INTRODUÇÃO
Os principais fatores de risco/ riscos laborais dos médicos dentistas, higienistas e auxiliares de dentária são o eventual contato com agentes biológicos relevantes por corte, inalação ou contato por mucosa (e infeções associadas); posturas mantidas/ forçadas, movimentos repetitivos e vibrações (e consequentes lesões músculo-esqueléticas); ruido (e eventual hipoacusia); radiações eletromagnéticas (com consequências não consensuais na literatura) e esforço visual por utilização inadequada da iluminância (e eventual cansaço, perda de acuidade); radiação ionizante por Rx (e possíveis consequências cancerígenas); agentes químicos (e eventuais patologias oncológica, neurológica, dermatológica, respiratória e otorrinolaringológica, sobretudo), bem como stress (em função da personalidade e capacidade de coping do funcionário, com eventuais depressão/ burnout associados).
Por sua vez, as restantes classes profissionais (administrativos, gestores) estão sujeitas a radiações eletromagnéticas, esforço visual, postura sentada mantida e movimentos repetitivos a nível de rato/ teclado.
Apesar dos perigos estarem bem identificados, não se encontraram estudos, em Portugal, que explorassem a consciencialização dos profissionais face aos riscos, o seu comportamento face ao uso de equipamentos de proteção individual, a descrição de acidentes laborais, a existência de doença profissional ou o recurso à equipa de Saúde Ocupacional, pelo que se projetou este estudo exploratório para se conhecer melhor as necessidades laborais deste setor.
METODOLOGIA
Após realização de uma revisão bibliográfica integrativa sobre o tema1, os autores elaboraram um questionário on line e remeteram-no por e-mail, a instituições que pudessem ter como colaboradores indivíduos deste setor profissional.
Optou-se por um questionário anónimo, ainda que estivesse bloqueada a possibilidade de responder mais do que uma vez, caso algum indivíduo tivesse motivação para enviesar os resultados, respondendo várias vezes.
Posteriormente, dado o número muito escasso de respostas, foi realizado um contato telefónico com diversas instituições, no sentido de apresentar o projeto (identificar as necessidades de Saúde Ocupacional do ponto de vista dos trabalhadores, neste setor profissional) e incentivar a participação; contudo, é notória a desvalorização da população e das instituições pela Saúde Laboral, na generalidade dos setores profissionais, pelo que, 12 meses volvidos, apenas se reuniram 33 questionários.
Dado o número ser muito inferior ao que permitiria generalizar as conclusões para a população que se pretendia estudar, os autores optaram por não desperdiçar os dados de quem gentilmente colaborou e proceder ao tratamento estatístico descritivo, sem pretender generalizar os achados, nem estabelecer relações de causa efeito. Nesse sentido, pode ser classificado como um estudo exploratório, observacional, descritivo e transversal.
RESULTADOS
Como já foi revelado, a taxa de resposta ao inquérito foi muito reduzida a as respostas foram recolhidas antes da situação pandémica por SARS-CoV2.
A nível socioprofissional a amostra é constituída maioritariamente por profissionais do género feminino (n=24), com ensino superior concluído (n=23), a exercer medicina dentária (n=20) e com mais de dez anos de experiência profissional acumulada (n=17) (tabela 1); se se tiver em conta apenas os elementos que exercem medicina dentária, poder-se-á dizer que a amostra é representativa da população, tendo em conta que os dados censitários de 2019, revelados pela Ordem dos Médicos Dentistas2, em função de idade e género. É de realçar, no entanto, a inexistência de respostas por parte de outras classes profissionais que também exercem em clínicas dentárias, como por exemplo, rececionistas ou trabalhadores da limpeza, fatores que não permitem retratar, na totalidade, o ambiente profissional e respetivos riscos laborais do setor. Em termos de distribuição etária, observa-se um equilíbrio entre as diferentes faixas (tabela 1), sendo as menos representadas, como seria expectável, as faixas limítrofes (os mais novos e os mais idosos), facto que se enquadra quer nos padrões da população ativa nacional, como nos padrões sociodemográficos dos médicos dentistas em Portugal2.
Variáveis | n | % | |
---|---|---|---|
Idade | [21-30 anos] | 10 | 30,3 |
[31-40 anos] | 11 | 33,3 | |
[41-50 anos] | 9 | 27,3 | |
[51-60 anos] | 3 | 9,1 | |
Género | Feminino | 24 | 72,7 |
Masculino | 9 | 27,3 | |
Escolaridade | Ensino Técnico profissional | 3 | 9,1 |
Ensino secundário | 7 | 21,2 | |
Ensino superior | 23 | 69,7 | |
Profissão | Gestor/ orçamentista | 2 | 6,1 |
Assistente médico | 11 | 33,3 | |
Médico dentista generalista | 14 | 42,4 | |
Médico dentista especializado | 6 | 18,2 | |
Tempo de serviço | Menos de 1 ano | 3 | 9,1 |
1 a 5 anos | 8 | 24,2 | |
6 a 10 anos | 5 | 15,2 | |
Mais de 10 anos | 17 | 51,5 |
Fatores de Risco/ Riscos Laborais
Verificou-se apenas uma reduzida percentagem de respostas que consideravam a inexistência de Risco em alguns dos parâmetros considerados; em situação oposta, ninguém da amostra referiu que as posturas forçadas/ mantidas, movimentos repetitivos, ruído risco biológico ou stress tivessem um Risco nulo (gráfico 1).
As respostas demonstram que os riscos mecânicos resultantes da manutenção de posturas forçadas e da realização de movimentos repetitivos são os mais percecionados/ valorizados, resultados consistentes com a bibliografia consultada que descreve que os médicos dentistas frequentemente apresentam posturas mantidas e/ ou forçadas3-6 e quase sempre estáticas7, executando apenas alguns movimentos repetitivos associados, normalmente, sem pausas adequadas7-8.
A perceção de risco físico provocado pelo ruído surge em terceiro lugar na escala de gravidade e é possível constatar que a exposição profissional a este fator é bastante relevante tendo em conta os diferentes aparelhos utilizados para o tratamento dentário8-10; este fator poderá não só ter repercussões a longo prazo, como a hipoacusia10.
Seguem-se, na ordem de perceção de gravidade, precisamente, os riscos psicossociais causados pela exposição ao stress, que segundo alguns estudos resulta de uma conjugação complexa entre a existência de posturas forçadas e/ ou mantidas, exigência e meticulosidade das tarefas, exposição a riscos biológicos11, interação constante com os clientes8;11 e a exposição ao ruído9.
O risco de exposição a agentes biológicos apenas surge em quinto lugar, facto que na atual situação de pandemia, provavelmente estaria sobrevalorizado. Na realidade alguns estudos, pré situação pandémica, revelam que os agentes biológicos mais relevantes eram os vírus das hepatites B e C, bem como o HIV12-14, com riscos médios de infeção de 3 a 10, 10 e 0,2 a 0,3%, respetivamente. O risco aparenta ser mais relevante nos profissionais com mais idade, mais anos de experiência profissional e menor adesão às normas existentes12, factos que não se comprovaram estatisticamente, nesta pequena amostra.
Numa posição intermédia surge a realização de turnos prolongados, fator considerado por alguns estudos como catalisador, quer para o desenvolvimento de lesões músculo-esqueléticas, como para o aumento do stress15-16; bem como o uso de radiação ionizante para realizar exames auxiliares de diagnóstico, que apesar de serem poucos os estudos encontrados a considerar este fator8, na realidade, apesar do risco ser reduzido (com a adoção das medidas obrigatórias de proteção), a probabilidade de exposição é grande, dada a frequência de utilização1.
Nos fatores de risco menos valorizados pelos profissionais emergem o risco químico, que não é congruente com a diversidade de compostos utilizados no setor, como o mercúrio17-18, álcoois, éter, gluteraldeído, formol, hipoclorito17, entre outros; quer agentes usados para a desinfeção de materiais ou limpeza de superfícies, que poderá ser explicado pela falta de informação acerca dos efeitos nocivos desses produtos, como aponta um dos estudos consultados17. Também poderá haver risco provocado por radiação ultravioleta, utilizada para a polimerização das resinas9, que pode ocasionar reações nos olhos e pele do operador; e, por último, as vibrações transmitidas às mãos pelos aparelhos utilizados, que são potencialmente coadjuvantes do aparecimento de lesões músculo-esqueléticas, como a síndrome do túnel cárpico, podendo ainda diminuir a performance e concentração, aumentando o risco de acidente19.
Foi ainda questionado, em regime de pergunta aberta, quais os agentes químicos considerados mais pertinentes a nível de risco ocupacional. Os mais referenciados foram os produtos de limpeza, com particular destaque para o hipoclorito de sódio; é evidente, no entanto, que o risco químico não é considerado como uma ameaça por grande parte dos trabalhadores, uma vez que quase metade da amostra não referiu qualquer produto17.
Uso de EPIs
Analisando os resultados relativos à utilização de EPIs, observa-se que o uso de farda, máscara e luvas é consensual para a grande maioria dos trabalhadores; é de realçar o facto, no entanto, de ser pouco usual o uso da viseira (que dá uma ótima proteção para face e olhos), bem como dos manguitos e gorro (que protegem em relação a agentes químicos e/ ou biológicos evitando o seu transporte para fora do consultório e/ ou o contato prolongado e intenso com a pele) (gráfico 2). Simultaneamente, apesar do ruído ser referido consistentemente por todos os profissionais, a grande maioria não utiliza qualquer tipo de proteção auricular (apenas um indivíduo refere que utiliza frequentemente e, por isso, considera que o ruído não é um fator de risco considerável), sendo importante referir que alguns equipamentos conseguem atingir mais que os 85 decibéis destacados na legislação8.
Analisando os resultados em função das diferentes profissões observa-se, como seria expetável, uma grande diferença entre os trabalhadores que prestam diretamente cuidados de saúde oral (que utilizam frequentemente a maioria dos EPIs) e os que exercem cargos de gestão/ orçamentação (tabela 2).
Uso de EPI | Gestor/ orçamentista | Assistente | Médico dentista generalista | Médico dentista especializado | |
---|---|---|---|---|---|
Farda/ bata | Não tenho | 1 | 0 | 0 | 0 |
Tenho e uso com frequência | 1 | 11 | 14 | 6 | |
Máscara | Não tenho | 1 | 0 | 0 | 0 |
Tenho mas não uso | 1 | 0 | 0 | 0 | |
Tenho mas uso pouco | 0 | 2 | 0 | 0 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 9 | 14 | 6 | |
Viseira | Não tenho | 1 | 5 | 7 | 0 |
Tenho mas não uso | 1 | 1 | 0 | 2 | |
Tenho mas uso pouco | 0 | 3 | 6 | 3 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 2 | 1 | 1 | |
Luvas | Não tenho | 1 | 0 | 0 | 0 |
Tenho mas não uso | 1 | 0 | 0 | 0 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 11 | 14 | 6 | |
Óculos | Não tenho | 1 | 0 | 2 | 0 |
Tenho mas não uso | 1 | 3 | 1 | 1 | |
Tenho mas uso pouco | 0 | 4 | 3 | 3 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 4 | 8 | 2 | |
Proteção auricular | Não tenho | 1 | 11 | 14 | 5 |
Tenho mas não uso | 1 | 0 | 0 | 0 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 0 | 0 | 1 | |
Gorro | Não tenho | 1 | 7 | 9 | 1 |
Tenho mas não uso | 1 | 1 | 1 | 0 | |
Tenho mas uso pouco | 0 | 3 | 3 | 1 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 0 | 1 | 4 | |
Manguitos | Não tenho | 1 | 10 | 11 | 3 |
Tenho mas não uso | 1 | 1 | 0 | 1 | |
Tenho mas uso pouco | 0 | 0 | 2 | 1 | |
Tenho e uso com frequência | 0 | 0 | 1 | 1 |
Acidentes de trabalho e doenças profissionais
O estudo revela que mais de metade dos indivíduos da amostra afirmou nunca ter tido qualquer tipo de acidente laboral (tabela 3); os números, na bibliografia consultada, revelam uma percentagem superior de acidentes, atribuídos às reduzidas dimensões do campo de atuação, ao uso de instrumentos cortantes e/ ou com elevada rotação13;14;20, à frequente formação de aerossóis e salpicos e à proximidade física com o cliente e suas reações físicas13;20; contudo, convém relembrar que o reduzido tamanho da amostra não permite estabelecer comparações, ainda que se acredite que os valores em Portugal possam ser bem mais reduzidos que noutras realidades, com menos recursos, formação e regras de higiene e segurança mais ténues1.
Sim | Não | |||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Já teve algum acidente a trabalhar nesta área? | 14 | 42,4 | 19 | 57,6 |
Em caso afirmativo, ficou com alguma limitação associada ao trabalho? | 4 | 28,6 | 10 | 71,4 |
Analisando quais os acidentes de trabalho mais frequentemente identificados, surgem em destaque o corte (n=13) e o eventual contato com fluidos capazes de transmitir patologia infeciosa (n=11), ambos compatíveis com a evidência consultada13;14;20 e ainda, com menos expressividade, a queimadura (n=5) e a entorse (n=4); surpreendentemente, apesar de não ser encarado como fator de risco problemático, constata-se que três trabalhadores referiram a exposição a agentes químicos como resultado de acidente laboral (gráfico 3).
Averiguou-se também se após os acidentes de trabalho existiram ou não limitações laborais permanentes e a maioria (n=10) negou que tal tivesse acontecido (tabela 3); acrescenta-se ainda que, dos quatro restantes, apenas houve relato de consequências ligeiras e provisórias para a saúde dos trabalhadores.
Doença profissional e sintomatologia associada ao trabalho
No que diz respeito ao desenvolvimento de doença profissional, mais de um terço da amostra (n=12) revelou suspeitar da sua existência, sem que tenha sido declarada como suspeita de Doença Profissional à Segurança Social (tabela 4); para a caraterização das doenças, foi pedido que as nomeassem através de uma resposta aberta, o que dificultou o tratamento dos dados, dada a heterogeneidade da terminologia usada, pelo que fica mais difícil contabilizar. De uma forma genérica poder-se-á dizer que foram mais salientadas as hérnias, bursites e tendinites (ainda que não esteja claro se o diagnóstico é de suposição em função dos sintomas ou se efetivamente este estava comprovado com exames auxiliares de diagnóstico).
Sim | Não | |||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Tem alguma doença que considere estar associada ao trabalho? | 12 | 36,4 | 21 | 63,6 |
Alguma foi declarada como doença profissional à Segurança Social | 0 | 0 | 12 | 100 |
A grande maioria dos indivíduos referiu ter sintomas que consideravam, subjetivamente, estar associados ao seu trabalho (gráfico 4), sendo de destacar a dor, referida quase unanimemente por toda a amostra. São ainda de realçar a irritabilidade ocular (n=12), potencialmente provocada pelo esforço visual resultante de uma inadequada iluminância (baixa ou com encandeamento)1;3;8;9 e a diminuição da acuidade auditiva (n=10), sendo de relembrar a baixa adesão aos equipamentos de proteção, referenciada anteriormente.
Analisando a dor, constata-se que há uma grande diversidade de queixas, distribuídas por diversos setores anatómicos, sendo de destacar a prevalência nas regiões cervical (n=26), lombar (n=26), dorsal (n=22), ombros (n=22) e pulsos (n=21), uma vez que são referidas por mais de metade da amostra (gráfico 5). Mais uma vez se constata que a conjugação entre posturas estáticas mantidas, movimentos repetitivos, turnos prolongados e exposição manual a vibrações.
Vigilância por parte da Saúde Ocupacional
Analisando a perceção dos participantes acerca dos contatos que mantinham com os serviços de saúde ocupacional, constata-se que somente dezanove trabalhadores revelaram ter Exame de Medicina do Trabalho, pelo menos, de dois em dois anos, como é exigido por lei (tabela 5); o mesmo se observa com a formação sobre riscos laborais, existindo apenas 20 indivíduos que referiram já ter tido essa experiência anteriormente (tabela 5); o teste do Qui Quadrado revela a existência de uma associação estatisticamente significativa entre as duas variáveis (X2=3,970; p=0,046), demonstrando que, quem tem acesso regular às consultas tem maior probabilidade de ter formação sobre riscos laborais. Por último, constata-se que a perceção sobre o papel e atuação dos Técnicos de Segurança é substancialmente reduzida (n=14) (tabela 5), o que obriga a repensar a forma como se fornece este tipo de serviços, tendo em conta que existem riscos considerados relevantes e cuja legislação é bastante rigorosa.
CONCLUSÕES
O estudo não pode ser considerado representativo deste setor profissional uma vez que o reduzido tamanho da amostra não possibilita a generalização dos resultados, nem fornecer informações que permitam inferir relações de causa- efeito. No entanto, a leitura dos resultados permitiu identificar algumas áreas potencialmente problemáticas ao nível da consciencialização face aos riscos laborais, utilização de equipamentos de proteção individual, acompanhamento da sintomatologia e utilização dos serviços de Saúde Ocupacional.