1. Contextualização da Problemática
Os tumores primários do sistema nervoso central (SNC) estão associados a elevadas taxas de morbilidade e mortalidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020 verificou-se a nível mundial uma incidência de 308.102 novos casos e uma mortalidade de 251.329 casos1. Em Portugal a incidência de novos casos foi de 1.105, associada a uma mortalidade de 933 casos1.
A sua classificação é baseada em características histopatológicas, sendo o glioblastoma representativo de 17% destes tumores2. De acordo com a classificação da OMS, os glioblastomas enquadram-se como um tumor de grau IV, do grupo dos tumores astrocíticos difusos e oligodendrogliais. Subdividem-se em glioblastomas isocitrato desidrogenase (IDH) wildtype, que correspondem a cerca de 90% dos casos, e em e em glioblastomas IDH mutante, que correspondem aproximadamente aos restantes 10% dos casos3.
Apesar dos avanços científicos para desenvolver técnicas para um diagnóstico precoce e tratamento, o diagnóstico de glioblastoma continua a estar associado a um prognóstico reservado e paliativo4-7. Para o tratamento do glioblastoma recorre-se a cirurgia (apesar de impossibilitada a ressecção total do tumor por ser muito vascularizado e infiltrativo), radioterapia com quimioterapia adjuvante e quimioterapia de manutenção8,9. Com os métodos de tratamento disponíveis, o tempo de sobrevivência média destes doentes situa-se entre os 15-18 meses2.
Nos últimos anos, tendo em conta o prognóstico desta doença oncológica, têm sido realizados estudos a incidir sobre a vivência do fim de vida das pessoas com glioblastoma, considerando que os sinais e sintomas destes doentes diferem dos apresentados pela população oncológica em geral10 e dos doentes com metastização cerebral11. Frequentemente apresentam um estado geral agravado, maiores necessidades de prestação de cuidados de saúde e níveis elevados de exaustão dos familiares9. Podem também experienciar altos níveis de distress relacionados com sintomas cognitivos, físicos e emocionais possíveis de surgir, que têm um impacto negativo na qualidade de vida e independência funcional6,12. É de referir que o aparecimento dos sinais e sintomas pode ser de forma progressiva ou célere, dependendo da área cerebral em que se localiza o tumor13.
Numa revisão sistemática da literatura realizada por Walbert & Khan (2014)10 sobre sintomas em doentes com tumores cerebrais primários em fim de vida, que engloba artigos entre 1946 e 2013, os autores concluíram que tanto os sintomas apresentados como a sua frequência diferem de outros doentes oncológicos em fim de vida. Diminuição do estado de consciência, alterações na comunicação, confusão, disfagia, convulsões e cefaleias foram os sintomas mais prevalentes. Num estudo sobre os sintomas apresentados por 57 doentes com glioblastoma nos últimos 10 dias de vida11 a diminuição de estado de consciência, febre, disfagia, convulsões e cefaleias foram os sintomas que emergiram com maior frequência.
Chaichana et al. (2011)14 ao analisarem 544 doentes com glioblastoma, submetidos a ressecção cirúrgica e com um valor superior a 80 na Escala de Karnofsky, verificaram que 56% já não eram funcionalmente independentes nas suas atividades de vida após 10 meses de cirurgia. O impacto na vida diária ocorre não só pelo declínio funcional, mas também pelo declínio cognitivo causado pelo tumor, assim como pelos efeitos secundários dos tratamentos e terapêuticas utilizadas. Tal reforça a importância de discutir o plano terapêutico de forma atempada, com o intuito de reduzir a morbilidade, restaurar ou preservar funções neurológicas e capacitar a realização das atividades diárias15.
A complexidade de sintomas inerentes a esta doença oncológica, associado ao seu mau prognóstico, torna fundamental a integração de uma filosofia paliativista de cuidados. Podem existir desafios à integração dos cuidados paliativos na neuro-oncologia relacionados com mitos, falta de formação (dos profissionais da área da neuro-oncologia em cuidados paliativos quer dos profissionais dos cuidados paliativos em neuro-oncologia), distress, medos e literacia dos doentes/cuidadores informais6,11.
Numa pesquisa preliminar nas bases de dados eletrónicas CINAHL e MEDLINE da plataforma EBSCOhost Integrated Search, verificou-se um número reduzido de artigos sobre o tema, não se tendo tido acesso a publicações portuguesas de enfermagem nesta área. Este trabalho surge como uma necessidade da equipa de enfermagem de sistematizar o conhecimento sobre os sinais e sintomas presentes em fim de vida em doentes com glioblastoma no serviço de internamento, de forma a planear cuidados de enfermagem individualizados e eficazes. Assim, define-se como questão central de pesquisa: Quais os principais sinais e sintomas presentes nos últimos sete dias de vida nos doentes com glioblastoma internados no serviço de Neurologia?
Como objetivo geral pretende-se: identificar os principais sinais e sintomas presentes nos últimos sete dias de vida do doente com glioblastoma num serviço de neurologia oncológico. Os objetivos específicos centram-se em 1) caracterizar uma coorte de doentes com glioblastoma nos últimos sete dias de vida, em relação ao género e idade; 2) estimar a prevalência de sinais e sintomas presentes nos últimos sete dias de vida do doente com glioblastoma num serviço de neurologia oncológica.
2. Material e Métodos
2.1 Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo descritivo e retrospetivo relativo aos sinais e sintomas nos últimos sete dias de vida de doentes com glioblastoma, internados no Serviço de Neurologia de um centro de referência de oncologia nacional, admitidos através de consulta de neuro-oncologia durante os anos de 2019 e 2020.
2.2 População e Amostra
A população inclui todos os doentes adultos com diagnóstico de glioblastoma com registo clínico médico e de enfermagem nos últimos sete dias de vida, internados no serviço de Neurologia de um centro de referência de oncologia nacional admitidos através de consulta de neuro-oncologia nos anos de 2019 e 2020. O período temporal definido para a consulta dos processos justifica-se pelo indicador de qualidade em cuidados paliativos referente aos aspetos físicos, em que se preconiza o “registo de ausência ou presença de sintomas nos últimos sete dias de vida do doente independentemente do seu estado de consciência”16.
Constituiu-se como critério de inclusão da amostra: doentes com diagnóstico de glioblastoma, admitidos no serviço de Neurologia através de consulta de neuro-oncologia durante os anos de 2019 e 2020, que tenham falecido nesse serviço de internamento e que aí tenham estado internados durante um período igual ou superior a sete dias.
Como critério de exclusão definiu-se: doentes com o diagnóstico de glioblastoma cuja admissão não se enquadre no período temporal anteriormente definido e cujo período de internamento seja inferior a sete dias, mesmo que tenham morrido no serviço de Neurologia. Excluem-se os doentes que não tenham sido admitidos na instituição pela consulta de neuro-oncologia.
2.3 Procedimento de Recolha de Dados e Instrumento de Avaliação
A recolha de dados foi realizada através da análise retrospetiva dos processos clínicos médico e de enfermagem de doentes elegíveis de acordo com os critérios anteriormente definidos. A consulta de processos decorreu entre abril e outubro de 2021 no serviço de Neurologia de um centro de referência de oncologia nacional.
O Instrumento de Colheita de Dados utilizado foi baseado no documento “The Last Hours of Living”17, tendo sido construído em formato de tabela contemplando: 1) os sinais e sintomas a avaliar que surgiram nos últimos sete dias de vida (classificados como presentes ou ausentes); 2) o local da colheita de dados (registo médico ou de enfermagem); 3) a frequência, em dias, em que os mesmos estão presentes. Neste instrumento de colheita de dados também se especifica que o tipo de tumor do SNC tem de ser o glioblastoma, o género, a idade, a duração do internamento e se foi solicitado apoio da Equipa Suporte Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos.
Procedeu-se a uma análise estatística dos dados através do programa Microsoft Excel.
3. Resultados e discussão
3.1 Resultados
A amostra tem um total de 17 pessoas (13 homens e 4 mulheres), internados em média 17,3 dias e com uma média de idades de 61,8 anos no género masculino e 63 anos no género feminino.
Utilizando o instrumento de colheita de dados anteriormente referido, os sinais e sintomas que surgiram com maior frequência (94%) foram: a “diminuição do nível de consciência”; os “acontecimentos raros e inesperados” e a “disfunção respiratória”. Seguidamente emergiu a “perda de capacidade em engolir” (76%). A prevalência dos sinais e sintomas que emergiram da colheita de dados é apresentada na Figura 1.
Relativamente aos acontecimentos raros e inesperados nos processos consultados foram descritos como: febre, mioclonias e convulsão, náuseas e vómitos, insónias, ansiedade, candidíase, ferida traumática. Na Figura 2 apresenta-se a frequência (n.º de casos) com que foram registados.
A diminuição do nível de consciência foi descrita como “prostração” em 14 pessoas e “estupor” em 2 pessoas. No que respeita à disfunção respiratória, os registos enunciam-na como “farfalheira” em 14 pessoas e “polipneia” em 4 pessoas. A perda de capacidade em engolir é enunciada como “sem via oral segura” em 12 pessoas e “disfagia” em 1 pessoa.
Das 8 pessoas em que emergiu o registo de dor, este sintoma foi caracterizado como “esgar de dor” (4 pessoas), “gemidos” (2 pessoas), “lombalgias” (1 pessoa) e “cefaleias” (1 pessoa).
Em 76,4% da amostra foi solicitado o apoio da Equipa Suporte Intra-Hospitalar de Cuidados Paliativos.
Existiram parâmetros do instrumento de colheita de dados utilizado que não evidenciaram registo no processo clínico médico e de enfermagem, nomeadamente, "fadiga, fraqueza", "disfunção cardíaca, disfunção renal" e "perda da capacidade de fechar os olhos".
3.2 Discussão de Resultados
O número de doentes que constituiu a amostra deste estudo foi reduzido, o que se enquadra na frequência e representatividade deste diagnóstico quando comparado com outras doenças oncológicas1. Verificou-se também que existiu uma maior prevalência da doença no género masculino, o que coincide com o descrito na evidência científica1,2.
Da consulta dos processos clínicos obtiveram-se como sinais e sintomas mais prevalentes a diminuição do nível de consciência, a disfunção respiratória e o aparecimento de acontecimentos raros e inesperados. Analisando o primeiro resultado constatou-se que é unânime na literatura que estes doentes apresentam no fim de vida alterações do estado de consciência, com períodos de maior sonolência, o que condiciona a comunicação com os mesmos10-12,18,19.
A literatura aponta as alterações comunicacionais como um sintoma prevalente no fim de vida destes doentes que dificulta a avaliação de sintomas na primeira pessoa10,11,19. Na amostra, as alterações comunicacionais emergiram registadas explicitamente em 6 pessoas.
A disfunção respiratória presente em 16 doentes da amostra difere das prevalências apresentadas nos vários estudos científicos. Apesar desta sintomatologia não ser tão significativa nos estudos, é feita referência ao aparecimento de dispneia ou acumulação de secreções nas vias respiratórias no fim de vida destes doentes10-12, o que justifica os dados obtidos.
Quanto aos acontecimentos raros e inesperados é de referir que esta denominação emerge do instrumento de colheita de dados utilizado que se encontra mais direcionado para a população oncológica em geral. Deste modo, toda a sintomatologia que surgia nos processos clínicos e que não se enquadrava nos sinais e sintomas descritos no instrumento foi englobada nos acontecimentos raros e inesperados, nomeadamente, a febre (9 pessoas) e as mioclonias/convulsões (5 pessoas). Estas últimas são descritas nos estudos como muito prevalentes no fim de vida desta população10,13,18,19.
Na amostra verificou-se, igualmente, uma elevada prevalência de alterações na deglutição, designadamente a ausência de via oral segura, o que também vai ao encontro da evidência científica10,11. É de referir que na população oncológica em geral a anorexia é um dos sintomas mais frequentes no fim de vida20, o que não se confirma nestes doentes, uma vez que a alteração é no estado de consciência e não no apetite10,12.
Relativamente aos dados de prevalência da dor pode-se inferir que estão de acordo com a literatura, que destaca a possibilidade deste sintoma surgir com menor frequência nestes doentes em relação à restante população oncológica12,22.
A prevalência dos sinais e sintomas anteriormente abordados, faz com que seja fundamental refletir sobre as vias de administração de terapêutica adequadas no sentido de promover o controlo sintomático23.
As limitações do presente estudo prenderam-se com: o número reduzido da amostra que não permite generalizar os resultados obtidos; o instrumento de colheita de dados não estar validado para a população portuguesa; e as referências bibliográficas sobre o tema terem, maioritariamente, mais do que cinco anos.
4. Conclusão
O presente trabalho de investigação pretendeu identificar os sinais e sintomas dos doentes com diagnóstico de glioblastoma nos últimos sete dias de vida. Através da análise retrospetiva dos processos clínicos concluiu-se que os sinais e sintomas mais prevalentes são a diminuição do estado de consciência, a disfunção respiratória (dispneia ou acumulação de secreções nas vias respiratórias), o aparecimento de acontecimentos raros e inesperados (febre e mioclonias/convulsões) e a perda de capacidade em engolir. Os resultados obtidos estão de acordo com a evidência científica, apesar de ter sido identificada uma prevalência superior de doentes com disfunção respiratória. Neste sentido, como sugestão para investigações futuras, seria pertinente a realização de trabalhos no tema em estudo com amostras mais representativas.
Será igualmente relevante refletir sobre a abordagem farmacológica para a gestão de sintomas, visto que o aparecimento de alterações da deglutição é muito frequente nesta população, o que torna a via oral pouco segura ou ausente.
O conhecimento obtido neste artigo permite aos profissionais de saúde uma maior compreensão sobre os sinais e sintomas de fim de vida em pessoas com o diagnóstico de glioblastoma, no sentido da melhoria dos cuidados prestados.
Sublinha-se a importância de abordar antecipadamente o planeamento dos cuidados no fim de vida com estes doentes, uma vez que se verifica a diminuição do estado de consciência e alterações na comunicação à medida que a doença progride. Neste sentido, a articulação precoce com equipas de cuidados paliativos é importante para a prevenção e tratamento eficaz de sintomas, acompanhamento psicossocial e promoção da qualidade de vida.
Por fim, é de referir que o registo dos sinais, sintomas, intervenções de enfermagem planeadas e realizadas, bem como a avaliação da sua eficácia é imprescindível para garantir a qualidade e individualidade dos cuidados prestados, traduzindo-se em ganhos para a saúde.