INTRODUÇÃO
A sintomatologia musculoesquelética continua a ser uma das condições mais frequentes na nossa sociedade, afetando os indivíduos, independentemente do sexo, idade e contexto socioeconómico (1) (2).
É um dos principais fatores incapacitantes durante o ciclo de vida, sendo considerado um problema de saúde pública com impacto na vida pessoal e profissional. E tem, inclusive, uma influência direta na produtividade do país e das instituições: seja, por um lado, pela taxa de absentismo que dela pode resultar; seja, por outro lado, pelo presenteísmo causando desconforto entre o próprio e restantes trabalhadores, com repercussão na sua qualidade de vida (3) (4).
O impacto da sintomatologia musculoesquelética é especialmente evidente nos profissionais de enfermagem devido às suas condições de trabalho e às tarefas que têm de realizar (5).
De facto, estes profissionais estão permanentemente expostos a riscos ocupacionais devido a exigências biomecânicas, fisiológicas, psicológicas e sociais, independentemente do contexto, cargo ou função que desempenhem (5-7).
Por outro lado, no início da sua prática clínica, os estudantes de enfermagem também são expostos às mesmas situações e riscos que podem desencadear a sintomatologia musculosquelética. A literatura relata que, nessa população, a sintomatologia musculoesquelética está associada a movimentos repetitivos, a posturas mantidas e inadequadas (quer na prática clínica direta, quer na utilização do computador) ou ao manuseamento manual de cargas, o que leva a uma sobrecarga do sistema musculoesquelético, colocando em risco não só o estudante, assim como o próprio cliente (8-10).
Estudos nessa área identificam e relacionam fatores predisponentes da sintomatologia musculoesquelética com repercussões no sono e repouso, ansiedade, stress académico, diminuição do desempenho físico e mental, interferindo no bem-estar e na qualidade de vida dos estudantes (8-11).
Consideramos que a sintomatologia musculoesquelética em estudantes de enfermagem é um assunto relativamente pouco explorado, apesar de ter uma enorme importância no ambiente académico. Desta forma, é fundamental conhecer a prevalência desta sintomatologia em estudantes de enfermagem, para que se defina uma estratégia com base na sua prevenção ou minimização (12).
Para cumprir os objetivos deste estudo, foi realizada uma revisão sistemática da literatura (RSL), norteada pela metodologia proposta pelo JBI para a realização da revisão sistemática de dados de prevalência e incidência (13).
O objetivo desta revisão foi identificar as evidências sobre a prevalência e os fatores de risco da sintomatologia musculosquelética nos estudantes do curso de licenciatura em enfermagem.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi utilizada uma revisão sistemática da literatura em que a questão da pesquisa foi formulada através da estratégia PICo (13) (14), onde cada componente do acrónimo contribuiu para definir os critérios de inclusão: População (P) - estudantes de Enfermagem; Fenómeno de interesse (I) - sintomatologia musculoesquelética e fatores associados; Contexto (Co) - curso de enfermagem. Como critérios de inclusão, foram utilizados os estudos disponíveis em texto integral e gratuito, em inglês, português e espanhol, publicados entre 2014 e 2019, experimentais e quase-experimentais. Como critério de exclusão, considerou-se tudo o que não respondia à questão do estudo.
A estratégia de pesquisa eletrónica foi realizada durante o mês de março de 2019 através das plataformas: EBSCOhost®, CINAHL Complete, MEDLINE Complete, Nursing & Allied Health Collection: Comprehensive, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, MedicLatina e a Biblioteca Virtual de Saúde.
Os descritores utilizados foram: sintomas musculoesqueléticos; distúrbios músculo-esqueléticos; sistema musculoesquelético; prevenção primária; promoção de saúde; estudantes de enfermagem, previamente validados nas plataformas de descritores Health Sciences (DeSC) e Medical Subject Headings (MeSH).
Foi também utilizada a seguinte equação de pesquisa: (estudantes de enfermagem) AND (doenças musculoesqueléticas) OU (distúrbios musculoesqueléticos) AND (prevalência ou fatores associados). Dois revisores realizaram a pesquisa de forma independente, a fim de garantir a precisão do método e a confiabilidade dos resultados (FF and LS). Para validação metodológica anterior à inclusão na revisão, foi utilizado um instrumento padronizado de avaliação crítica da JBI - check-list de avaliação crítica para estudos que relatam dados de prevalência (13). Não houve discordâncias entre os revisores em relação à inclusão ou avaliação crítica dos resultados.
Os resultados são apresentados de forma narrativa, incluindo tabelas para apoiar a apresentação dos dados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As etapas para identificação e seleção dos estudos para inclusão são apresentadas no fluxograma PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses) da figura 1.
Foram identificados para estudo um total de 391 estudos potencialmente relevantes e foram selecionados nove artigos para revisão final. Os critérios de inclusão e exclusão foram aplicados por consenso entre os revisores. Os artigos que cumpriam os critérios de inclusão foram avaliados quanto à qualidade metodológica (Tabela 1).
Referências bibliográficas | Ano de publicação | Amostra de estudantes enfermagem | País de publicação | Instituição |
---|---|---|---|---|
Antochevis de Oliveira M et al | 2017 | 149 | Brasil | Ensino Universitário |
Lövgren, Malin, et al. | 2013 | 1.153 | Suécia | Ensino Universitário |
da Silva, Camila Damázio, et al. | 2011 | 211 | Brasil | Ensino Universitário |
Abledu, Jubilant Kwame, and Eric Bekoe Offei | 2015 | 157 | Gana | Ensino Universitário |
Backåberg, Sofia, et al | 2014 | 224 | Suécia | Ensino Universitário |
Singh, Ajit, Yengkhom Sonia Devi, and Swapna John. | 2010 | 317 | Índia | Ensino Universitário |
Cheung, Kin | 2010 | 388 | China | Ensino Universitário |
AlShayhan, Fahad Abdullah, and Munir Saadeddin | 2018 | 1163 | Arábia Saudita | Ensino Universitário |
Nunes, Henrique, Arménio Cruz, and Paulo Queirós | 2016 | 452 | Portugal | Ensino Universitário |
Fonte: Elaborado pelos autores
Essa ferramenta avaliou a validade, aplicabilidade e relevância dos estudos incluídos, com base em nove domínios de pesquisa: amostra, colheita de dados, desenho do estudo, risco de viés, mensuração, análise estatística, procedimento; critério de inclusão; prossecução ao longo do tempo. Essas características são apresentadas na tabela 2.
Autor do artigo | Q1 | Q2 | Q3 | Q4 | Q5 | Q6 | Q7 | Q8 | Q9 | y |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Antochevis de Oliveira M et al | Y | Y | Y | Y | Y | U | U | Y | Y | 7 |
Lövgren, Malin, et al. | Y | Y | U | Y | Y | Y | Y | Y | Y | 8 |
da Silva, Camila Damázio, et al. | N | Y | Y | Y | Y | U | Y | Y | Y | 7 |
Abledu, Jubilant Kwame, and Eric Bekoe Offei | N | Y | Y | Y | Y | N | Y | Y | Y | 7 |
Backåberg, Sofia, et al | N | Y | Y | Y | Y | U | Y | Y | Y | 7 |
Singh, Ajit, Yengkhom Sonia Devi, and Swapna John. | N | Y | Y | Y | Y | U | Y | Y | Y | 7 |
Cheung, Kin | N | Y | U | Y | Y | Y | Y | Y | Y | 7 |
AlShayhan, Fahad Abdullah, and Munir Saadeddin | N | Y | U | Y | Y | U | Y | Y | Y | 7 |
Nunes, Henrique, Arménio Cruz, and Paulo Queirós | Y | Y | U | Y | Y | U | Y | Y | Y | 7 |
Y | 3 | 9 | 5 | 9 | 9 | 2 | 8 | 9 | 9 |
Check-list: N (não); U (não especificado); Y (sim) Fonte: Elaborado pelos autores.
As versões em texto completo para os nove artigos restantes foram lidas e cumpriram os critérios de inclusão. Os estudos foram publicados entre janeiro de 2010 e março de 2019. O tamanho da amostra variou de 149 a 1.153 estudantes da licenciatura em enfermagem. Um estudo incluiu não apenas estudantes de enfermagem, mas também outros estudantes da área da saúde (18). Três estudos provêm dos continentes asiático (17-19) e europeu (2) (8) (10), os restantes têm origem na América do Sul (7) (15) na América do Norte (16) e em África (3). Essas características são apresentadas na tabela 2.
Dos artigos selecionados, seis aplicaram o Nordic Musculoskeletal Questionnaire (NMQ) (2) (3) (7) (17-19). Trata-se de um questionário de autoavaliação que permite descrever a sensação de dor ou desconforto no sistema musculosquelético (11) (tabela 3). É um dos principais questionários aplicados pelos pesquisadores, pois é validado e transcrito para vários países e idiomas, detendo um alto grau de confiabilidade (20) (21). Existem diferenças entre os alunos que frequentam os primeiros anos do curso e os restantes, sendo que os do quarto ano descrevem maior dor (10) (15) (17). As regiões corporais mais afetadas nos estudantes de enfermagem foram a região cervical, com sintomatologia mais frequente (2) (7) (8) (10) (17) (18), seguido pela região lombar, dorsal, punho, ombros e mãos (8) (10) (15) (19) (23). Todos os artigos enfatizam o facto de os estudantes relatarem sintomas osteomusculares em pelo menos uma das regiões do corpo. Uma pesquisa realizada em enfermeiros portugueses mostra uma prevalência elevada de sintomatologia na região lombar (60,6%), pescoço (44,5%) e região cervical (44,5%). É também referido que esta sintomatologia é amplamente evitável e não deve ser vista como parte da profissão (22). Enfatiza o facto de os enfermeiros serem o grupo profissional da área da saúde com maior prevalência de sintomas musculoesqueléticos (16) (22) (23) e que irão sofrer dessa sintomatologia pelo menos uma vez na vida, começando ainda enquanto estudantes de enfermagem (22-24). Os artigos e a bibliografia consultada referem que os estudantes de enfermagem estão expostos aos mesmos riscos profissionais que os enfermeiros (embora com menos horas, assim como menos indivíduos para cuidar por cada turno de ensino clínico), pois desempenham as intervenções nas mesmas condições físicas e psicológicas (7) (10) (16) (18). Esses fatores de risco variam desde esforços repetitivos, transferências manuais de carga, ansiedade e stress académico, que se acumulam desde o início do curso (22-24).
Os resultados desta RSL mostram ainda a existência de fatores associados a esse tipo de sintomatologia, destacando-se, nomeadamente: ser do género feminino (3) (15) (17); a utilização prolongada de computadores (2) (18); manifestação de ansiedade/ stress académico (2) (3) (7) (18) (19) e a prática clínica no ensino de enfermagem (3) (7) (8) (10) (15). Estes resultados estão alinhados com um estudo de análise de conceito realizado sobre sintomas musculoesqueléticos em estudantes de enfermagem (11), onde foi identificada uma associação com o sexo feminino, ansiedade/ stress relacionados com o curso de enfermagem e antecedentes familiares de lesões. Todos estes fatores foram estatisticamente significativos para a presença de sintomas osteomusculares (22-25).
Todos os artigos desta revisão sugerem programas de intervenção com impacto na redução de fatores de risco, com aplicabilidade ao estudante do curso de licenciatura em enfermagem. Esses programas focam-se em intervenções multifatoriais e sistémicas, como fornecer informações e treino sobre os riscos e fatores de proteção dos sintomas musculoesqueléticos em todos os níveis (físico, psicológico e social) e gerir e avaliar o risco no contexto real em que os alunos desenvolvem a sua prática clínica (8) (10) (22-24). Atualmente, apenas alguns estudos abordam a gestão de fatores que podem contribuir para a redução ou prevenção de sintomas musculoesqueléticos durante a prática clínica dos estudantes. Outros, sugerem programas de intervenção que podem ser benéficos na redução da ansiedade/ stress, dor e no aumento da resiliência dos estudantes de enfermagem (como mindfulness, técnicas de relaxamento e gestão de stress/ ansiedade, promoção de atividade física, literacia em saúde, utilização de técnicas ergonómicas, necessidade de alterações curriculares) (26-28).
Os resultados encontrados estão em linha com os recomendados para programas e intervenções em saúde: a identificação de estratégias e intervenções para a redução de comportamentos de risco que interferem na saúde do indivíduo e da comunidade académica (26-29).
CONCLUSÕES
Os resultados desta RSL mostram, uma vez mais, a necessidade de um “alerta” sobre a prevalência de sintomas musculoesqueléticos em estudantes de enfermagem e a importância de uma intervenção logo a partir do primeiro ano do curso. O conhecimento dos fatores de risco e de proteção, individualmente e em grupo, pode ser a estratégia para um caminho na educação em saúde desde o início do curso de enfermagem. Identificou-se uma oportunidade para que estes estudantes possam passar a ser munidos de ferramentas, competências e estratégias para lidar com esta problemática, a qual poderá ter repercussões na sua vida profissional futura e, consequentemente, no seu bem-estar. A nossa experiência enquanto docentes e profissionais na área clínica diz-nos que, hoje, esta temática ainda não é vista com a importância que já deveria ter. Sabe-se que são sintomatologias que se desenvolvem ao longo do tempo, com múltiplos fatores associados e que a exposição dos estudantes a esses fatores é real. As longas horas de aulas, o elevado grau de exigência teórico-prático, a diversificação das temáticas abordadas das diferentes especialidades em saúde para a prestação de cuidados, o contexto clínico e a adaptação deste conhecimento e crescimento em jovens estudantes que estão ainda em processo de reconhecimento e formação da sua identidade, faz com que sejam suscetíveis para o desenvolvimento de sintomatologia musculosquelética.
Como propostas de investigação futuras, a realização em contexto académico de trabalhos mais amplos sobre o tema, o estudo em profundidade deste tipo de sintomatologia nos estudantes dos cursos de saúde (e em particular nos estudantes de enfermagem); a aplicação de programas direcionados à prevenção/ diminuição de sintomatologia musculosquelética, de forma multifacetada e com olhar em todas as dimensões do ser.
O contributo da saúde ocupacional é fundamental pela sua abordagem multidisciplinar nos fatores de risco que podem ser modificáveis, quer no indivíduo, quer na organização, pois já detêm conhecimento aprofundado sobre esta temática - tanto a nível individual, como de grupo e organizacional - podendo contribuir para a melhoria com um programa de exercício físico adequado, atividades de gestão de ansiedade/ stress, restruturação das salas de aulas e equipamentos e até intervenções ao nível das unidades curriculares. É que, no futuro, estes estudantes serão enfermeiros. E, como tal, existe uma necessidade urgente para mudar os comportamentos individuais e sociais do presente, para que ocorram repercussões saudáveis no futuro.