórica, relativamente ao engagement (Magalhães et al., 2020), categorizando as variáveis em comportamentais, cognitivas e emocionais, fica claro o quanto insipiente e não integrada esta abordagem tem sido na avaliação da eficácia das intervenções de eHealth. Além disso, os estudos carecem de uma avaliação sistemática do nível de engagement/ativação do doente pré e pós-intervenção. Futuros estudos poderão considerar, de acordo com alguns modelos teóricos, examinar não apenas o impacto da eHealth no engagement do doente, mas também relacioná-lo com outras caraterísticas individuais. Por exemplo, avaliar se quem usa a eHealth é mais ou menos envolvida ou se a quem a eHealth mais ajuda é mais ou menos envolvida.
Embora alguns questionários de autopreenchimento projetados para medir o engagement demonstrem boa validade e confiabilidade (Craig Lefebvre et al., 2010; O’Brien & Toms, 2010) eles normalmente são sensíveis a uma mensuração após, e não durante a intervenção, sendo um indicador de resultado e não do processo em si. É reconhecido o elevado risco de viés dos ensaios clínicos nesta aérea, pela incapacidade de cegar a intervenção, e assim podermos estar perante o fenómeno que alguns autores denominam por efeito placebo digital (Torous et al., 2016). Dado o ritmo rápido de inovação em tecnologia digital, este pode não ser a melhor metodologia para avaliar o impacto (Pham et al., 2016). Com uma duração prolongada desde o recrutamento até à publicação, os custos elevados, e um rígido protocolo, os ensaios clínicos randomizados controlados são considerados uma metodologia de avaliação impraticável para a maioria das aplicações de saúde móvel. Há também uma qualidade inerente ao software que não se presta à rigidez dos ensaios clínicos randomizados controlados - o software destina-se a mudar, evoluir, progredir e aprender ao longo do tempo, tudo num ritmo acelerado. Protocolos rígidos de estudo minam esse princípio, já que testes controlados foram planeados para intervenções que levam anos, até décadas, para se desenvolver, isto é, dispositivos médicos e fármacos. Mohr et al. (2013) propuseram a “Continuous Evaluation of Evolving Behavioral Intervention Technologies” (CEEBIT) como uma alternativa “padrão-ouro” aos ensaios clínicos randomizados controlados. A metodologia CEEBIT é estatisticamente ativada para avaliar continuamente a eficácia do aplicativo durante a duração do teste e é responsável pela alteração das versões do aplicativo por meio de um sofisticado processo de eliminação.
Novos projetos de experimentação fatorial (Linda et al., 2014) foram propostos na investigação de eHealth e estão a ser cada vez mais usados para testar vários recursos das app’s e assim determinar as combinações e adaptações ideais para desenvolver a aplicação eficaz. Estes incluem “multiphase optimization strategy” (MOST) (Collins et al., 2005), o estudo randomizado sequencial de atribuição múltipla (SMART) (Lei et al., 2012) e o ensaio micro-randomizado (Klasnja et al., 2015); começando a aparecer publicações com estas novas metodologias (Kramer et al., 2019) neste âmbito.
Intervenções de eHealth funcionam em parte através da mudança dos padrões de comunicação entre os doentes e sua rede de suporte formal. Ensaios controlados e randomizados podem não ser a maneira mais adequada para testar intervenções complexas e multifacetadas, no âmbito do eHealth, que são difíceis de ocultar, o que aliás foi o critério que determina uma classificação “moderada”, aquando da avaliação da qualidade metodológica em alguns dos ensaios clínicos (Egbring et al., 2016; Kearney et al., 2009; Zhu et al., 2018a) neste contexto. Estudos usando registos de doentes podem ser a alternativa para avaliar esse tipo de intervenções, utilizando os “randomized registry trial”, para os quais começam a surgir publicações (Buccheri et al., 2019; Sundh et al., 2019).
Assim, é fundamental consensualizar um conjunto padronizado e alargado de métricas utilizadas na avaliação dos sistemas de saúde e na investigação, que permitirá a agregação de dados para informar sobre a melhor implementação, a prática clínica e, em última análise, os resultados de saúde associados ao uso de tecnologias de eHealth voltadas para o doente (Wakefield et al., 2017).
Limitações decorrentes da sua conceção
A grande crítica que é feita às app’s para smartphones passa pelo não envolvimento dos profissionais no seu processo de desenvolvimento, o que aliás é discutido numa ampla revisão sobre este tipo de recursos, disponíveis no mercado, para doentes com cancro de mama (Mobasheri et al., 2014). Neste mesmo sentido, alguns estudos identificam a falta de conteúdos baseados em evidências e a falta de envolvimento dos profissionais de saúde na sua conceção (Collado-Borrell et al., 2016; Mobasheri et al., 2014). Para uma melhor fiabilidade na utilização destes aplicativos, e na promoção da sua utilização pelos serviços de saúde, deverão, no desenvolvimento dos seus conteúdos, recorrer a evidências científicas suportadas pela opinião de peritos (profissionais de saúde), aliadas ao recurso a um controlo robusto, no sentido de identificar os aplicativos de qualidade. Neste domínio, destacam-se as preocupações de segurança, nomeadamente com a necessidade de registo dos ensaios clínicos associados ao seu desenvolvimento, conforme os que aqui foram identificados (Agboola et al., 2014; Breen et al., 2015; Fishbein et al., 2017; Roma Maguire et al., 2017; Passardi et al., 2017; Jiemin Zhu et al., 2017a), divulgação total da sua autoria e regulamentação desta área. Cientes desta necessidade, as autoridades reguladoras também começaram a normalizar o setor (Onodera et al., 2018), e a aprovar aplicativos médicos móveis como dispositivos médicos, com regulamentação própria, e a obrigação de atualizar periodicamente as informações nelas inclusas.
Outra das questões que é essencial garantir é o envolvimento do doente na investigação clínica, por forma a que se atenda às reais necessidades dos doentes que serão o seu público-alvo (Skilton et al., 2016). A relevância do envolvimento dos doentes na conceção, implementação e avaliação da investigação em saúde tem sido amplamente reconhecida (Domecq et al., 2014). O uso de um modelo de investigação participativa permite a geração de perguntas de investigação mais significativas, o alinhamento dos objetivos de intervenção com as necessidades dos utilizadores finais, o aumento da aceitabilidade e usabilidade das intervenções em saúde e o aprimoramento da tradução dos resultados em contextos reais.
Estratégias futuras de desenvolvimento
É importante que os sistemas de mHealth evoluam no sentido de combinar o contacto humano contínuo (por exemplo, coaching, suporte de enfermagem, médico ou de grupos de apoio) com o contacto tecnológico pontual, para que não prevaleça apenas a tecnologia. Isso significa que um sistema de monitorização ou acompanhamento remoto seja apenas uma das partes que constituem “os cuidados” a oferecer aos doentes oncológicos a realizarem tratamentos de quimioterapia.
Poderiam ser acoplados mecanismos que incentivem o envolvimento dos utilizadores, como, por exemplo, através da gamificação. A gamificação corresponde à aplicação de elementos de videojogos, através do embarque em missões, com o objetivo de ganhar troféus ou distintivos, em contextos de saúde (Deterding et al., 2016).
A conexão de dispositivos às app’s que adicionem informação (dados passivos) para uma melhor compreensão da condição clínica do utilizador já foi aqui citada através da utilização de dispositivos “wipeable” (Agboola et al., 2014; Cheong et al., 2018; Fishbein et al., 2017; Soh et al., 2018; Wright et al., 2018). No entanto, há referência a muitas outras na literatura, com a utilização de um simples acelerómetro (Soto-Perez-De-Celis et al., 2018), os “smartwatch” (Hoilett et al., 2018; Pope et al., 2018), ou outros dipositivos que entretanto venham a ser comercializados.
O processo de desenvolvimento, num futuro próximo, e depois de se massificar a utilização das app’s como complemento aos cuidados clínicos poderá passar pelo desenvolvimento de algoritmos de software computorizado com respostas imediatas às solicitações dos doentes, com recurso a dispositivos inteligentes que podem monitorizar e auxiliar os doentes a qualquer momento e em qualquer lugar e, assim, capacitá-los a levar vidas independentes. A monitorização remota e em tempo real dos doentes é uma questão importante na telemedicina (Kalid et al., 2017), nos quais, devido à portabilidade dos dispositivos móveis, podem representar um contributo importante.
Outra das estratégias poderia ser incluir os cuidadores neste processo, dando-lhes acesso a algumas funcionalidades do aplicativo (lembretes para consultas e administração de medicamentos, nível de toxicidade dos sintomas e respetivas orientações de autocuidado), uteis para o familiar cuidador.
Conclusão
Os smartphones e as suas app’s são uma plataforma tecnológica que permite a disponibilização de orientações de cariz comportamental (autocuidado, atividade física, etc.), e a avaliação e recolha de dados em tempo real (Heron et al., 2010); e, mais importante ainda, podem ser um elemento facilitador no acesso aos serviços de saúde, quer devido à localização geográfica remota ou às dificuldades associadas à mobilidade limitada de alguns doentes que não podem recorrer tão facilmente a serviços de saúde.
A capacidade de capturar os dados dos sintomas relatados pelo doente em tempo real é, portanto, o “padrão de ouro” para permitir uma rápida tomada de decisão clínica e desenvolver intervenções para melhorar os resultados dos doentes oncológicos em tratamento de quimioterapia. Não há dúvida de que estamos a presenciar uma nova era do cuidar e de “vigilância tecnológica” associada aos tratamentos de quimioterapia, assim como à forma como são monitorizadas as complicações associadas ao tratamento, como são emanadas as orientações, como é monitorizada a gestão e a adesão às terapêuticas, e sobre a forma como os profissionais e os doentes comunicam, tendo em conta os recursos disponibilizados pelas novas tecnologias de informação. No entanto, ainda é necessário percorrer um longo caminho por forma a tornar estes recursos válidos, seguros e acessíveis aos utilizadores. A avaliação da eficácia das intervenções no âmbito da mHealth deverá ultrapassar as limitações metodológicas que hoje lhes reconhecemos, para ensaios clínicos mais robustos, como maiores tamanhos amostrais, com resultados avaliados através de medidas mais centradas na dimensão clínica, mas nunca descurando o envolvimento do doente no processo.
Muitos dos estudos analisaram exclusivamente a viabilidade (usabilidade e funcionalidade) das app’s, descurando, um pouco, a aceitabilidade por parte dos utilizadores, muito monitorizada pela adesão ao aplicativo móvel e por pontuais questionários de satisfação que foram sendo aplicados. No entanto, a comparação entre os estudos é difícil, devido às amplas e variadas métricas utlizadas, conforme aqui fica demostrado. Além das diretrizes que já existem, no desenvolvimento e na elaboração dos relatórios de investigação, no âmbito da saúde móvel; da postura das entidades reguladoras e dos instrumentos de avaliação preconizados para a avaliação das app’s, é necessário desenvolver diretrizes sobre as métricas consideradas essenciais para se avaliar e relatar cada um dos domínios que o desenvolvimento do aplicativo móvel pode apresentar, para o utilizador, para o próprio aplicativo, e para a clínica.
É manifesta uma falta de evidências para se aferir a real eficácia da utilização de app’s, centradas nos doentes e na melhoria de resultados clinicamente relevantes. Além do valor e importância que deve ser reconhecida aos ensaios clínicos, como sendo o “padrão-ouro” na prática baseada na evidência, existem no domínio da eHealth outras metodologias de investigação que devem ser exploradas por forma a não descurar a experiência e o engagement do doente no processo. Aplicativos móveis têm sido associados a melhores resultados de saúde; entretanto, a sua transferência bem-sucedida e sustentável para a prática clínica tem trazido resultados inconsistentes.