Introdução
A Neutropenia Febril é uma das complicações mais frequentes decorrentes da utilização de quimioterapia no tratamento do doente oncológico. Esta condição clínica pode acarretar consequências para o doente, nomeadamente alterações no regime terapêutico preconizado, redução de doses, atraso da administração de ciclos ou mesmo o abandono da terapêutica inicialmente proposta, com óbvias implicações no resultado para o doente (Venâncio, 2013).
Esta síndrome é considerada uma emergência médica e deve merecer atenção clínica imediata para avaliação e administração de antibioterapia empírica e de largo espetro o mais precocemente possível (Best, J. et al, 2011). A Neutropenia Febril, tal como referido anteriormente, é uma das complicações mais frequentes decorrentes do uso de Quimioterapia, sendo definida como a contagem de neutrófilos menor que 500 cél/mm3 (células por milímetro cúbico) ou uma contagem <1000 cél/mm3, com apresentação de um decréscimo presumível para <500 cél/mm3 em 48 horas, em associação com uma avaliação isolada de temperatura, avaliada através da mucosa oral de 38,3 ºC (graus centígrados), ou temperatura maior ou igual a 38 ºC por mais de uma hora (National Comprehensive Cancer Network, 2016).
Em contexto de Neutropenia Febril, e de acordo com a National Comprehensive Cancer network (2016), uma possível infeção potencialmente progredirá para uma sépsis severa, com aumento exponencial de mortalidade do doente e mobilização de recursos tais como serviços de urgência, e/ou unidades de cuidados intensivos. Para este facto, contribuem fatores relacionados com a patogénese da Neutropenia Febril que incluem o efeito direto da Quimioterapia no sistema imunológico e nas barreiras mucosas e falhas nas defesas do doente em relação com a doença oncológica subjacente (Atalaia et al, 2015); ou seja, contribui o tempo decorrido entre a administração de um citostático e o nadir, (a ocorrência do menor valor de contagem hematológica após o qual é iniciado o período de recuperação medular) (Costa C, 2005). Para diferentes esquemas de Quimioterapia, existem, assim nadir diferentes (variando na sua maioria ente 7 e 14 dias).
O choque séptico no doente oncológico com Neutropenia Febril que tenha sido submetido a tratamento de Quimioterapia continua a ser uma realidade presente nas instituições de saúde em Portugal e torna-se fundamental compreender de que forma o enfermeiro especialista em enfermagem médico-cirúrgica pode contribuir para a prevenção do choque sético no doente oncológico com Neutropenia Febril, decorrente do tratamento de Quimioterapia, identificando para tal as intervenções de enfermagem autónomas e interdependentes.
Para tal, foi realizada uma revisão integrativa da literatura que tem como principal objetivo identificar as intervenções de enfermagem autónomas e interdependentes promotoras da prevenção do choque sético no doente oncológico submetido a Quimioterapia com Neutropenia Febril.
Material e métodos:
A pesquisa foi realizada através das bases de dados CINAHL Complete MEDLINE Complete, Nursing & Allied Health Collection: Comprehensive Cochrane Central Register of Controlled Trials Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register Library, Information Science & Technology Abstracts e MedicLatina no dia 09 de março de 2020. Como delimitador da pesquisa, foi considerado o espaço temporal entre 01 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2019 e artigos publicados em língua portuguesa, espanhola ou inglesas disponíveis em texto integral.
De forma a refinar a pesquisa, para responder ao objetivo do estudo, foram utilizados os operadores boleanos “AND” e “OR”, tendo-se obtido a seguinte frase boleana: (Patients) AND (Nursing Care OR Oncology nursing) AND (Chemotherapy-Induced Febrile Neutropenia OR Febrile Neutropenia).
Na elaboração da revisão integrativa da literatura foram previamente definidos critérios de inclusão e exclusão, no sentido de implementar critérios transparentes e rigorosos (Bettany-Saltikov, 2012), apresentados na tabela 1.
Tendo em conta a questão de investigação: “Quais são as intervenções de enfermagem realizadas de forma a prevenir o choque sético no doente oncológico submetido a Quimioterapia com Neutropenia Febril”, é apresentado na tabela 2 o resumo dos parâmetros PICO e as palavras-chave definidas.
O processo de seleção dos artigos a incluir decorreu da seguinte forma:
Foi realizada uma análise dos títulos e resumos aplicando os critérios de inclusão /exclusão referidos;
Foi realizada a leitura integral do texto dos artigos pré-selecionados, voltando-se a aplicar os critérios de inclusão /exclusão;
Os estudos incluídos na revisão foram analisados criteriosamente, e foi preenchida uma grelha de análise.
A figura 1 resume o algoritmo usado na seleção dos artigos identificados através do Diagrama Prisma.
Resultados e discussão
O corpus de análise ficou constituído por 9 artigos, que permitiram dar resposta à questão de investigação, identificando para tal intervenções de enfermagem promotoras de prevenção do choque sético em doentes quimiotratados com Neutropenia Febril. Os estudos foram publicados entre os anos de 2011 e 2018, obtendo-se o maior volume de publicações em 2011 e 2014, com dois estudos em cada ano, o que denota a atualidade do tema. Quanto ao local de origem da realização dos estudos, observou-se serem de 4 países: Estados Unidos da América (com 3 artigos), Reino Unido (3 artigos), Irlanda (2 artigos) e Austrália com 1 artigo. De acordo com o idioma das publicações, todos se encontravam em língua inglesa.
No que se refere aos participantes destes estudos, cinco incluíam doentes oncológicos submetidos a tratamento de Quimioterapia com Neutropenia ou com risco acrescido para Neutropenia Febril, dois estudos incluíam enfermeiros que trabalham em Oncologia e por fim dois estudos faziam referência à validação de ferramentas usadas por enfermeiros para estratificar o risco de Neutropenia Febril e avaliar a qualidade de vida do doente.
Na pesquisa realizada foram encontrados 2 artigos que utilizaram a mesma metodologia (revisão da literatura) e com o mesmo tipo de participantes (doentes submetidos a tratamento de Quimioterapia com Neutropenia Febril) e que apresentam intervenções de enfermagem no tratamento ao doente neutropénico semelhantes.
A tabela 3 evidencia o resumo dos principais resultados da pesquisa:
De forma a agrupar as intervenções de enfermagem encontradas e para proceder ao tratamento de dados, foram criadas as seguintes unidades de análise denominadas de “intervenção de enfermagem”:
Utilização de escalas;
Administração de antibioterapia;
Cumprimento de protocolos/guidelines de atuação;
Controlo ambiental;
Educação para a saúde;
Avaliação do doente;
Realização de exames complementares de diagnóstico;
Administração de terapêutica profilática.
Em cada unidade de intervenção de enfermagem foram incluídos diferentes itens, sendo que no âmbito da utilização de escalas, foram identificadas a Multinational Association for Supportive Care in Cancer (MASSC) presente no estudo de Wilson, B. et al (2018), a Clinical Index of Stable Febrile Neutropenia (CISNE), no estudo de Fowler, M. (2015) e a Patient Care Monitor 1.0 Revised-Neutropenia Index (PCM-N) do estudo de Olsen, J. et al em 2011. O uso de escalas em Oncologia é fundamental, pois permite que ocorra uma padronização/uniformização do tratamento deste tipo de doentes em qualquer parte do mundo. A ASCO (American Society of Clinical Oncology) e a ESMO (European Society of Medical Oncology) são associações internacionais que visam promover investigação científica de qualidade, produzindo conhecimentos que são aplicados nesta área de cuidados, sendo que a utilização de escalas emanadas por estas sociedades, visam, de certa forma, padronizar os tratamentos realizados e minimizar também o impacto desses mesmos tratamentos. Este facto é corroborado por Atalaia et al (2015), que refere que a estratificação do risco do doente com neutropenia febril permite uma orientação direta na abordagem médica e terapêutica.
No que diz respeito à Administração de antibioterapia, esta foi referida em 7 dos 9 estudos, apresentando-se como sendo uma intervenção de enfermagem de relevo para o cuidado ao doente neutropénico. Todos os estudos analisados foram unanimes ao referenciar que a antibioterapia deve ser realizada empiricamente, num curto espaço de tempo (inferior a uma hora após a documentação da febre), com a finalidade de minimizar o desenvolvimento rápido da infeção-minimizando a sua gravidade (Wilson, B. et al (2018); Campbell, J. et al (2016); Fowler, M. (2015); Leonard, K. (2012); Best, J. et al (2011); Roe, H., & Lennan, E. (2014); Khan, S. et al (2012).). Tal facto é corroborado por Peyrony, O. et al (2020), que no seu estudo sobre administração de antibioterapia no departamento de urgência em doentes com cancro tratados com Quimioterapia que recorrem por febre, referem que um regime de antibioterapia inadequado e instituído tardiamente neste tipo de doentes, está associado a um maior número de admissão aos cuidados intensivos e morte durante o internamento hospitalar. As infeções bacterianas são a maior causa identificável no desenvolvimento de febre e infeção no doente neutropénico, sendo que os agentes bacterianos mais frequentemente identificados neste tipo de doentes foram-se alterando ao longo dos anos, (Taplitz, R. et al, 2018), de acordo com as alterações introduzidas na prática clínica diária, nomeadamente com a utilização crescente de cateter venoso central (CVC) e outros dispositivos médico invasivo.
Quanto ao Cumprimento de protocolos/guidelines de atuação, apresenta-se como uma intervenção de importante expressão, uma vez que está presente também em 7 dos 9 estudos analisados (Wilson, B. et al, 2018; Fowler, M (2015); O’Brien, C. et al (2014); Leonard, K. (2012); Best, J. et al (2011); Roe, H. & Lennan, E. (2014) e Khan, S. et al (2012). De certa forma, permite padronizar os cuidados e tem-se verificado que, ao longo dos anos, foram desenvolvidos esforços para a uniformização de linhas orientadoras de identificação e estratificação/classificação de risco de complicações decorrentes da Neutropenia Febril, que permitam uma abordagem mais personalizada e objetiva a cada doente.
O Controlo ambiental apenas foi referenciado por Wilson, B. et al (2018), através do cumprimento de medidas de isolamento (quarto individual para isolamento de proteção do doente), desinfeção de superfícies e equipamentos hospitalares. Tal facto, vem de encontro ao que é preconizado pela DGS (Direção Geral da Saúde) (2007), uma vez que se preconiza “um respeito saudável” pelo ambiente, através da manutenção preventiva e higienização correta e regular”, em que a temperatura e a humidade têm um papel fundamental na manutenção/eliminação dos reservatórios e também nas vias de transmissão (aérea), assim como as correntes do ar ou redução na sua circulação e renovação.
No que diz respeito à Educação para a Saúde, esta está presente em 8 estudos, o que demonstra ser a intervenção de enfermagem com maior expressão, revelando deste modo, um conjunto de intervenções de enfermagem essenciais no cuidado ao doente tratado com Quimioterapia e com Neutropenia Febril, promotoras da prevenção do choque sético. Assim, esta unidade engloba intervenções tais como: ensinar os doentes sobre a higienização das mãos (Wilson, B. et al (2018)), cuidados de higiene orais apropriados e cuidados à pele, para manter a integridade cutânea (mantendo a barreira protetora natural da pele contra organismos patogénicos, minimizando o risco de infeção) referenciados no estudo de Best, J. et al (2011). Engloba ainda intervenções tais como: informar sobre a prevenção de infeção para doentes com cancro e seus cuidadores (Campbell, J. et al (2016) e Olsen, J. et al (2011)); informar os doentes sobre o que é a Neutropenia Febril, assim como os cuidados a ter na sua prevenção e atitudes a tomar no caso de febre e outros sintomas ((Campbell, J. et al (2016); O’Brien, C. et al (2014) e Roe, H. & Lennan, E. (2014)); informar o doente e sua família sobre a infeção adquirida na comunidade e fornecer estratégias para minimizar a ocorrência (Fowler, M. (2015)); formação aos profissionais de saúde sobre os cuidados a ter no tratamento do doente neutropénico (Leonard, K. (2012)); encaminhamento precoce do doente para os serviços de saúde diferenciados de acordo com os primeiros sinais de alarme (Campbell, J. et al (2016) e Fowler, M. (2015)). Deste modo, e tal como afirmam Lima, M. e Minetto, R. (2014, p.35) “a educação do doente e da família acerca dos cuidados para prevenção de infeção e o entendimento sobre seus sinais torna-se fundamental para minimizar complicações e permitir uma atuação precoce da equipe de saúde.”
Por sua vez, a Avaliação do doente engloba uma avaliação holística que inclui avaliação física, história clínica e o que motivou a observação médica do doente (Campbell, J. et al (2016); Best, J. et al (2011) e Olsen, J. et al (2011)). Esta avaliação deve focar-se na pesquisa de potenciais focos causadores de infeção, assim como na estratificação do risco de complicações decorrentes de Neutropenia Febril, com vista a melhor orientação terapêutica de cada doente. Tal facto é corroborado na literatura por Bodey et al (1966) no seu artigo “Quantitative relationships between circulating leucocytes and infection in patients with acute leucemia”, em que a diminuição da ação de barreiras (mucosas e mucociliares) e a alteração da flora microbiana (decorrente de doença grave), predispõe o doente neutropénico para potencial infeção.
Quanto à Realização de exames complementares de diagnóstico que inclui nos diferentes estudos, diferentes intervenções de enfermagem, desde a colheita de análises sanguíneas (incluí hemograma completo, com bioquímica e rastreio sético, urina para urocultura, entre outros) (Fowler, M. (2015); Best, J. et al (2011); Roe, H., & Lennan, E. (2014) e Khan, S. et al. (2012)). A avaliação laboratorial é de extrema importância para o diagnóstico de neutropenia febril e deve incluir, tal como mencionado nos estudos anteriores, um hemograma completo com contagem diferencial leucocitária, função renal e hepática, ionograma, estudo da coagulação. É ainda recomendado a colheita de sangue para hemoculturas (veia periférica e CVC). A colheita de sangue para cultura pelo cateter venoso central (CVC) ajuda a determinar se este é o foco de infeção (Taplitz, R. et al (2018)). Se estiver na presença de sinais e sintomas urinários, está indicada a colheita de urina para estudo sumário e urocultura, (Kannangara, S. (2006)). Se os doentes apresentarem sintomas do foro respiratório, devem realizar radiografia ao tórax. Para a avaliação inicial e realização de exames complementares de diagnóstico, são utilizadas as guidelines da ASCO para a abordagem da neutropenia febril (Taplitz, R. et al, 2018).
Por fim, no que diz respeito à Administração de terapêutica profilática presente em dois estudos, é feita referência à administração profilática de fatores de crescimento para doentes com Neutropenia Febril induzida pelos tratamentos de Quimioterapia ou em risco de desenvolver, tendo em consideração por exemplo o tipo de fármaco usado e esquema de Quimioterapia (O’Brien, C. et al. (2014) e Leonard, K. (2012)). Este facto vem de encontro ao preconizado pela ASCO e ESMO nas suas guidelines, em que a utilização de fatores de crescimento não deve ser recomendada por rotina, contudo sugerem que em doentes de alto risco de complicações ou que apresentem fatores de mau prognóstico (neutropenia profunda ou prolongada, idade superior a 65 anos, doença primária não controlada, pneumonia, hipotensão, disfunção multiorgânica, infeção fúngica e necessidade de internamento), possa ser administrada. Estas associações internacionais também aconselham a sua prescrição/manutenção em doentes que já se encontrem a fazer profilaxia com G-CSF na altura da manifestação da Neutropenia Febril.
De forma a responder à questão de investigação colocada inicialmente, as intervenções de enfermagem promotoras de prevenção do choque sético em doentes neutropénicos, foram agrupadas em 8 unidades de análise, e posteriormente agrupadas em autónomas e interdependentes de acordo com o REPE. Estes dados são agrupados na tabela 4.
Conclusão
O choque sético no doente oncológico submetido a quimioterapia com Neutropenia Febril continua a ser uma realidade presente nas instituições de saúde. Constitui uma urgência médica na área da oncologia, responsável pelo aumento dos dias de internamento em instituições hospitalares, pelo aumento inerente dos custos, com aumento da morbilidade e mortalidade associadas a este grupo específico de doentes.
Este estudo explorou a responsabilidade do enfermeiro na prevenção do choque sético no doente oncológico submetido a Quimioterapia com Neutropenia Febril, identificando as intervenções de enfermagem implementadas.
Dos nove artigos objeto de análise, foram identificadas várias intervenções de enfermagem agrupadas em oito unidades de análise, “intervenção de enfermagem” como sendo: Utilização de escalas; Administração de antibioterapia; Cumprimento de protocolos/guidelines de atuação; Controlo ambiental; Educação para a saúde; Avaliação do doente; Realização de exames complementares de diagnóstico; e Administração de terapêutica profilática, sendo que as intervenções mais prevalentes dizem respeito à Administração de antibioterapia; Cumprimento de protocolos/guidelines de atuação e a Educação para a saúde (presente em 8 dos 9 estudos analisados).
Foi evidenciado ainda quais as intervenções de enfermagem autónomas e interdependentes promotoras da prevenção do choque sético no doente oncológico submetido a Quimioterapia com Neutropenia Febril.
Como limitações da pesquisa realizada, identificamos o baixo nível de evidência relativamente às intervenções de enfermagem encontradas. Como mote de sugestão para futuras investigações neste âmbito, seria interessante abordar de que forma as intervenções de enfermagem preventivas do choque sético no doente oncológico submetido a Quimioterapia com Neutropenia Febril, têm implicação na diminuição dos dias efetivos de internamento destes doentes e nos custos inerentes aos mesmos. De igual forma, seria ainda mais pertinente associar estas intervenções a um diagnóstico de enfermagem e adequa-las a uma linguagem padronizada, tal como a CIPE ou a NANDA.