INTRODUÇÃO
O setor da Conservação e Restauro ainda não foi abordado pela Saúde Ocupacional de uma forma completa ou exaustiva, pelo que se registam várias lacunas de conhecimento em relação aos seus fatores de risco/ riscos laborais.
Os autores tiveram como objetivo recolher e resumir toda a informação que encontraram sobre o tema, sob o formato de uma Scoping Review, como ponto de partida para outros projetos que se afirmem como pertinentes, no contexto da saúde ocupacional destes profissionais. Foi elaborada uma outra revisão, relativa aos riscos genéricos que o Mercúrio pode acarretar na saúde humana (logo, pertinente para qualquer outro setor profissional onde haja este agente), para se abordar o tema de uma forma mais completa e se realizar uma introdução melhor fundamentada. A diferença na quantidade de dados publicados para os riscos generalistas do Mercúrio versus riscos específicos ao setor Profissional da Conservação e Restauro, reflete-se diretamente na discrepância acentuada da extensão dessas duas partes; ou seja, a primeira monopolizou este documento; ainda que não fosse o objetivo principal deste trabalho, certamente ajudou a fundamentar e compreender melhor o que se pretendia avaliar.
Segundo a bibliografia selecionada, os principais riscos associados ao mercúrio distribuem-se por vários órgãos e sistemas, ainda que com consensos diferentes, a nível de: Stress Oxidativo; Neurologia (atenção, concentração, memória, disartria, tremor ou até Doença de Alzheimer, Parkinson, Esclerose Lateral Amiotrófica e Autismo); Psiquiatria (irritabilidade, depressão, ansiedade, insónia, alucinação); Cardiologia/ Síndroma Metabólica (Hipertensão Arterial, Aterosclerose, Dislipidemia, Disritmia, Taquicardia, Diabetes); Reprodução/ Obstetrícia (azoospermia, aborto, baixo peso ao nascer, malformações); Pediatria (alterações do desenvolvimento, Autismo); Sistema Imune; Nefrologia (proteinuria, Insuficiência Renal, Necrose Tubular Aguda, Glomerulonefrite, Glomerulosclerose, Síndromas Nefrótico e Nefrítico); Oncologia; Dermatologia (Eczema, Úlcera); Hematologia (anemia, alterações da coagulação); Pneumologia (Bronquite, Fibrose, Pneumonite); Oftalmologia (amaurose); Otorrinolaringologia (hipoacusia); Gastroenterologia (cólica, úlcera, diarreia, anorexia) e Endocrinologia (Hipertensão arterial; Dislipidemia e alterações na Tiroide, Hipófise e/ ou Pâncreas).
Foram consideradas consequências médicas pertinentes no contexto da Obstetrícia e Pediatria, uma vez que não é raro os ateliers estarem inseridos no domicílio dos Conservadores- Restauradores e, por vezes, sobretudo no passado, irem para lá crianças brincar (os autores encontraram relatos antigos nesse sentido). Para além disso, a perceção de risco concreto para os filhos pode ser muito mais motivador para seguir as recomendações para um trabalho seguro e saudável, do que a perceção do seu próprio risco, para a generalidade dos trabalhadores.
OBJETIVO
Os autores tiveram como objetivo recolher e resumir toda a informação que encontraram sobre o tema, sob o formato de uma Scoping Review, como ponto de partida para outros projetos que se afirmem como pertinentes, no contexto da saúde ocupacional destes profissionais.
METODOLOGIA
A pergunta de investigação considerada foi: O que está descrito na literatura relativamente aos riscos ocupacionais dos Conservadores- Restauradores, associados à exposição ao Mercúrio?
Realizaram-se pesquisas informais prévias sobre o tema e percebeu-se que a literatura é muito escassa para este setor profissional; por isso, os autores optaram por não fazer restrições significativas associadas a ano de publicação, tipo de estudo, robustez metodológica, língua ou acesso imediato a texto completo/ resumo.
Como critérios de inclusão consideraram-se:
➢ publicação entre 1980 e 2018
➢ idade igual ou superior a 18 anos
➢ trabalho no setor da Conservação e Restauro
➢ exposição ao Mercúrio
➢ humano.
Como critérios de exclusão foram assumidos:
➢ estudos não pertinentes para o objetivo da revisão, ou seja, que não respondam à questão de investigação.
Foram considerados os seguintes motores de busca/ bases de dados: Scopus, PubMed/ MedLine, Web of Science, Science Direct, Academic Search Complete, CINALH, Database of Abstracts and Reviews, Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Nursing and Allied Health Collection, MedicLatina e RCAAP.
Foram também considerados documentos fornecidos por peritos da área e com pertinência para os objetivos estipulados, ou seja, com capacidade para responder à questão de investigação. Após análise da bibliografia dos documentos selecionados, houve a possibilidade de considerar os artigos aí mencionados, caso respondessem à pergunta de investigação. De igual forma, também se procuraram documentos publicados posteriormente, que tenham citado os inicialmente selecionados, de forma a avaliar se estes também poderiam dar algum contributo para elucidar os objetivos considerados.
Nos oito primeiros quadros, os autores sintetizaram as estratégias utilizadas para encontrar artigos pertinentes, nas diversas bases de dados/ motores de busca.
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/26 | Mercury | 156.553 | 1 | não | |
Conservation | 1.063 | 2 | não | ||
e Restoration | 53 | 3 | sim | ||
Conservator | 5 | 4 | sim | ||
Restorer | 10 | 5 | sim | ||
Art | 784 | 6 | não | ||
Restrição de key-word: “mercury (metal), mercury, mercury compounds” | 76 | 7 | sim | ||
Cultural Heritage | 53 | 8 | sim |
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/26 | Mercury | (all fields) | 45.457 | 9 | não |
Restoration | 871 | 10 | não | ||
e Conservation | 20 | 11 | sim | ||
Art | 114 | 12 | sim | ||
Cultural Heritage | 5 | 13 | sim | ||
Conservator | 1 | 14 | sim | ||
Restorer | 184 | 15 | sim |
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/26 | Mercury | 349.906 | 16 | não | |
Restoration | 11.413 | 17 | não | ||
e “Conservation” | 2.482 | 18 | não | ||
e “Art” | 719 | 19 | não | ||
e “Cultural Heritage” | 207 | 20 | não | ||
e “Conservator- Restorer” | 24 | 21 | sim |
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/26 | Mercury | 107.429 | 22 | não | |
Restoration | 770 | 23 | não | ||
e “Conservation” | 38 | 24 | sim | ||
Art | 379 | 25 | não | ||
e “Cultural Heritage” | 5 | 26 | sim | ||
Conservator | 1 | 27 | sim | ||
Restorer | 2 | 28 | sim |
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/26 | Mercúrio | -pesquisa avançada -título |
55 | 29 | sim |
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/26 | Mercury | 50.211 | 30 | não | |
Restoration | 1.209 | 31 | não | ||
e “Conservation” | 21 | 32 | sim | ||
Art | 192 | 33 | sim | ||
Cultural Heritage | 5 | 34 | sim | ||
Conservator | 1 | 35 | sim | ||
Restorer | 0 | 36 | não |
Data | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|
2018/11/29 | Mercury | 45.435 | 37 | não | |
Restoration | 434 | 38 | não | ||
e “Conservation” | 55 | 39 | sim | ||
Cultural Heritage | 44 | 40 | sim | ||
Art | 641 | 41 | não | ||
Conservator | 1 | 42 | sim | ||
Restorer | 3 | 43 | sim |
Data | Bases de dados | Password 1 | Password 2 e seguintes | Nº de documentos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada |
---|---|---|---|---|---|---|
2018/11/29 | Scopus | Mercury | Systematic Review | 79 | 44 | não |
Restrição a “medicine, toxicology e review” | 51 | 45 | sim | |||
PubMed | Mercury | 2.361 | 46 | não | ||
Restrição a “humans, review, full text” e últimos 5 anos | 242 | 47 | sim | |||
Web of Science | Mercury | 38 | 48 | sim | ||
Science Direct | 1.787 | 49 | não | |||
Academic Search Complete | 65 | 50 | sim | |||
CINALH; MedLine; Database of Abstracts and Reviews; Central Register of Controlled Trials; Cochrane Database of Systematic Reviews; Nursing and Allied Health Collection; MedicLatina | 108 | 51 | sim | |||
RCAAP | Mercúrio + revisão sistemática | 0 | 52 | não |
Para além disso, os investigadores realizaram também uma revisão relativa ao que de mais recente e robusto foi publicado nos últimos cinco anos, em relação à toxicidade do Mercúrio, de forma generalista, para enquadrar a temática inicial, como já se mencionou (consultar quadro 9).
Nº das pesquisas efetivadas em que se selecionou pelo menos um artigo | Nº de artigos selecionados após a leitura do título e numeração de base na lista apresentada | Nº de artigos selecionados após a leitura do resumo | Justificação de exclusão | Inclusão e codificação | Títulos |
---|---|---|---|---|---|
3 | 1 (37) | 1 | 3.1 | Quantification of Mercury in XVIII century books by energy Dispersive X-Ray Fluorescence (EDXRF) | |
4 | 1 (4) | 1 | Repetido (3.1) | ||
5 | 1 (5) | 1 | |||
7 | |||||
8 | 1 (42) | 1 | |||
12 | 2 (103, 107) | 1 | 12.1 12.2 |
Rheumatic disease, heavy-metal pigments and the Great Masters Lead poisoning in an Art Conservator |
|
14 | 1 (1) | 1 | Repetido (12.2) | ||
21 | 2 (2, 9) | 2 | 2-Repetido (3.1) | 21.1 | Hg diffusion in books of XVIII and XIX century by synchrotron microprobe |
24 | 1 (24) | 1 | Repetido (3.1) | ||
26 | 1 (5) | 1 | |||
27 | 1 (1) | 1 | |||
28 | 1 (1) | 1 | |||
39 | 1 (19) | 1 | Repetido (3.1) | ||
40 | 1 (7) | 1 | |||
42 | 1 (1) | 1 | |||
43 | 1 (1) | 1 |
CONTEÚDO
CARATERÍSTICAS DO MERCÚRIO, VIAS DE ENTRADA E DE EXCREÇÃO, DANOS MÉDICOS, RECURSOS PARA DIAGNÓSTICO E EVENTUAL TERAPÊUTICA
Caraterísticas do Mercúrio
O símbolo químico deriva da palavra em latim “hidrargyrium” (Hg)[1,2], que significa prata líquida. Trata-se de um metal pesado, com número atómico de 80, ponto de fusão de 39ºC e ebulição 359ºC. É raro na superfície terrestre e geralmente existe como cinábrio, ou seja, sulfureto de mercúrio- HgS. Pode estar na forma inorgânica (que inclui o mercúrio líquido) e o vapor- Hg0, Hg+ e Hg2+, bem como o orgânico (metilmercúrio CH3Hg, MeHg, etilmercúrio- C2H5Hg, EtHg e fenilmercúrio- C6H5Hg, PhHg). A versão elementar à temperatura ambiente existe no formato líquido e em vapor[2]. O mercúrio elementar é o único metal líquido à temperatura ambiente e que se evapora rapidamente[1]. Existem seis isótopos de mercúrio: 196 e do 198 ao 202[3].
Principais Fontes de Mercúrio
Vários indivíduos estão expostos ao mercúrio através do ambiente, trabalho e/ ou alimentação[4]. A exposição ao mercúrio tem aumentado ao longo do tempo[2]. As atividades humanas triplicaram a quantidade de mercúrio atmosférico e tem se verificado a evolução de cerca de 1,5% ao ano[5].
Estima-se que os vulcões, fontes termais, sismos, erosão e volatilização do ambiente marinho produzam cerca de 1500 toneladas de mercúrio; por sua vez, a atividade industrial (incluindo fábricas de cloro e algumas bases, bem como centrais elétricas e a carvão) produz cerca de 2.320 toneladas por ano [2]. Outros investigadores estimaram que cerca de 2700 a 6000 toneladas de mercúrio elementar são lançadas para a atmosfera provenientes dos solos e oceanos e que o contexto industrial e a queima de combustíveis fósseis acrescentam 2000 a 3000 toneladas anualmente[6].
Globalmente considera-se que o consumo médio do mercúrio orgânico seja de 2,4 µg/ semana, se se consumir uma refeição de peixe nesse período, dos quais 2,3 µg são retidas. Por dia entram também 1,2 a 27 µg de mercúrio elementar e ficam retidas 1 a 22 µg. Ainda assim, estas quantificações variam com o número e qualidade das restaurações dentárias, hábitos de mastigação ou de mascar e existência ou não de bruxismo[1].
O mercúrio libertado aumenta a concentração atmosférica do mesmo que, através do ciclo da água, atinge os solos também e assim poderá permanecer em circulação, por muitos anos. A contaminação de solos e água permite que esta substância chegue à cadeia alimentar, através de vegetais e animais, ainda que o processo exato não seja totalmente conhecido e possa variar com as especificidades dos ecossistemas. A via de exposição mais importante para o metilmercurio (MeHg), por exemplo, é a digestiva (peixe, marisco e outros seres-vivos contaminados e usados na alimentação, via bioacumulação na cadeia alimentar, ou seja, com concentrações progressivamente superiores)[5]. A bioacumulação é especialmente relevante nas espécies marinhas de maior dimensão/ parte superior da cadeia alimentar, como, por exemplo, o atum e o tubarão (mas inicia-se no fitoplâncton)[6]. A maior fonte de MeHg é o consumo de peixe e marisco, sendo este absorvido via digestiva em mais que 90%. Algumas técnicas de cozinha (como grelhar) aumentam a concentração de mercúrio e selénio (devido à perda de água); mas acredita-se que enquanto a biodisponibilidade de selénio aumenta, diminui a do Hg, podendo implicar uma absorção na ordem dos 50 em vez dos mais de 90% atrás mencionados[7].
Outras fontes de mercúrio orgânico incluem o fenilmercúrio e o etilmercúrio (usado em algumas tintas, até 1990) e o timerosal/ etilmercúrio (usado em algumas vacinas)[5].
A maioria da ingestão é acidental. Contudo, em algumas civilizações há geofagia, ou seja, ingestão direta do solo, por questões nutricionais e culturais[8].
Na mineração do ouro, este forma uma amálgama com o mercúrio, que é posteriormente fundida; aí o mercúrio vaporiza e há toxicidade para os trabalhadores e para os residentes na proximidade. O mercúrio é depois metilado na cadeia alimentar aquática e fica biodisponível. Os trabalhadores que se ocupam da tarefa de fundir a amalgama, com alguma frequência apresentam ataxia, tremor e descoordenação. Em países como o Zimbabué, por exemplo, a intoxicação por mercúrio na mineração está incluída nos vinte maiores problemas de saúde[7].
A restauração dentária existe há mais de 100 anos; o material usado geralmente contém cerca de 50% de mercúrio elementar. Contudo, ainda que sem grandes consensos, a generalidade dos investigadores considera que a maioria do mercúrio presente no organismo não é proveniente das amálgamas[7].
Sumarizando, o contato humano com o mercúrio pode ocorrer através de:
➢ ingestão de alimentos[9]
(e em menor quantidade)
➢ ingestão de água[15]
➢ indústria do cimento[8]
➢ fábricas de agentes químicos[6], nomeadamente de cloro e bases[2]
➢ centrais elétricas
➢ centrais de carvão
➢ explosivos[2]
➢ crematórios[8]
➢ pesticidas
➢ pigmentos artísticos (por exemplo, o cinnabar)[10]/ sulfureto de mercúrio[2]
➢ bombas de vácuo[8]
➢ conservantes[6]
➢ esfigmomanómetros
➢ algumas fraldas[8]
➢ cosméticos[6], nomeadamente cremes hidratantes[2,7] e cremes branqueadores cutâneos[5,8]
➢ produtos odontológicos branqueadores[7,8] (por vezes usados em grávidas e crianças)
➢ medicações
➢ fontes termais
➢ sismos
➢ erosão marinha[2].
Diferentes formas de Mercúrio
Devido às caraterísticas físico-químicas, cada forma de mercúrio difere a nível de comportamento ambiental, interação com processos biológicos e toxicocinética[13].
As três principais formas de mercúrio de origem não ocupacional são o MeHg, vapor de mercúrio (Hg0) e o etilmercúrio (EtHg). Por sua vez, a nível laboral, destaca-se o Hg0, na mineração do ouro, sobretudo usando técnicas mais artesanais[11].
Um dos compostos de mercúrio mais tóxicos é o dimetilmercúrio- (CH3)2Hg- cuja morte pode ocorrer com apenas alguns microlitros aplicados na pele ou até por cima das luvas de latex[5].
De realçar que as amalgamas dentárias são constituídas por 50% mercúrio, 25% prata e 25% de cobre/ níquel[2].
Diretivas sumárias sobre alguns pontos de corte, em contextos específicos
A EPA (Environmental Protection Agency) a e FDA (Food and Drug Administration) estabelecem o limite de duas partes por bilião de mercúrio inorgânico, por partes de água, na água potável. Para além disso, a FDA também divulgou que, no peixe, não devem existir mais do que uma parte de metilmercúrio por milhão. A diretiva RoHs, por exemplo, também restringe o nível de mercúrio em equipamentos eletrónicos[15].
Vias de entrada
As vias de entrada poderão ser a inalatória, digestiva, cutânea[5] ou ocular[16]; contudo, nem todas as formas de mercúrio entram facilmente no organismo. O mercúrio inorgânico não vaporiza à temperatura ambiente e não entra via inalatória da mesma forma que o mercúrio metálico[5].
Comportamento dentro do organismo
As diferentes formas de mercúrio são razoavelmente interconvertíveis no organismo; por exemplo, pode ser inalado na forma elementar vaporizada e oxidado no pulmão em outras formas[2].
O mercúrio elementar é muito solúvel através das membranas, atravessando sem grandes dificuldades a barreira hematoencefálica[2,5,10] ou placentar[2] e mitocôndrias[1]. O vapor de mercúrio é muito facilmente absorvido por inalação, para a circulação sanguínea[5] e depois rapidamente chega ao cérebro. Aí é oxidado para Hg2+, sendo depois retido pelas células cerebrais por anos[10]. O mercúrio em vapor também consegue penetrar nas mucosas (oral e nasal)[1]. Outros investigadores salientam que a semivida global é de cerca de sessenta dias, ainda que no cérebro possa atingir vinte anos (devido à possibilidade do vapor se transformar em líquido). A semivida do mercúrio inorgânico é de cerca de quarenta dias[1].
O Hg0 na circulação sanguínea é facilmente oxidado nos eritrócitos e tecidos a Hg+ e Hg2+, na presença da catalase e peroxidase; mas estas duas formas não são lipossolúveis e não atravessam bem as membranas/ barreiras; mas o Hg2+ liga-se também à cisteína nos eritrócitos e é transportado em suspensão no plasma[2]. A versão metálica é encontrada ainda na tiroide, mama, miocárdio, músculos, fígado, rim, pele e pâncreas[13]. A absorção do Hg0 é mínima, mesmo quando o mercúrio dos termómetros é ingerido; a situação fica mais problemática quando este vaporiza[7].
O mercúrio proveniente do sistema digestivo (MeHg) pode atingir as células sanguíneas e o cérebro, através de ligações covalentes com a glutationa e a cisteína. A semivida do MeHg varia de sessenta a oitenta dias[13] ou trinta e nove a setenta dias, consoante a quantidade total no organismo[5], segundo outros autores. Cerca de 10% do total de MeHg existente no organismo está na região da cabeça, ou seja, aqui geralmente existem concentrações três a seis vezes superiores à sanguínea. Este concentra-se ainda no fígado[13], pulmão[2], coração e sistema cardiovascular, placenta e feto[13] (aos níveis do cérebro[2,13], fígado, rins, músculos[2], nervos periféricos e medula óssea)[13]. O MeHg facilmente atravessa a barreira hematoencefálica[2,7] e placentar, além de que pode passar através da amamentação. Só ocorre passagem para a corrente sanguínea a nível intestinal, se a substância for lipossolúvel (não ionizada); substâncias hidrofílicas poderão ser absorvidas através de transportadores[8].
O mercúrio inorgânico circula via sanguínea, acumulando-se no rim[15]- aliás alguns autores consideram que este órgão é o maior depósito de mercúrio inorgânico[13]; esta forma de mercúrio não atinge o cérebro com a mesma facilidade que a metálica. No entanto, uma pequena parte do mercúrio inorgânico consegue se transformar em metálico, dentro do organismo [15]. A nível celular é oxidado e transita de Hg para a forma iónica Hg2+, que reage facilmente com as moléculas intracelulares, alterando as suas atividades e funções. Por exemplo, níveis muito baixos de Hg2+ alteram os níveis de glutationa e aumentam o stress oxidativo; a afinidade elevada pelo selénio altera o equilíbrio entre oxidantes e defesas, sobretudo a nível cerebral. A ligação do mercúrio inorgânico ao selénio é quase irreversível e possibilita a retenção cerebral prolongada[1].
Quer o Hg0, quer o MeHg são neurotóxicos; os sais inorgânicos são nefrotóxicos. O mercúrio liga-se a várias estruturas, bloqueando-as (como é o caso dos grupos sulfidrilo dos aminoácidos, enzimas[2], acetilcisteína e glutationa)[2,13]. De realçar que esta última providencia 30 a 40% da capacidade antioxidante plasmática, sendo o protetor mais potente a este nível, no contexto cardiovascular[2]. Dada a afinidade do mercúrio aos grupos tiol, a glutationa é um dos antioxidantes mais afetados, reduzindo-a; bem como a superóxido dismutase, que fica inativada[1]. Nas metaloproteínas, por exemplo, este agente consegue competir com o zinco, cobre e selénio [2].
O Hg0 vaporiza facilmente à temperatura ambiente e pode ser facilmente absorvido via pulmonar, distribuindo-se depois pelos rins e osso, ultrapassando os danos a nível do SNC. Na circulação sanguínea o Hg0 é oxidado a ião mercúrio (Hg2+) pela catalase, componente esse com maior dificuldade em ultrapassar a barreira hematoencefálica[13].
Para além disso, 80% do mercúrio inalado difunde-se pelo epitélio pulmonar, para os eritrócitos[8].
Vias de excreção
Não se conhece qualquer função do mercúrio no metabolismo humano; logo, não foram desenvolvidos mecanismos de excreção eficientes, mesmo sendo o metal pesado mais perigoso[2]. As principais vias de excreção são a urina e as fezes (para o mercúrio metálico e inorgânico)[3]. O MeHg, por sua vez, é excretado nas fezes[2,8] e, em menor quantidade, na urina também[2]; bem como na bilis[5,8,13], à medida que vai sendo desmetilado, sobretudo na presença de selénio[8]. Para o Hg2+,a maioria da excreção também é feita através da urina e fezes[2].
Tipos de Doseamentos disponíveis/ Diagnósticos
Os testes laboratoriais podem incidir na análise sanguínea, urinálise (24 horas, teste com quelante), análise capilar e/ ou biópsia[5].
Uma vez que o mercúrio apresenta uma grande maleabilidade no organismo, poderá não existir uma correlação direta entre a concentração- doseamento e a severidade da intoxicação[5,11]. Para além disso, os biomarcadores tradicionais (como dosear o mercúrio sérico ou capilar) são práticos, mas a variabilidade interindividual dificulta um pouco a interpretação dos resultados. A existência de biomarcadores sensíveis e que positivem antes de surgirem alterações médicas irreversíveis é, por isso, importante. Eles deverão ser específicos, não invasivos e sensíveis. Dividem-se em biomarcadores de exposição, efeito ou suscetibilidade, ainda que nem sempre a classificação tenha fronteiras claras e rigorosas. Os primeiros refletem a dose interna, ou seja, a quantidade de mercúrio e/ ou dos seus metabolitos, existentes numa amostra (urina, sangue, cabelo); também poderá ser útil usar como amostra o sangue do cordão umbilical, fezes, leite ou unhas. Marcadores de dose biológica efetiva (BED- biologically effective dose) avaliam a interação entre o agente e as macromoléculas (como proteínas e DNA), ou seja, albumina, hemoglobina e ácidos nucleicos. Os biomarcadores de efeito representam alterações bioquímicas, fisiológicas ou comportamentais. Por fim, os marcadores de suscetibilidade refletem caraterísticas que potenciam a sensibilidade individual ao agente, quer por aumentarem a dose interna, quer por diminuírem o limiar da dose tóxica (por exemplo, através de polimorfismos genéticos)[11]. Na figura 1 encontra-se esquematizada a sequência que poderá ocorrer entre os diversos marcadores.
O mercúrio entra por diversas vias e formas químicas, cada uma com o seu padrão toxicológico[11].
O MeHg liga-se ao grupo sulfidrilo da queratina do cabelo, constituindo cerca de 80[11] ou 85%[14] do mercúrio capilar; este geralmente é proporcional aos níveis séricos e cerebrais de mercúrio (na proporção 250[11,14] ou 300[7]:5:1, cabelo: cérebro: sangue, respetivamente); ainda que possa varia com a idade, sexo e genética. A colheita de uma amostra de cabelo é não invasiva, havendo ainda facilidade da recolha, armazenamento e transporte. Os níveis normais no cabelo oscilam entre 1 e 2 µg/g, ainda que grandes consumidores de peixe possam atingir 10 µg/g. O nível mais baixo para o qual se verificam alterações neurológicas (LOAEL- lowest observed adverse effect level) foi de 50 µg/g. Uma vantagem de usar amostras capilares é ficar com uma ideia da concentração de mercúrio ao longo do tempo. A correlação com os níveis fetais também é boa (pelo que a concentração capilar pode servir como biomarcador de risco pré-natal). A difusão do mercúrio via placentar é mais relevante que pelo leite materno. A análise capilar dos diferentes isótopos de mercúrio poderá permitir distinguir exposição ocupacional versus alimentar, dentária ou vacinal[11].
As amostras urinárias são as mais usadas a nível de exposição ocupacional e dentária (pelas amalgamas). Este mercúrio que se doseia na urina resulta da acumulação a nível renal pelo que, a médio e longo prazo, reflete a carga corporal. As alterações neurológicas geralmente ocorrem para níveis urinários de mercúrio superiores a 35 µg/g de creatinina; contudo, alguns investigadores alegam alterações neurocomportamentais acima de 20-30 µg[11].
A concentração sérica é considerada como sendo um biomarcador fiável de exposição. Os níveis sanguíneos de indivíduos que consumam muito peixe geralmente oscilam entre os 5 e os 10; se tal não for habitual geralmente não se excedem os 2 µg/L. No sangue, 90% do MeHg está no eritrócito, ligado à hemoglobina; já o Hg0 e o Hg2+ distribuem-se entre os eritrócitos e o plasma. O nível plasmático oscila entre 5 e 35%, em função da idade e alimentação, mas geralmente predomina o Hg2+. Como a cinética do mercúrio no sangue é relativamente rápida, este doseamento será mais relevante para avaliar uma exposição ocorrida no momento ou então uma situação muito continuada (crónica); ou seja, não válida para exposições intermitentes e ocorridas há algum tempo[11].
A análise do sangue do cordão umbilical doseia o MeHg, ainda que se saiba que estes níveis consigam ser 1,5 a 2 vezes os níveis maternos[7,11]. Para além disso, a concentração nas unhas das mãos e dos pés maternos, também apresentam boa correlação com os níveis do cordão umbilical[7].
A nível de biomarcadores de efeito, destacam-se as alterações neurocomportamentais (neuromotoras, neuropsicológicas e neurofisiológicas), nomeadamente na linguagem, atenção, memória, coordenação mão-olho, tempo de reação, quociente de inteligência e função cardíaca. Em crianças pequenas pode-se considerar avaliar a idade em que começaram a conseguir sentar, andar e falar[11].
A nível de biomarcadores de suscetibilidade, considera-se a fase da vida, nível socioeconómico, situação geográfica, hábitos de consumo de peixe e profissão. Como marcadores inovadores de suscetibilidade podem ser considerados os polimorfismos genéticos, ou seja, genes que influenciam a acumulação de mercúrio (sobretudo associados à glutationa)[11].
Contexto histórico
Desde o Paleolítico (30.000 a 20.000 aC) que são usados pigmentos com mercúrio, como o cinábrio (sulfureto de mercúrio, HgS), devido ao tom vermelho, para ilustrar bisontes, touros, veados, cavalos e humanos[2]; tal como os egípcios (desde 8000 aC)[17], chineses e romanos também o utilizaram [1] (séculos VII a VI aC)[2]. Contudo, foi apenas em 1830 que o seu uso foi mais banalizado, através das amalgamas e como branqueador dentário em crianças. Por volta de 1900 foi sintetizado o etilmercúrio (usado como antifúngico)[1].
O cinábrio é a forma natural do sulfureto de mercúrio e o vermelhão é o seu equivalente artificial. A primeira receita de vermelhão conhecida é do ano de 490; acredita-se que foi inventada pelos Chineses e divulgada para o Ocidente pelos Árabes. Durante algum tempo ambas as formas coexistiram, mas o cinábrio, como pigmento, desapareceu das casas comerciais por volta de 1880, segundo dados diretamente fornecidos por peritos.
A primeira morte histórica associada ao mercúrio foi a de Qin Shi Huang (primeiro imperador que unificou a China), devido aos tratamentos para obter a “imortalidade” que voluntariamente se submeteu[2,5]. Mais recentemente, a morte de sessenta trabalhadores envolvidos na construção da Catedral de S. Isaac, na Rússia, entre 1818 e 1858, devido ao produto usado para dar um tom dourado[5].
O pintor Benvenuto Cellini foi envenenado com mercúrio e verificou ter ficado muito melhor em relação à sífilis[2]. A morte da atriz Olive Thomas, que ingeriu um comprimido de mercúrio para tratamento da sífilis, prescrito ao marido, em 1920, também foi um incidente divulgado[2].
Encontram-se relatos acerca do envenenamento de algumas zonas rurais do Iraque em 1971 e 1972, através de um fungicida[2,5] que continha mercúrio[2].
Existe também o acidente de Minamata (Japão) em 1953[5] (ou de 1932 a 1968)[8] e do rio Agano (Niigata), por bioacumulação nas espécies marinhas[2,5] (sendo o peixe um importante alimento na dieta local[7]). A população começou a apresentar tremor, descoordenação motora, alterações na dicção, alterações sensoriais, amaurose, paralisia cerebral e neuropatia periférica (sobretudo nas crianças nascidas de mães afetadas), bem como coma e até morte[2]. O subtipo específico foi o metilmercúrio[7], proveniente de uma fonte industrial[8]. Por isso, às alterações neurológicas das crianças expostas deu-se o nome de doença de Minamata[7,8]. Ainda hoje, o consumo de peixe constitui a maior fonte de contaminação para os humanos, ficando assim o risco potenciado em populações costeiras e com grandes tradições gastronómicas a esse nível (como esquimós e ameríndios próximos do rio Amazonas, por exemplo). Aliás, estima-se que é possível absorver cerca de 95% do mercúrio ingerido nestas condições, sendo que uma fração significativa deste fica acumulado a nível cerebral[8], como já se mencionou.
A convenção de Minamata foi assinada por 128 países e ratificada por 20 (em 2015), esperando-se que mais países colaborem nos próximos anos, com o compromisso de atenuar as emissões de mercúrio[7].
-Contexto geral
Considera-se que os fetos e as crianças podem ser mais suscetíveis[11]. A intoxicação dependerá da fórmula química e via de exposição[5]. Os sintomas poderão se tornar irreversíveis[11] e, eventualmente, levarem até a um desfecho fatal[5,11]. Ainda que as consequências sejam conhecidas, parte dos mecanismos associados à toxicidade não são[11], sobretudo com exposições menos intensas[13]. Apesar da deposição de mercúrio ocorrer sobretudo a nível do sistema nervoso, na realidade, tal pode acontecer em muitos outros locais. É uma das substâncias mais tóxicas para humanos, ainda que tenha sido também usado em contexto médico[1]. É considerado o terceiro agente mais tóxico pela US Governmental Agency for Toxic Substances and Disease Registry, atrás do arsénio e chumbo[5].
Há uma variabilidade na suscetibilidade interindividual; o que poderá estar associado a genes que tornam o indivíduo mais vulnerável; sendo também relevante a concentração[13], dose e tempo de exposição[11,13], bem como interconversão entre diversos tipos de mercúrio, dentro do organismo[13]. Há também quem considere que a absorção e toxicidade do MeHg, por exemplo, variam com a etnia, genética e dieta[7].
Populações em algumas zonas da floresta amazónica e do Japão apresentam consumos elevados de mercúrio, mas uma semiologia mais discreta do que a que ocorreu em Minamata; acredita-se que tal possa se justificar com o efeito protetor do selénio. Para além disso, considera-se que os ácidos gordos polinsaturados, iodo, antioxidantes (licopeno, proantocianidinas e polifenóis no chá e tomate), conseguem modular a toxicidade do MeHg[7].
Como curiosidade, alguns investigadores acreditam que microrganismos como a candida albicans (e não só) têm a capacidade de absorver mercúrio, pelo que a sua diminuição poderá potenciar a toxicidade[5].
-Alterações em contexto de Stress Oxidativo
Alguns metais pesados conseguem alterar os padrões metabólicos celulares através da indução de um estado pró-oxidante (alteração na comunicação intercelular e produção aumentada de citoquinas inflamatórias)[18]. O mercúrio consegue alterar a permeabilidade da membrana e causar danos no DNA; também é capaz de induzir stress oxidativo[2,4,8]mesmo em doses baixas (aumento das espécies reativas de oxigénio), disfunção mitocondrial[2,18], alterações na homeostasia do cálcio[18] e da peroxidação de lípidos[4] (resultante do facto de aumentar a produção de peróxido de oxigénio, anião superóxido e óxido nítrico[11]). Este agente altera ainda várias enzimas responsáveis pelo controlo de espécies reativas de oxigénio[4,18], como a glutationa, logo, havendo diminuição na capacidade de defesa para o stress oxidativo[11.13]. Este agente liga-se a várias estruturas, bloqueando-as (como é o caso dos grupos sulfidrilo dos aminoácidos, enzimas, acetilcisteína e glutationa). De realçar que esta última providencia 30 a 40% da capacidade antioxidante plasmática, sendo o protetor mais importante a este nível, no contexto cardiovascular[2].
-Alterações Neurológicas
A exposição a quantidades significativas de metais pesados origina alterações neurológicas[8], contudo, outros investigadores relataram o mesmo com exposição discreta[2]. Existem questões que fazem com que algumas substâncias não entrem com facilidade no SNC (sistema nervoso central), nomeadamente o facto de as células endoteliais estarem muito juntas, existirem transportadores que devolvem ao sangue alguns agentes, bem como os capilares estarem rodeados por astrócitos[8].
Durante muito tempo pensou-se que a toxicidade do mercúrio era apenas neurológica[2], uma vez este agente consegue alterar a barreira hematoencefálica[5]. As formas de mercúrio orgânico são mais tóxicas porque são lipofílicas e assim conseguem penetrar em membranas, ultrapassando a barreira hematoencefálica[6].
O MeHg acumula-se nos astrócitos, o que dificulta a remoção de glutamato da sinapse; a acumulação deste último potencia a morte neuronal[11]. 80% do Hg0 consegue passar a barreira hematoencefálica na forma oxidada e chegar ao SNC. As alterações neurológicas parecem ficar potenciadas com a exposição conjunta a MeHg (proveniente do consumo de peixe, por exemplo) e o EtHg (das vacinas)[7]. O mercúrio inorgânico fica no cérebro mesmo meses após a exposição ter terminado. O etilmercúrio e o MeHg atravessam a barreira hematoencefálica e também se depositam nas células cerebrais[19].
A neurotoxicidade geralmente é precedida de um período de latência, dependente da dose, ou seja, mesmo situações fatais tiveram um período de dez dias e sete semanas (para o etilmercúrio) ou até um ano (para o metilmercúrio), sem semiologia evidente; contudo, alguns estudos apontam para que esse prazo se possa alongar para vários anos. Logo, o doseamento sérico, após exposição antiga, poderá não ser a melhor forma de avaliar a situação[19].
As alterações neurológicas mais destacadas na literatura selecionada foram a nível de:
➢ funções motoras finas[8]
➢ disartria[5]
➢ tremor[5,10,16] (a nível de mãos, cabeça, lábios, língua, mandíbula e pálpebras)[5,13]
➢ amaurose/ retinopatia/ neuropatia ótica[5]
➢ perda de audição
➢ anosmia
➢ alteração na sensibilidade tátil[5], nomeadamente parestesias distais e labiais[7]
➢ alucinações, paranoia[13]
➢ Autismo[5,10](embora alguns investigadores discordem que haja evidência conclusiva)[8]
➢ doença de Parkinson (não consensual)[8]
➢ doença da Guerra do Golfo[10]
➢ Esclerose Lateral Amiotrófica
O Autismo carateriza-se por conjugar limitações sociais graves, de linguagem e outras formas de comunicação, movimentos anormais e algumas alterações sensoriais; estes indivíduos apreciam a manutenção das rotinas. Alguns investigadores consideram que o mercúrio consegue produzir um quadro com algumas semelhanças, pelo que acreditam que esta patologia pode estar associada a esta substância[5].
Encontram-se publicações que afirmam que a doença de Alzheimer pode estar associada à exposição a mercúrio inorgânico. In vitro e em estudos animais, esta substância consegue produzir as alterações existentes na doença de Alzheimer, sobretudo através do stress oxidativo e afinidade com o selénio. Daí que se considere que o mercúrio é um cofator relevante nesta patologia, podendo mesmo potenciar os danos locais de outros metais; neste contexto parece ser particularmente relevante a inalação de mercúrio gasoso elementar. Os estudos em autopsias, por sua vez, são contraditórios: uns encontram níveis elevados de mercúrio em indivíduos com Alzheimer, outros não (contudo, não houve homogeneidade nas zonas cerebrais específicas analisadas, nem no timing e, como substância volátil, tal torna-se relevante. Para além disso, há variabilidade interindividual na depuração/ quelação natural do mercúrio[1].
-Alterações Emocionais/ Psiquiátricas
Neste contexto, a literatura consultada destaca as seguintes situações como estando eventualmente associadas à exposição ao mercúrio: irritabilidade[5,16]; alterações de humor/ comportamentais[6,7], nomeadamente depressão[5,10] e ansiedade[10]; insónia [5,13,16,19]; paranoia, alucinação e alterações na concentração[5].
-Alterações cardíacas
Mesmo em doses baixas o mercúrio consegue causar danos no coração[2,5], através do stress oxidativo[2,9]. A acumulação a nível cardíaco poderá gerar cardiomiopatia e justificar dor anginosa; acredita-se que o MeHg conseguirá inibir a atividade protetora da paraoxonase[5]- enzima extracelular antioxidante associada ao HDL colesterol, o que contribui para a inversão do transporte lipídico. O mercúrio também ativa a fosfolipase A2, potenciando a inflamação a nível coronário e cerebral, bem como rotura de placas previamente formadas[2]. Para além disso, este agente poderá induzir anemia hemolítica ou aplástica, devido à competição com o ferro, na hemoglobina[5], com eventuais repercussões cardíacas.
Salientam-se também a Hipertensão Arterial[2,3,6,20] (em alguns estudos com um risco 1,9 a 2,5 vezes superior)[3], dose dependente[14]- mas esta associação não é consensualmente aceite[7]; Aterosclerose[2,3]- mas tal também é controverso[3]/ Doença Coronária[2,10]/ Enfarte Agudo do Miocárdio[2,6,20]; Disritmias (sobretudo com exposição em idade muito precoce)[2,20],através de alterações na função autonómica cardíaca/ parassimpática- mas não é consensual[20], Taquicardia[6]; Dislipidemia[3,6]; Excesso de Peso/ Obesidade; bem como com a resistência à insulina/ DM tipo 2[3]. Os níveis de mercúrio no cabelo correlacionam-se com os de oxidação do LDL colesterol, frequentemente encontrado nas lesões ateroscleróticas[2].
Caso exista realmente relação entre a Tensão Arterial e o mercúrio, esta provavelmente poderá ser explicada pelas catecolaminas, vasoconstrição secundária[3] ao stress oxidativo[3,14] (variações na glutationa, superóxido dismutase e óxido nítrico) e à intensificação da atividade da enzina convertora da angiotensina[3]. Considera-se que o MeHg é a forma mais tóxica a nível cardiovascular. A associação da Hipertensão Arterial e o mercúrio não é consensualmente aceite, como já se escreveu, em parte por os estudos não serem totalmente comparáveis (forma de mercúrio doseada, níveis de exposição diferentes, patamar socioeconómico, adaptação genética à exposição ao mercúrio e prevalência de base da Hipertensão Arterial na população). Uma meta-análise que englobou cerca de 55.000 indivíduos, de 17 países, com exposição laboral ou via alimentar, verificou que, para níveis baixos de mercúrio (menos que 2 µg/g a nível capilar) não se encontrou correlação; ao contrário dos níveis elevados. A concentração capilar superior aos valores atrás mencionados está associada a um aumento de 59% de risco de Hipertensão Arterial, na ordem dos 2,2 a 1,24 mmHg, para a sistólica e diastólica, respetivamente[14].
-Alterações Reprodutivas, Obstétricas e Pediátricas
Esta substância tem efeitos aos níveis endócrino, reprodutivo e embrionário[5,11]. A exposição crónica, mesmo que suave, pode justificar alterações obstétricas[2], bem como azoospermia e alterações genéticas[5]. Alguns estudos também o associam a abortos, nados-mortos[5], baixo peso ao nascer[5,7]; defeitos no tubo neural, malformações craniofaciais e atraso no crescimento[7]. O mercúrio causa alterações neurológicas, sobretudo durante a gestação e infância precoce[20]; consegue atravessar a placenta e causar paralisia cerebral e atrasos psicomotores nas gravidezes mais avançadas. Por vezes, também se observa hipoplasia do cerebelo, diminuição do volume cerebral; bem como estrabismo, ataxia cerebelar, disartria, coreia e atetose, malformações nos membros superiores, hipersalivação e crises epiléticas[5]; sendo a gravidade geralmente proporcional à dose de exposição[19]. Crianças expostas a este agente podem apresentar alterações na memória[8] e atrasos no desenvolvimento[5], sobretudo se a exposição ocorrer durante a gestação e infância precoce[20].
O etilmercúrio do timerosal existente em algumas vacinas (algumas das quais administradas em grávidas e com capacidade de ultrapassar a barreira placentária) poderá estar associado, na opinião de alguns, a Autismo[20], ainda que tal seja muito controverso.
-Alterações Imunológicas
Esta substância tem efeitos a nível imunológico[5,13], mesmo com exposição suave mas crónica[2], através das alterações induzidas nos leucócitos polimorfonucleares (a nível de produção e função)[5]- nomeadamente monócitos e células “natural killer”[6] e nos mediadores inflamatórios[11](interferão gama[3,5], interleucinas 2[5], 1B[3], 6 e FNTα[3,6]). Por vezes também ocorre aumento dos anticorpos[13] antinucleares (ANA)[3,11]- ou seja, a exposição ao mercúrio pode estimular a resposta ao sistema imune[6]. Estas questões surgem para níveis de mercúrio inferiores aos quais se manifesta a neurotoxicidade. Para além disso, esta substância também se pode associar a patologias com uma dimensão autoimune, como a Esclerose Lateral Amiotrófica, Esclerose Múltipla, Artrite, Artrite Reumatoide, Psoríase, Esclerodermia[5], Lúpus Eritematoso Sistémico, Tiroidite, Eczema[5,6] e Diabetes[6].
-Alterações Renais
Mesmo em doses baixas o mercúrio altera o rim[5] através do stress oxidativo. Para além disso, uma vez que uma das vias principais de excreção é a urinária, este órgão está vulnerável a alguns metais pesados[9]. O mercúrio está na natureza em três formatos (elementar, orgânico e inorgânico) e todos apresentam toxicidade renal[9,11], ainda que alguns sejam muito nefrotóxicos. A nefropatia mais severa ocorre após contato com o Hg2+ [12], segundo alguns investigadores.
É costume existir proteinúria[9,13,16] (albumina, imunoglobinas e transferrina)[11]; a deposição de mercúrio associa-se também à produção de radicais oxidativos, alterações no RNA mensageiro, apoptose[9] e danos tubulares[9,13], alterando ainda a permeabilidade celular[9]; bem como necrose aguda tubular[5], glomerulonefrite[5,13], insuficiência renal[7]/ doença renal crónica, cancro renal[5], síndroma nefrótico[5,13] e nefrítico[5]; oligúria e anúria[13]. Contudo, se a exposição não for muito intensa, haverá um período em que a função renal ainda não apresentará alterações relevantes. O rim é um dos principais locais de acumulação de Hg0 e Hg2+ [11], como já se mencionou. Outros investigadores salientam que quer o mercúrio orgânico, quer inorgânico, acumulam-se no rim, ainda que o segundo seja mais relevante (50% da dose total, algumas horas após exposição)[12].
O envelhecimento renal implica hipertrofia glomerular e tubular, glomerulosclerose, fibrose tubulointersticial e alterações no fluxo sanguíneo renal e taxa de filtração, bem como intensificação da apoptose e alterações na metilação e reparo do DNA; bem como danos oxidativos mitocondriais, diminuição das enzimas antioxidantes (superóxido dismutase 1 e 2, catalase e glutationa peroxidase). Estas alterações tornam o rim mais suscetível a alguns agentes tóxicos, como o mercúrio. A diminuição do número de nefrónios funcionantes contribui para a glomerulosclerose dos restantes e alterações na barreira de filtração glomerular. Para além disso, o tempo necessário para metabolizar e excretar alguns agentes químicos fica aumentado nos menos jovens; o que, por sua vez, pode potenciar a lesão/ insuficiência renal[12].
-Alterações Oncológicas
O mercúrio não é diretamente mutagénico ou genotóxico; contudo, poder promover tal por outros mecanismos[18], mesmo com exposição suave, sobretudo se crónica[2]. É inserido pela IARC (International Agency for Research on Cancer) no grupo 3 (não classificável quanto à carcinogenicidade em humanos)[13,18], exceto o MeHg (grupo 2B)[13].
-Alterações Dermatológicas
Poderão surgir Dermatite/ Eczema[21] pruriginoso. Está também globalmente descrita a possibilidade deste agente se associar a situações de ulceração cutânea e exantema[6].
-Alterações Hematológicas
O mercúrio poderá causar alterações a este nível[5] através da interferência negativa com a síntese do heme (devido a alterações enzimáticas), de uma forma dose-dependente; levando à acumulação de porfirinas, cuja excreção é renal[11]. Poderão ainda ocorrer Anemias hemolítica e aplástica[13].
-Alterações Pulmonares
O Mercúrio poderá acarretar algumas alterações neste contexto, nomeadamente Bronquite[5,16] e Fibrose pulmonar[5]. A inalação de mercúrio metálico pode originar Pneumonite[6,7]; em concentrações muito elevadas pode surgir também Bronquite necrotizante[6] (caraterizada por tosse, dispneia e toracalgia, por exemplo)[6,11].
-Alterações Oftalmológicas
O contato com Mercúrio pode justificar irritação ocular ou situações mais complexas como Amaurose/ Retinopatia/ Neuropatia ótica[5].
-Alterações Otorrinolaringológicas
A este nível, apenas uma das referências bibliográficas consultadas mencionou a possibilidade de surgir Hipoacusia associada ao mercúrio[5].
-Alterações Gastrointestinais
A absorção de Mercúrio no aparelho digestivo pode causar inibição da produção de tripsina, quimotripsina e pepsina. Os sintomas mais frequentes são a cólica, indigestão, Doença Intestinal Inflamatória, úlceras e diarreia hemorrágica. Para além disso, parte da flora intestinal é destruída, alterando a absorção e potenciando algumas reações cruzadas[5]. Poderão também ser registados situações de estomatite, hipersalivação, anorexia e emagrecimento[16].
-Alterações Endócrinas
Esta substância pode ter efeitos aos níveis endócrino, reprodutivo e embrionário (como já se mencionou), nomeadamente em contexto Suprarrenal (catecolaminas- Hipertensão Arterial[5], por hiperplasia/ atrofia[13]), Hipofisário, Tiroideu[5] (Hipotiroidismo, inflamação tiroideia[13]) e Pancreático[5,13] (Diabetes Mellitus). As hormonas que parecem ser mais sensíveis ao Mercúrio são a insulina, estrogénios, testosterona e adrenalina[5].
Este agente consegue ainda inibir a degradação de catecolaminas através da inativação da s-adenosil-metionina, surgindo acumulação de epinefrina (que poderá justificar hiperhidrose, taquicardia, ptialismo e hipertensão)[5].
O Mercúrio consegue originar alterações no eixo Hipotálamo-Hipófise-Suprarenal e gónadas; o que, por sua vez, pode perturbar a função reprodutiva (produção de FSH, LH, inibina, estrogénio, progesterona e androgénios)[5]. Alguns investigadores reportaram diminuição da fertilidade[5,13] entre profissionais associados à medicina dentária, expostos ao Mercúrio. Esta substância pode conseguir alterar a espermatogénese, contagem espermática, volume testicular e até contribuir para a disfunção erétil; bem como disfunção ovárica, dismenorreia, irregularidades menstruais e menopausa precoce[5].
Níveis elevados de MeHg ou IHg (inorgânico) conseguem danificar vários tipos de células, incluindo as β-pancreáticas. Ainda que o mercúrio se possa associar a hiperglicemia, os resultados são inconsistentes e não há evidência científica robusta de causalidade[4], segundo alguns investigadores.
-Alterações em Contexto da Síndroma Metabólica
A Síndroma Metabólica inclui o Excesso de peso/ Obesidade (quantificada através do perímetro abdominal), Tensão Arterial elevada, Dislipidemia (HDL baixo e triglicerídeos elevados) e intolerância à glicemia/ Diabetes[3,4]. Algumas instituições também incluem Hiperuricemia, estados protrombóticos, disfunção de marcadores inflamatórios endoteliais e microalbuminúria. Esta patologia apresenta morbilidade e mortalidade cardiovascular consideráveis. A exposição em adultos[3] ou pré-natal ao Mercúrio pode associar-se a eventual maior probabilidade de apresentar Síndroma Metabólica em adulto[7].
Tratamento
O tratamento passa pela remoção do indivíduo da fonte de exposição e, por vezes, é necessário usar quelantes[9]. Estes ligam-se ao metal e são excretados via urinária; contudo, não conseguem atravessar a barreira hematoencefálica, pelo que não têm tanta utilidade a nível cerebral. O quelante pode ser administrado por vários dias seguidos ou de forma intermitente. A resposta ao quelante será em função da via de administração, distribuição no corpo e tratamento antioxidante simultâneo ou prévio (vitamina E, acetilcisteína ou lipoato)[10].
Durante a segunda Guerra Mundial, o BAL (British Anti-Lewisite ou 2,3-dimercapto-1-propanol) foi desenvolvido para tratar a intoxicação por arsénio, secundária ao gás Lewisite, mas verificou-se e sua eficácia também para o Mercúrio[10].
O DMSA (ácido dimercaptosuccínico) foi criado para ser usado na shistossomiase mas, na década de cinquenta constatou-se o seu papel como quelante, usado sobretudo na União Soviética e China[10].
Em 1980 os EUA e a Europa começaram a usar o DMPS (dimercapto propano sulfonato) e o DMSA[10].
A intoxicação por Mercúrio pode melhorar pela conjugação entre a DMPS e a hemodiafiltração[10]. Aliás, o uso de agentes quelantes poderá ser auxiliado pela potenciação da diurese (modificação do pH urinário), incrementando a excreção fecal e/ ou através da hemodiálise[2].
O resumo das caraterísticas dos quelantes usados no Mercúrio está registado no quadro 10.
Quelante | Sigla | Via de administração | Toxicidade | Eficácia | Faixa etária |
---|---|---|---|---|---|
Ácido meso 2,3 dimercaptosuccínico | DMSA | Oral Retal (supositórios) Endovenosa (1ª dose injetável e 8 dias via oral) |
Muito discreta | Eficaz (preferida para o Mercúrio); facilmente absorvida a nível gastrointestinal | Crianças Adultos |
2,3 dimercaptipropanosulfonato | DMPS | Oral Endovenosa Intramuscular |
Discreta (diminui o cobre, zinco, selénio e o magnésio- pode exigir reposição) | Muito eficaz | Adultos [2,9,10] |
2,3 dimercapto-1-propanol British anti Lewisite |
BAL | Oral Endovenosa |
Moderada | Moderada | |
D- penicilamina | DPCN | Oral | Contraindicada na trombocitopenia, proteinuria, hematúria e síndroma nefrótico | Só atua perante Mercúrio metálico e inorgânico; orgânico não |
Plantas e/ ou que substâncias que podem apresentar benefício relativo à toxicidade renal do Mercúrio, segundo alguns autores, serão a ginkgo biloba, chá de polifenóis, schisandurin B, curcumina, vitamina E, óleo de semente de romã, fruto tribulus terrestres, semente de eruca sativa, goma arábica e juglans sinensis[9].
CONTEÚDO OU RESULTADOS
Exposição ao Mercúrio em Conservadores- Restauradores
O vermelhão (também conhecido por cinábrio ou HgS-sulfureto de Mercúrio) é um pigmento vermelho alaranjado[15,22]; foi utilizado em telas, murais, esculturas e livros[15]. Foi empregue em obras de arte desde a antiguidade, até meio do século XX[22]; desde meio do século XVII passou também a ser usado nas capas, contracapas e lombadas de alguns livros, em Inglaterra[15,22]. Ainda que também se usassem os tons azul, verde e dourado, o vermelho era mais frequente. O vermelhão era dissolvido em álcool, açúcar e gema de ovo[22]; era preparado antigamente com o aquecimento e junção de enxofre. Ainda que pouco utilizado hodiernamente[15,16,22] devido à sua toxicidade[15,22], o processo de fabrico presentemente é diferente[16]. Uma vez que o Mercúrio é bastante tóxico torna-se pertinente que o Conservador- Restaurador consiga perceber se este existe no objeto que deverá trabalhar[15,22], mantendo-se obviamente esse interesse para outros profissionais que possam contatar com a peça[15].
Encontrou-se um artigo da autoria de um grupo de investigadores que pretendia quantificar o Mercúrio existente na tinta usada para colorir alguns livros do século XVIII, que necessitam de Restauro, através do método EDXRF (Fluorescência de Raios-X Dispersiva de Energia). Esta equipa encontrou níveis muito elevados em dois exemplares, de 1756 e 1753; contudo, outros onze da mesma época, não apresentavam quantidade significativa deste agente (os livros foram selecionados pela data de publicação e tom vermelho da capa). Nos livros analisados a concentração de mercúrio demonstrou-se superior nas zonas que apresentavam mais contato cutâneo (capa, contracapa e lombada)[15].
Noutro artigo da mesma equipa de investigadores, concluiu-se que a concentração de mercúrio era superior nas superfícies externas dos livros, com alguma difusão para as páginas interiores, mas não para as áreas mais centrais. Sabe-se que o mercúrio consegue se difundir para zonas inicialmente sem esse pigmento e que o contato cutâneo com o mesmo pode levar a dermatite e alterações respiratórias[22].
Encontrou-se também um caso clínico associado a um Conservador- Restaurador que trabalhava numa tapeçaria, usando um pigmento que é constituído por sulfureto de Mercúrio, misturado com chumbo vermelho (Pb3O4) a 1%, encontrado junto à tapeçaria, ainda que a enfase do documento fosse a intoxicação por Chumbo e não por Mercúrio, dado esses autores considerarem que a perigosidade do primeiro era superior. Nesse caso clínico, ao longo de dois meses existiram alterações neurológicas (astenia, tontura), gastrointestinais (cólica) e musculares (mialgias); para além disso, também se encontrou uma anemia progressivamente agravada, com basofilia e esplenomegalia. Os níveis séricos de chumbo estavam elevados (130 µg/dl). Exames realizados a nível de condução nervosa motora verificaram um quadro de polineuropatia das extremidades inferiores. Dado o agravamento da neuropatia e dos valores séricos do chumbo, optou-se pelo internamento, para realizar terapia quelante com CaNa2- EDTA (250 mg com 5% de dextrose, duas vezes por dia, cinco dias). Dez dias após, a semiologia estava atenuada e os níveis séricos de chumbo também estavam mais baixos, ainda que na semana seguinte tenham voltado a subir (mesmo sem o contato com o trabalho). A própria trabalhadora reconheceu que colocava no passado alguns instrumentos contaminados na boca, para os humedecer e trabalhar mais facilmente. O processo demorou seis semanas e decorreu num espaço mal ventilado. Os sintomas hematológicos (sobretudo a anemia) surgiram três a quatro meses após a exposição, o que demonstra o atingimento fisiológico da eritropoiese; a longevidade do eritrócito estava também diminuída, associada a hemólise[23].
Medidas de Proteção Coletiva
Entre os documentos selecionados, não se encontrou qualquer referência direta a eventuais medidas de proteção coletiva.
EPI (equipamentos de proteção individual)
Em relação aos EPIs, apenas um artigo mencionou ser adequado o uso de luvas[15], ainda que não tenha definido sequer o material das mesmas.
Doenças Profissionais
No quadro 11 estão transcritas as principais doenças profissionais associadas ao Mercúrio, em função do Decreto Regulamentar 76/2007, de 17 de julho, ainda que parte delas não tenha sido mencionada na bibliografia selecionada.
Código | Fatores de risco | Formas clínicas/ Risco | Prazo |
---|---|---|---|
11.02 | Mercúrio e seus compostos | Ulcerações cutâneas Dermatites de contato ou traumáticas Hiperqueratose e verrugas Epitelioma Úlceras e perfuração do septo nasal Blefarite e conjuntivite Alterações gastrointestinais (vómitos, diarreia) |
15 dias 30 dias 10 dias 1 ano 1 ano 1 ano 1 ano |
DISCUSSÃO
Existindo tão pouca bibliografia relativa aos riscos médicos do Mercúrio em Conservadores- Restauradores, os autores optaram por inserir na secção de Discussão alguns dados relativos a outros profissionais que também possam contatar com este agente. Entre estes, os artistas que elaboram (ou sobretudo elaboraram no passado) obras de arte com pigmentos com Mercúrio, talvez sejam os mais adequados, ainda que também sobre estes a bibliografia seja muito reduzida.
Acredita-se que alguns pintores famosos (como Rubens, Renoir, Dufy e Klee) usavam com alguma frequência pigmentos com sulfureto de Mercúrio. Aos três primeiros foi diagnosticada artrite reumatoide e ao último esclerodermia[17].
O risco em artistas (pintores) podia ficar potenciado devido à não lavagem adequada das mãos antes de fumar ou comer, ou até pelo hábito de lamber os pinceis com tinta. Por exemplo, acredita-se que os 0,05 ml de cinábrio depositados num cigarro contenham 100 a 150 mg de sulfureto de Mercúrio; por sua vez, cada lambidela num pincel em utilização poderá conter cerca de 0,05 ml de cinábrio; o que excede em larga escala o limite considerado aceitável. Para além disso, alguns artistas (sobretudo os mais pobres) cozinhavam e comiam dentro da área que também funcionava como atelier. Fogueiras para aquecer o espaço poderiam contaminar ainda mais o ambiente, criando-se compostos com Mercúrio facilmente absorvíveis vias digestiva e cutânea[17].
Hoje em dia os pintores usam pigmentos menos tóxicos, os produtos perigosos estão devidamente rotulados e sabe-se já que não é boa ideia lamber pinceis usados e a comida e bebida são mais dificilmente contaminadas, porque são melhor armazenadas (dentro do frigorífico), bem como cozinhadas e ingeridas em local separado; para além disso, a maioria dos cigarros consumida é comprada e não montada pelas mãos eventualmente contaminadas do pintor[17].
Tal como se mencionou atrás, a bibliografia selecionada não forneceu dados sobre Medidas de Proteção Coletiva. Em função da experiência clínica dos autores, poder-se-iam considerar:
➢ elaboração de protocolos onde se descreveria o procedimento e técnicas a utilizar para perceber se as peças apresentavam ou não Mercúrio
➢ potenciação da ventilação das salas com objetos contaminados com Mercúrio e especificação das características mínimas da mesma
➢ rotação das tarefas mais perigosas entre os diversos Conservadores/ Restauradores da mesma empresa, se possível
➢ organização do trabalho de forma a alternar projetos com exposição ao Mercúrio com outras tarefas sem exposição ao Mercúrio, se adequado
➢ formação sobre os riscos médicos do Mercúrio e procedimentos laborais associados
➢ vigilância pelo Médico do Trabalho com exames periódicos (e ocasionais, se necessário)
➢ acesso a doseamentos biológicos associados ao Mercúrio, orientados pelo Médico do Trabalho (indicando quais os tipos de amostras possíveis e quais as preferencialmente utilizadas)
➢ acesso a doseamentos nas superfícies e/ ou atmosfera do ambiente de trabalho, orientados pelo Técnico de Segurança (especificando quais técnicas poderiam ser utilizadas e quais as mais pertinentes)
➢ acesso a EPIs adequados (em modelo e material), selecionados pelo Técnico de Segurança
➢ organização de serviço de lavandaria, para que as fardas/ batas/ aventais e/ ou manguitos dos funcionários sejam adequadamente lavados, sem contaminar outras peças de roupa ou locais, no domicílio de cada Conservador- Restaurador.
Quanto a EPIs, a bibliografia selecionada apenas mencionou o uso de luvas; em função da experiência clínica dos autores, poder-se-iam também considerar macacão, farda, bata ou avental; manguitos; máscara e/ ou viseira; óculos e protetores de calçado (em contexto químico) ou calçado exclusivo para o local de trabalho.
LIMITAÇÕES
Os autores desenvolveram esforços no sentido de tentar que a sua pesquisa fosse exaustiva mas, uma vez concluída, perceberam que não encontraram dados relevantes sobre:
➢ doseamento do Mercúrio nos ambientes de trabalho da Conservação/ Restauro em geral e muito menos nos diversos subsetores (à exceção do Restauro de livros) ou por subtipos de Mercúrio; nem indicação de quais técnicas são possíveis utilizar e quais as preferenciais
➢ doseamento biológico do Mercúrio numa amostra geral de profissionais do setor, expostos a este agente, muito menos nos subsetores atrás mencionados, por tipo de Mercúrio ou tipo de amostra biológica; nem referências ao tipo de amostra mais adequado a cada situação
➢ avaliação do risco associado para os Conservadores- Restauradores, em função dos doseamentos obtidos e restante análise ao posto de trabalho
➢ descrição de medidas de proteção coletiva
➢ descrição de EPI adequados (sequer de forma genérica, quanto mais especificando modelos e/ou materiais).
CONCLUSÕES
Desde longa data que são conhecidos malefícios concretos e sérios associados ao Mercúrio. Contudo, o setor da Conservação e Restauro é ainda muito pouco estudado em contexto de Saúde Ocupacional e os riscos do eventual contato com Mercúrio não são exceção.
Seria muito pertinente que surgissem equipas motivadas para estudar este setor e colmatar parte das limitações encontradas, não desenvolvidas na literatura internacional.