INTRODUÇÃO
Na Saúde Ocupacional classicamente associa-se a hipoacusia à exposição a ruido; contudo, existem vários agentes químicos com essa capacidade. Entre estes, a classe mais frequentemente associada é a dos solventes, ainda que nem sempre com evidência científica irrefutável para alguns casos, tendo esta revista já publicado outro artigo, no ano de 2019, na qual abordou essa temática (Solventes e Hipoacusia- qual a evidência?). Dentro de outras classes de agentes químicos, os dados são ainda mais escassos e menos robustos.
Pretendeu-se com esta revisão resumir o que de mais recente e pertinente se publicou relativamente a agentes ototóxicos (para além dos solventes).
METODOLOGIA
Pergunta protocolar: quais os agentes químicos com propriedades ototóxicas, para além dos solventes?
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
-P (population): trabalhadores que utilizam agentes químicos ototóxicos, para além dos solventes.
-I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre ototoxicidade por agentes químicos, para além dos solventes.
-C (context): saúde ocupacional nas empresas com postos de trabalho com agentes ototóxicos, para além dos solventes.
Foi realizada uma pesquisa em setembro de 2019 nas bases de dados “CINALH plus with full text, Medline with full text, Database of Abstracts of Reviews of Effects, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, Nursing and Allied Health Collection: comprehensive, MedicLatina, Academic Search Ultimate, Science Direct, Web of Science, SCOPUS e RCAAP”.
No quadro 1 podem ser consultadas as palavras/ expressões- chave utilizadas nas bases de dados.
Motor de busca | Password 1 | Password 2 e seguintes, caso existam | Critérios | Nº de documentos obtidos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada ou não | Nº do documento na pesquisa | Codificação inicial | Codificação final |
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(documentos utilizados no artigo relativo à hipoacusia e solventes, que também mencionavam outros agentes químicos ototóxicos) | - - - - - - |
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Academic Search Ultimate | Hypoacusis | -2009 a 2019 -texto completo -humano |
81 | 1 | Sim | ||||
Deafness | 13.387 | 2 | Não | ||||||
Asphyxiants | 2 | 3 | Sim | 1 2 |
3.1 3.2 |
7 5 |
|||
Pesticides | 4 | 4 | Sim | 1 2 4 |
4.1 4.2 4.3 |
15 - 16 |
|||
Heavy metals | 7 | 5 | Sim | 1 2 3 4 6 |
=3 5.2 5.3 5.4 5.5 |
- 10 - - 11 |
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Science Direct | Hypoacusis | 455 | 6 | Não | |||||
Asphyxiants | 2 | 7 | Sim | 1 | 7.1 | 9 | |||
Pesticides | 3 | 8 | Sim | ||||||
Heavy metals | 9 | 9 | Sim | ||||||
Deafness | 21.687 | 10 | Não | ||||||
Asphyxiants | 20 | 11 | Sim | ||||||
Pesticides | 345 | 12 | Não | ||||||
Heavy metals | 854 | 13 | Não | ||||||
Pesticides+ Heavy metals | 169 | 14 | Sim | Sem nº | =5 | - | |||
SCOPUS | Hypoacusis | 323 | 15 | Não | |||||
Asphyxiants | 0 | 16 | Não | ||||||
Pesticides | 0 | 17 | Não | ||||||
Heavy metals | 2 | 18 | Sim | ||||||
Deafness | 21.212 | 19 | Não | ||||||
Asphyxiants | 1 | 20 | Sim | 1 | =3.2 | ||||
Pesticides | 5 | 21 | Sim | 2 3 4 |
21.1 21.2 21.3 |
19 17 18 |
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Heavy metals | 17 | 22 | Sim | 10 11 16 |
22.1 22.2 22.3 |
12 13 14 |
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Web of Science | Hypoacusis | 104 | 23 | Sim | |||||
Deafness | 9.588 | 24 | Não | ||||||
Asphyxiants | 0 | 25 | Não | ||||||
Pesticides | 1 | 26 | Sim | ||||||
Heavy metals | 4 | 27 | Sim | =22.1 | |||||
EBSCO | Hypoacusis | 34 | 28 | Sim | |||||
Deafness | 4.599 | 29 | Não | ||||||
Asphyxiants | 0 | 30 | Não | ||||||
Pesticides | 1 | 31 | Sim | 1 | =5.5 | ||||
Heavy metals | 1 | 32 | Sim | ||||||
RCAAP | Hipoacusia | -pesquisa avançada -título |
44 | 33 | Sim | ||||
Surdez | 293 | 34 | Não | ||||||
Asfixiantes | 0 | 35 | Não | ||||||
Pesticidas | 0 | 36 | Não | ||||||
Metais pesados | 0 | 37 | Não |
CONTEÚDO
Audição, Ruído e Hipoacusia
O ouvido tem uma área externa, média e interna. A primeira é constituída pelo pavilhão auricular e canal auditivo externo. Por sua vez, o ouvido médio é formado pelo tímpano, martelo, bigorna e estribo. O ouvido interno inclui as células ciliadas internas e externas, bem como a cóclea. A audição é um sentido complexo, que implica a capacidade que o ouvido tem para detetar sons e do cérebro, para os interpretar. A perda de audição pode justificar-se com a exposição ao ruído, envelhecimento, doenças específicas e exposição a alguns agentes químicos (nomeadamente em contexto laboral)1. Geralmente considera-se que há perda auditiva quando os valores obtidos são inferiores em, pelo menos, 25 decibéis (dBs), nas frequências de 1000, 2000, 3000 e 4000 Hzs2. A exposição ao ruido constitui uma etiologia consensualmente aceite de hipoacusia3. Aliás, este é considerado como a principal justificação para a perda auditiva ocupacional4. A diminuição da audição pode ser mais rápida ou mais gradual e a gravidade relaciona-se com a quantidade, tempo de exposição e interação com outros agentes físicos ou químicos1. A perda de audição pode contribuir para o isolamento social e sinistralidade laboral5.
Agentes químicos em geral e Ototoxicidade
Como pode ser complicado atenuar os níveis de ruído em alguns setores profissionais, torna-se pertinente identificar e também suprimir (ou, pelo menos, atenuar) outros fatores de risco que possam estar presentes e que contribuam para a hipoacusia3, nomeadamente alguns agentes químicos, classificados como ototóxicos. As classes mais referidas nesse sentido são os solventes3;6-8, metais pesados3;4;7;9, agentes asfixiantes3;6;7;9 e pesticidas3;7;9. Está também descrito que alguns antibióticos, fármacos anticancerígenos e diuréticos podem ser ototóxicos diretamente. Por sua vez, o cianeto de hidrogénio8 e o monóxido de carbono podem apresentar efeito sinérgico com o ruido6;8, aliás tal como alguns metais pesados, agentes asfixiantes e pesticidas3.
Contudo, em contextos onde existe ruido e agentes químicos ototóxicos, fica difícil perceber o contributo de cada, para além de que pode ocorrer sinergismo3. A situação parece estar mais clara em animais; em humanos alguns investigadores assumem que são necessários mais estudos e os níveis a partir dos quais surge lesão não são conhecidos com clareza7. Para concentrações mais elevadas a hipoacusia parece evidente mas, para quantidades menores, os dados não são consensuais, por vezes. Também não há consenso quanto à dose mais baixa que terá capacidade de induzir o dano6. Para além disso, na maioria das situações ocupacionais a exposição inclui vários agentes químicos e não um só isolado3;6. O metabolismo dos animais não é equivalente ao humano, pelo que as generalizações dos resultados deverão ser feitas com reservas6.
A nível laboral, existem menos normas para os agentes químicos, versus ruído, em contexto de perda de audição3.
Acredita-se que a ototoxicidade global se possa relacionar com o stress oxidativo; não só devido à formação de espécies reativas de oxigénio, como pela atenuação dos mecanismos de defesa antioxidante5.
Metais pesados em geral e Ototoxicidade
Alguns investigadores estimaram um aumento de risco de hipoacusia na ordem de 1,64 vezes para metais pesados, globalmente. Estes podem causar apoptose e/ ou degeneração das células do ouvido interno, originando disfunções audiológicas neuronais. Os metais pesados participam no controlo do equilíbrio intracelular, logo, com capacidade para causar danos nas células ciliadas. Ainda assim, o mecanismo exato não é conhecido na totalidade3. A hipoacusia é mais percetível a nível das frequências mais elevadas3. Alguns investigadores destacam neste contexto o cádmio, chumbo, mercúrio3;10 e manganésio3.
Outros realçam que existe evidência clara de que o chumbo é ototóxico5;6;8, quer em animais, quer humanos6;10, eventualmente por indução da apoptose ou degeneração do ouvido interno através das alterações na homeostasia do cálcio3 e/ ou através da alteração na permeabilidade da barreira entre a cóclea e a circulação sanguínea, depositando-se no ouvido interno11. Contudo, a perda de audição associada ao chumbo apresenta evidências contraditórias10;11: alguns estudos concluíram que existe diminuição da audição para exposições intensas e crónicas, mas não para exposições mais curtas e há quem considere que não há consenso perante o eventual sinergismo com o ruído10. Beethoven, por exemplo, apresentava uma deficiência auditiva grave. Na sua autópsia não foram encontradas evidências de otosclerose; contudo, constatou-se um nível elevado de chumbo ósseo, indicativo de exposição crónica (provavelmente associado ao consumo de vinho com esse agente); a perda de audição nele foi progressiva ao longo dos anos12. O chumbo associa-se a perdas auditivas entre os 3000 e 8000 Hzs, de forma estatisticamente significativa (mesmo aplicando a técnica da regressão logística, de forma a controlar eventuais variáveis enviesadoras), ainda que o mecanismo exato, segundo alguns investigadores, não esteja claramente definido13.
O cádmio pode originar perda auditiva em ratos e pode apresentar sinergismo com o ruido; o efeito parece ser dose-dependente e através da acumulação na proximidade dos ossículos e nas células de cóclea10. Outros afirmam que o mecanismo não é conhecido com clareza, mas supõe-se que se possa relacionar com a alteração na proliferação e diferenciação celular, síntese e metilação do DNA e apoptose, originando desequilíbrios em algumas proteínas11.
O arsénio poderá originar perda de audição para baixas e altas frequências, ainda que a suscetibilidade entre indivíduos varie10.
O manganésio em quantidades elevadas e com exposição crónica, poderá induzir perda de audição em animais e humanos, ainda que alguns defendam que tal facto poderá ser influenciado por variáveis confundidoras, como ruído, idade e tabagismo11.
O mercúrio pode diminuir a audição5;9;11 devido a danos periféricos e centrais11.
A administração simultânea de crómio e cobalto em coelhos originou alterações auditivas, baseadas sobretudo em danos cocleares que parecem ser dose-dependentes14.
O cobalto9;11, quer via inalatória em contexto ocupacional, quer absorvido através de implantes médicos metálicos, poderá originar perda de audição. Existem poucos estudos em animais e as conclusões existentes para humanos são provenientes parcialmente dos danos observados em implantes médicos desta substância, com algum defeito11.
Pesticidas
Os pesticidas poderão contribuir para a perda de audição ocupacional15-18; aliás, a hipoacusia poderá constituir uma evidência de intoxicação- trabalhadores que usam pesticidas com alguma regularidade apresentam alterações auditivas19. Os danos incidem sobretudo na cóclea e no nervo auditivo, induzindo alterações vestibulares e no sistema nervoso central15; ainda que, simultaneamente, alguns autores recomendem estudos mais aprofundados relativamente à ototoxicidade dos pesticidas5. Tal efeito também está comprovado em animais19. Alguns, dentro desta classe, destacam os organofosforados16; estes podem potenciar a formação de espécies reativas de oxigénio e apresentar sinergismo com o ruido19.
DISCUSSÃO/ LIMITAÇÕES/ CONCLUSÃO
A generalidade dos estudos publicados sobre este tema não é muito robusta, para além de que têm condições heterogéneas entre si (investigação em animais versus humanos, amostras de tamanho diverso, incluir observações com e sem ruido- com intensidades diferentes ou sem quantificação de tal, concentrações de agentes químicos diversas e/ ou ausência de menção à concentração, tempos de exposição diversos ou ausência de referência dos mesmos); dai que as conclusões destes estudos não se possa generalizar diretamente para a população de trabalhadores expostos a agentes ototóxicos. Ainda assim, entre estes últimos, existem alguns que parecem associar-se de forma mais clara à hipoacusia. Sempre que a associação estiver comprovada e/ ou for suspeita, a equipa de Saúde Ocupacional deverá providenciar medidas que minorem a exposição, de forma a proporcionar o ambiente laboral mais seguro e saudável possível.
Seria relevante conhecer mais sobre a realidade nacional e ver publicados dados de profissionais a exercer em empresas com estes agentes, comparando o efeito de diferentes concentrações/ produtos e/ ou exposição simultânea a ruido (eventualmente a diferentes intensidades), consoante o processo produtivo já existente permitisse.