Introdução
As doenças neoplásicas representam a segunda maior causa de morte em todo o mundo, prevendo-se que o número de novos casos aumente significativamente nas próximas décadas.1
A malnutrição, ao longo deste trabalho designada por desnutrição, é um fenómeno muito comum em pessoas com cancro e pode ocorrer em todas as fases da trajetória da doença. A desnutrição afeta grande parte dos doentes com cancro e está presente em mais de 80% dos doentes com doença avançada ou metastizada.2 Independentemente do tipo de cancro, a prevalência global de desnutrição é de aproximadamente 40%.3A sua ocorrência pode ter um impacto negativo significativo nos resultados clínicos dos diferentes tratamentos do cancro ao nível da toxicidade, qualidade de vida e da sobrevivência,4,5representando a principal causa de morte para 10% a 20% dos doentes oncológico.6Assim, um doente com cancro bem nutrido tem melhor tolerância ao tratamento, melhor qualidade de vida, menos efeitos colaterais ou toxicidades relacionadas com o tratamento do cancro e, como tal, maior adesão aos tratamentos.1
É fundamental identificar, avaliar e estabelecer precocemente cuidados nutricionais para prevenir ou minimizar situações que possam afetar o estado nutricional das pessoas com cancro.1,7Esta intervenção precoce passa por uma identificação das pessoas em risco nutricional através da aplicação sistemática de instrumentos ou ferramentas padronizadas de rastreio nutricional a todos os doentes, em todos os contextos de atendimento. O rastreio nutricional centrado na pessoa, com respetiva avaliação e orientação nutricional são elementos essenciais a uma prática profissional de excelência no atendimento à pessoa portadora de doença oncológica.
A deteção e o tratamento da desnutrição são um desafio multidisciplinar. A Sociedade Europeia de Nutrição Clínica e Metabolismo - ESPEN (https://www.espen.org/) destaca a importância de equipas multidisciplinares trabalharem conjuntamente no sentido de garantirem uma identificação oportuna da desnutrição através do rastreio, bem como um acompanhamento e uma intervenção nutricional individualizada e ajustada ao longo de todo o percurso de tratamento da doença oncológica.1
Não sendo surpresa a necessária mudança de paradigma estratégico para a melhoria dos cuidados de saúde prestados que tem sido colocada às diferentes organizações de saúde, particularmente às instituições hospitalares; de igual modo, aos profissionais de saúde é também exigido uma atuação em conformidade e uma responsabilidade acrescida durante todo o processo.
A Ordem dos Enfermeiros, em particular, tem desenvolvido esforços para a melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem, com destaque para os “Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem”, publicados em 2001, que constituem um referencial que estrutura e orienta o exercício profissional dos Enfermeiros em Portugal. Neste é preconizado “a identificação, tão rápida quanto possível, dos problemas potenciais do cliente, relativamente aos quais o enfermeiro tem competência (de acordo com o seu mandato social) para prescrever, implementar e avaliar intervenções que contribuam para evitar esses mesmos problemas ou minimizar-lhes os efeitos indesejáveis”.8 É neste desígnio que o presente projeto se enquadra.
Com este projeto: “Via Verde dos Cuidados Nutricionais” pretende-se avaliar o risco nutricional de todos os doentes admitidos num serviço de internamento de oncologia cirúrgica através da aplicação de uma ferramenta de rastreio nutricional validada para a população portuguesa e em função dos scores obtidos implementar a devida intervenção nutricional, numa perspetiva de um processo de melhoria continua da qualidade dos serviços de saúde prestados.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi conduzido um estudo descritivo longitudinal, piloto com a duração de um mês, num hospital público oncológico, localizado no norte de Portugal, o qual faz parte de um grande projeto de melhoria contínua da qualidade a longo prazo intitulado “Via Verde dos Cuidados Nutricionais”, que procurará, além de identificar o risco nutricional, intervir nos doentes em risco de malnutrição. Os três objetivos principais desta fase de projeto piloto inicial (1.º mês) são: a quantificação objetiva das necessidades previamente percecionadas pelos profissionais que estão na génese do projeto; a implementação do projeto; e a análise preliminar dos resultados, com o respetivo refinamento do protocolo desenhado, caso necessário.
O protocolo em estudo é apresentado sob a forma de algoritmo de atuação na Figura 1. Este pressupõe a identificação do risco de malnutrição pela aplicação da escala de MUST - Malnutrition Universal Screening Tool9 a todos os doentes admitidos no serviço; e, em função dos scores obtidos, aplicar um segundo instrumento de avaliação do estado nutricional: PG-SGA - “Patient-Generated Subjective Global Assessment”, na sua versão em Português10, por forma a estratificar o plano de intervenção: intervenção/acompanhamento pela equipa de enfermagem, ou intervenção nutricional específica pela equipa de nutrição clínica.
População em estudo
No estudo foram incluídos todos os doentes admitidos num serviço de cirurgia oncológica durante o mês de março de 2022.
Instrumentos e procedimentos de avaliação nutricional
Procedeu-se à avaliação do risco nutricional de todos os doentes admitidos num serviço de internamento de oncologia cirúrgica através da aplicação da ferramenta de rastreio MUST9 e, em função dos scores obtidos, identificaram-se os doentes em risco de malnutrição de acordo com as 3 categorias previstas em Report of a WHO Expert Committee.11 0 - baixo risco, 1 - risco médio, e 2 ou mais - alto risco.
Aos doentes com risco de malnutrição (score ( 1) é aplicado um segundo instrumento que também compreende uma avaliação do estado nutricional: PG-SGA10 e, em função dos scores obtidos, é definida uma monitorização e intervenção nutricional1 diferenciada por parte da equipa de enfermagem e/ou equipa de nutrição.
O peso dos doentes é avaliado na admissão ao serviço e depois de 7 em 7 dias, sempre nas mesmas condições, recorrendo à mesma balança analógica, no mesmo período do dia (após pequeno-almoço), com a mesma roupa, o mesmo estado de hidratação e após dejeção e/ou micção.
A instituição onde foi realizado o presente estudo tem por protocolo avaliar sistematicamente o risco de malnutrição no momento da admissão à instituição, na clínica de patologia do doente, sempre que se trate de um doente com patologia digestiva ou de cabeça e pescoço.
Variáveis em estudo
A informação sociodemográfica foi obtida a partir da informação contida no processo clínico dos doentes (idade, sexo e escolaridade). Em caso de ausência no processo clínico, os doentes foram diretamente questionados e confirmados. Foram aplicados protocolos específicos para recolher os dados antropométricos (peso em kg e altura em m), conforme protocolos padronizados em Report of a WHO Expert Committee.11Os dados relativos ao diagnóstico médico: localização do tumor, foram agrupados em 4 grandes grupos: digestivos (que compreendia todos os tumores localizados no tubo digestivo e glândulas anexas), mama, pele e outros (que incluíam todas as restantes localizações que não pertenciam às anteriores categorias). O Índice de Massa Corporal (IMC) foi calculado e o score obtido foi categorizado, considerado os critérios preconizados na classificação da Organização Mundial de Saúde.12Os indivíduos foram considerados desnutridos quando apresentaram um IMC < 18,5 kg/m2, normoponderais quando apresentaram um IMC entre 18,5 e 24,9 kg/m2 e com sobrecarga ponderal quando apresentaram um IMC > 24,9kg/m2. A percentagem de peso perdida durante o internamento foi obtida por comparação entre o peso na alta clínica do doente ou o aferido de 7 em 7 dias (em doentes com mais de sete dias de internamento no serviço) com o peso no momento de admissão no serviço.
Análise Estatística
Foi realizada uma análise descritiva expressa em médias e desvios-padrão para descrever as variáveis contínuas e frequências para as variáveis categóricas. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para verificar a normalidade da distribuição das variáveis quantitativas. O teste exato de Fisher e o teste do qui-quadrado foram aplicados para verificar a diferença entre as proporções entre varáveis nominais. Testes de Wilcoxon foram usados para amostras ordinais emparelhadas e testes t-Student para amostras emparelhadas para comparar diferenças entre médias de peso na data de admissão e data da alta. Os dados foram analisados com o software SPSS® 27. Um nível de significância de 5,0% foi utilizado para todos os testes estatísticos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante o mês de março foram admitidos 160 doentes (70% do sexo feminino). A maioria com patologia digestiva 45% (n=72), da mama 38% (n= 61) e outras patologias 17% (n=27). À admissão 43% dos doentes encontravam-se normoponderais, 54,5% com sobrecarga ponderal (39,5% com excesso de peso,15% com Obesidade grau I e II) e 2,5% com baixo peso.
Na admissão, por aplicação do MUST, identificaram-se 20 doentes com médio risco e 16 doentes com elevado risco (Figura 2).
Estratificando o risco à admissão por patologia observou-se que nos 12,5% dos doentes apresentavam risco médio de malnutrição, dos quais 70% eram pertencentes ao grupo de patologia digestiva. Já nos 10% de risco elevado (score igual ou superior a 2), dos doentes com score de 2: 85% tinham patologia digestiva e dos doentes com score (3, 100% apresentavam patologia digestiva (Figura 3).
Os dados aqui apresentados são concordantes com outros trabalhos, onde a doença oncológica especialmente digestiva compromete a alimentação e o estado nutricional, a vários níveis. Seja por afetação ao nível da deglutição, como por exemplo neoplasia cervicofacial13, ou ao nível da motilidade intestinal, produção de secreções digestivas ou da progressão do conteúdo no tubo digestivo; fatores consequentes das neoplasias mais associado com a malnutrição10, ou pela indução de intensa anorexia14 ou pela caquexia.4
Destaca-se que na patologia digestiva, quando comparado o momento de admissão na instituição com o momento de admissão ao internamento, houve um aumento do número de casos de rastreio positivo pela aplicação da MUST ((1) de 20,7% para 39,4%. A perda de peso é comum e é frequentemente o primeiro sintoma em doentes oncológicos. No momento do diagnóstico 10% dos doentes já apresenta perda de peso, e até 30% a 80% irá apresentar durante o tratamento e/ou progressão da doença, consoante a localização e etiologia do tumor.15,17A perda de peso relacionada com o tumor pode ocorrer devido a diversos fatores, tais como distúrbios metabólicos, resposta imunológica diminuída com risco aumentado de infeção, depressão ou efeitos adversos dos tratamentos que podem reduzir o bem-estar do doente, levando a uma insuficiente ingestão de nutrientes. Também o catabolismo aumentado e o rápido crescimento das massas tumorais podem contribuir para as alterações no estado nutricional.15,18
O internamento teve uma duração média de 6,9 dias, e quando comparado a diferença média de peso entre o peso à data de admissão com o peso passado uma semana de internamento verificou-se uma perda ponderal média de 1,76kg (t=5,084, p<0,001). Com internamento superior a sete dias foram identificados 46 doentes; nestes, 13 viram o seu score de risco aumentado, 30 mantiveram e 3 diminuíram o risco. De realçar que para estes dados contribuíram maioritariamente doentes de patologia digestiva (82,6%).
A malnutrição é comum nas doenças digestivas, quer sejam crónicas ou agudas. Estudos relataram que cerca de 40% a 50% dos doentes apresentavam malnutrição de moderada a grave à data da admissão hospitalar, tendo a maioria agravado a sua condição durante o internamento.19,20
Em Portugal, existem diversos estudos relativos à malnutrição associada à doença, em particular em ambiente hospitalar no momento da admissão. Um estudo de Amaral et al.21, efetuado em 6 hospitais (5 cirúrgicos e 1 oncológico) mostrou que 36% dos doentes apresentavam risco de malnutrição. A prevalência à data da admissão é elevada e pode aumentar durante a hospitalização porque a preocupação com o estado nutricional do doente e a intervenção nutricional são ainda muito baixas, mesmo em áreas como a oncologia21, o que nos leva a crer que uma correta identificação do risco nutricional nas primeiras 24 horas, seguida de um plano de intervenção nutricional específico, é ainda uma prática muito limitada nos nossos hospitais, mas que o presente projeto procurará contrariar.
Com este estudo destaca-se o facto de 65,4% dos doentes rastreados positivamente não terem sido alvo de intervenção de enfermagem e/ou nutrição dirigida. E 31,3% dos doentes sinalizados em alto risco pela MUST também não terem sido alvo desta intervenção. Tal achado reforça a necessidade de criar, com rapidez, mecanismos para uma deteção precoce e um tratamento atempado do ponto de vista nutricional, para assim se promover uma recuperação eficaz e uma melhoria no prognóstico e reduzir os custos associados com o internamento prolongado.
Existem várias ferramentas de avaliação do risco nutricional recomendadas e disponíveis para identificar os doentes que sofrem de malnutrição ou estão em risco de malnutrição. Importa, no entanto, além da sua aplicação sistemática a todos os doentes, uma intervenção nutricional dirigida face aos scores obtidos pelos instrumentos de rastreio. Na presente fase de implementação do projeto “Via Verde dos Cuidados Nutricionais” centrou-se essencialmente da identificação sistemática dos doentes com risco de malnutrição, mas pelo que se pode depreender existem um conjunto de doentes, identificados com risco que futuras fases da implementação deste projeto procurarão dar resposta.
O grau da malnutrição ou do seu risco é influenciado pela doença e pelas características do doente. Os parâmetros nutricionais habituais utilizados para avaliar o grau de malnutrição incluem composição corporal (IMC, massa livre de gordura e massa gorda, deterioração muscular), indicadores antropométricos e dados relacionados com a capacidade de se alimentar (percentagem de perda de peso não intencional, perda de apetite, anorexia ou redução da ingestão alimentar).22Assim, a avaliação do estado nutricional é um processo rigoroso e abrangente que inclui a obtenção de informações acerca da história alimentar e médica do doente, estado clínico e funcional, dados antropométricos e bioquímicos, exame físico e situação económica. Os dados recolhidos devem ser cuidadosamente interpretados de modo a estabelecer um diagnóstico correto e uma intervenção nutricional adequada. A capacidade clínica e a disponibilidade de recursos determinam os métodos a serem utilizados e as diretrizes clínicas permitem identificar os parâmetros de avaliação adequados às diferentes doenças e condições. A avaliação do estado nutricional é um processo contínuo, complexo e interdisciplinar que envolve a reavaliação e a monitorização do doente.23
Para terminar, é dos desafios pela excelência dos cuidados a oferecer aos doentes que têm emergido programas melhoria contínua da qualidade multiprofissionais, como o que aqui é apresentado; e, pelo que aqui também é demostrado, é aplicável a qualquer serviço do sistema de saúde, pois o algoritmo de atuação é simples e os instrumentos de rastreio são fáceis de aplicar.
CONCLUSÃO
A desnutrição é um fator prognóstico negativo em doentes com cancro. Diferentes metodologias e ferramentas estão disponíveis para avaliar o risco de malnutrição nesta população, com a finalidade de identificar e tratar essa condição precocemente. O projeto “Via Verde dos Cuidados Nutricionais” vem salientar a necessidade de um protocolo estruturado e coordenado para uma intervenção nutricional eficaz em doentes oncológicos sinalizados em médio e alto risco de malnutrição. Mas também alerta para uma necessidade de intervenção e vigilância nutricional proativa nos doentes que não apresentam risco, dado este não ser sinónimo de ausência de risco potencial futuro, particularmente em doentes de patologia digestiva. Os dados desta fase piloto reforçam também a necessidade de um registo clínico padronizado e uma referenciação e intervenção rápida e eficaz pelas equipas de enfermagem e nutrição em todos os doentes sinalizados, o qual será alvo nas etapas futuras do presente projeto.