INTRODUÇÃO
O novo coronavírus, designado de SARS-CoV-2 (Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2) é um vírus emergente e de fácil contágio. COVID-19 é a designação fornecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para identificar a doença provocada por este agente, tendo sido declarada uma emergência global de saúde pública (1). Vive-se em Portugal, desde o dia 26/03/2020, a fase de mitigação da pandemia da COVID-19 por determinação da Direção-Geral da Saúde (DGS), envolvendo todo o sistema de saúde, público e privado (2), na qual, para além da transmissão comunitária, se assume transmissão local em ambiente fechado (3).
Foi descrita a transmissão de pessoa para pessoa por meio de gotículas, mãos ou superfícies contaminadas, sendo que o tempo de incubação pode variar de dois a catorze dias. O diagnóstico precoce e cuidados de saúde de suporte sempre que necessários podem salvar vidas (4). A deteção laboratorial de referência deste vírus é realizada por reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa em tempo real (rRT-PCR) (5). No entanto, vários casos de amostras falsas-negativas têm sido descritos devido à baixa carga viral, colheita inadequada ou amostras mal-acondicionadas, bem como outras razões técnicas inerentes ao teste - mutação do vírus ou inibição da PCR (5). Tal facto pode trazer consequências dramáticas: utentes contagiosos podem transmitir vírus e dificultar qualquer esforço da Saúde Ocupacional/ Saúde Pública para o conter (6).
Os testes serológicos podem detetar de forma indireta a presença de infeção. A deteção da imunoglobulina M (IgM) em combinação com rRT-PCR pode aumentar a precisão do diagnóstico. As IgM são produzidas durante a fase aguda da infeção, seguidas por IgG, que são fundamentais para a atribuição de uma “memória imunológica” (7).
Um dos objetivos dos hospitais/ instituições de saúde em Portugal, através da implementação e cumprimento das normas do seu Plano de Contingência, é contribuir para a saúde e a segurança dos trabalhadores ao reduzir o risco de transmissão nosocomial da infeção. As principais fontes de transmissão são os doentes com COVID-19, bem como os próprios profissionais de saúde. A falha ou atraso no diagnóstico e isolamento dos casos positivos são considerados os determinantes mais importantes na ocorrência de casos de infeção por COVID-19 nos profissionais de saúde (8).
Dados epidemiológicos indicam que em quatro meses, a COVID-19 causou mais de quatro milhões de infeções documentadas e mais de 300.000 mortes (9). As infeções relacionadas com o trabalho em profissionais de saúde estão descritas desde a fase inicial e incitaram discussões sobre quais os equipamentos de proteção individuais (EPI) mais indicados. Em Wuhan, relataram uma taxa de infeção de 3,8% entre os profissionais de saúde (10). Dados do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), relataram uma taxa média de infeção de 3% em profissionais de saúde, com alguns estados a apresentar taxas de até 11% (12). Os profissionais de saúde infetados apresentaram nexo causal com a atividade em 55% dos casos, exposição exclusiva familiar em 27% e exposição exclusiva na comunidade em 13% (12).
A definição de Doença Profissional (DP) indica ‘lesão corporal ou perturbação funcional que, mesmo não estando incluída na lista de doença profissionais em vigor, seja considerada como consequência necessária e direta da atividade exercida pelo trabalhador e não represente normal desgaste do organismo’. Estas em nada se distinguem das outras doenças, salvo pelo facto de terem a sua origem em fatores de risco existentes no local de trabalho (16). No contexto da atual pandemia, a OMS reconheceu que os profissionais de saúde que contraiam COVID-19 após contacto com o vírus SARS-CoV-2 no local de trabalho, devem vê-la reconhecida como DP e, consequentemente, ter direito à devida compensação e recuperação (13). De igual forma, a DGS e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) reconheceram esta doença como profissional (13, 14), sendo da responsabilidade do Médico do Trabalho a cargo da vigilância de saúde dos trabalhadores, emitir através do modelo de participação obrigatória, a presunção de DP, visando a sua certificação pelo Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais (DPRP) do Instituto da Segurança Social, I.P. (ISS, I.P.) (15). O Profissional de Saúde com doença profissional reconhecida pelo DPRP, tem direito ao tratamento de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador e à sua recuperação para a vida ativa. Estes serviços e tratamentos devem ser prestados por instituições especializadas e, desde que obtenham parecer favorável de um perito médico do DPRP, todas as despesas associadas serão reembolsadas por este departamento.
O objetivo deste trabalho prende-se com a avaliação e caracterização dos casos presumidos de DP provocada pelo SARS-COV-2, entre os trabalhadores com COVID-19, num instituto português de oncologia, tendo em conta a respetiva interpretação do nexo de causalidade, de forma individual.
MATERIAL E MÉTODOS
Efetuou-se uma análise observacional retrospetiva de uma série de casos, através do recurso à interpretação dos dados de saúde existentes nos processos clínicos no software de gestão de saúde e segurança do trabalho (UTILSST®), realizado entre os meses de março e julho de 2020. O estudo incidiu nos trabalhadores infetados com COVID-19 do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil. Todos os trabalhadores obtiveram o diagnóstico laboratorial positivo do SARS-CoV-2 em laboratórios referenciados para o efeito. Em todos os casos, a deteção laboratorial foi realizada por rRT-PCR, sendo o produto biológico obtido através de colheita de zaragatoa de exsudada nasofaringe/ orofaringe, efetuada por profissionais devidamente habilitados, com formação e conhecimento do correto procedimento para a realização de colheita de produtos biológicos e encaminhamento para o laboratório, de acordo com a orientação da DGS.
RESULTADOS
No instituto português de oncologia em causa, durante o período referido, verificou-se uma taxa de infeção COVID-19 de 1.81% na população trabalhadora (n=2265), sendo que em 80.49% (n=33) destes foi estabelecido nexo causal com a atividade, tendo sido presumido DP com vista à certificação pelo Departamento de Proteção Contra os Riscos Profissionais. Ao longo do período referido, 166 trabalhadores cumpriram um período de quarentena por contacto de alto risco com caso confirmado de COVID-19, e foram diagnosticados 41 trabalhadores com infeção COVID-19 (Gráfico 1), com uma média de idades de 43.70 ± 11.63 anos. Destes, 87.80% (n=36) eram do género feminino e 12.20% (n=5) do género masculino. A categoria profissional com maior taxa de infeção na instituição foi a dos Assistentes Operacionais [46.34%, n=19], seguida dos enfermeiros [39.02%, n=16], médicos [7.32%, n= 3], técnicos superiores [4.88%, n=2] e técnicos de diagnóstico e terapêutica [2.44%, n= 1] (Tabela 1).
Categoria profissional | Assistentes operacionais | Enfermeiros | Médicos | Técnicos superiores | Técnicos de diagnóstico e terapêutica | Total |
---|---|---|---|---|---|---|
n | 19 | 16 | 3 | 2 | 1 | 41 |
O serviço hospitalar mais afetado foi um dos Serviços de Oncologia Médica [29.27%, n=12]. Na população estudada, a prevalência de casos presumidos como DP, tal como referido, foi de 80.49% (n=33). Destes, 48.5% (n=16) foi por contacto direto, sem a proteção adequada, com doente infetado; 30.3% (n=10) sem caso índice conhecido, com diagnóstico obtido em “fase de mitigação da pandemia”; 21.2% (n=7) por contacto com colega de trabalho infetado. Em 19.51% (n=8) de todos os casos, não foi presumida DP, por contacto com o caso índice ter sido em ambiente social/ familiar.
CONCLUSÃO
Tal como nas condições habituais de trabalho, possibilitar uma correta revisão e avaliação dos riscos profissionais (não só físicos, mas também psicossociais), dando atenção a quaisquer anomalias ou situações que afetem negativamente a instituição são o ponto de partida para uma ótima gestão da saúde e da segurança do trabalho, no âmbito das medidas COVID-19. Na nossa avaliação, a principal fonte de transmissão nosocomial com nexo causal assumido, são os doentes com COVID-19. Para combater esta doença, é fundamental colocar em prática e garantir a manutenção das medidas adequadas de proteção individual e coletiva. Os trabalhadores envolvidos no atendimento direto de casos suspeitos ou confirmados de COVID-19 devem usar EPI de contacto e de gotícula, respeitando as indicações da Norma 004/2020 da DGS (Bata com abertura atrás, descartável, impermeável/ resistente a fluidos, de manga comprida e que vá até abaixo do joelho; Proteção ocular; Luvas; Cobre-botas; Touca; Máscara protetora FFP2, N95 ou FFP3). Deve-se assegurar uma permanente atualização do programa de controlo de infeção da instituição para que o risco de exposição seja minimizado, bem como colocar em prática essas medidas. Da mesma forma, é fundamental que os empregadores forneçam instruções e possibilitem uma correta formação em Saúde e Segurança Ocupacionais, incluindo a atualização em prevenção e controlo de infeções, forneçam todos os EPIs necessários, mas também contribuam de forma ativa para o seu correto uso e manutenção. Caso a entidade empregadora não respeite os direitos e condições de trabalho, relativamente às normas de Segurança e Saúde no trabalho, o trabalhador ou seus representantes, podem efetuar uma queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). De acordo com o estabelecido na Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e suas alterações, a confirmação da DP por parte do ISS, I.P. permite o acesso aos profissionais de saúde, independentemente do tempo de serviço, ao regime de reparação da DP, em espécie e em dinheiro, dos danos resultantes da DP. O direito à reparação em espécie compreende nomeadamente prestações de natureza médica, o transporte e hospedagem, designadamente para observação, tratamento, comparência a juntas médicas ou a atos judiciais, a readaptação, reclassificação e reconversão profissional. O direito à reparação em dinheiro compreende a remuneração, no período das faltas ao serviço motivadas pela DP, uma indemnização em capital por incapacidade temporária para o trabalho, ou pensão vitalícia no caso de incapacidade permanente, entre outros subsídios ou pensões.
Será fundamental o investimento proativo em infraestruturas e paralelamente aumentar a capacidade de resposta no âmbito da saúde ocupacional/ saúde pública para responder com eficácia a epidemias como a COVID-19, sendo que é basilar melhorar a vigilância da saúde dos trabalhadores e estar ainda melhor preparado para responder a futuras ameaças à Saúde Ocupacional/ Saúde Pública.
A Saúde Ocupacional deve concentrar a sua atuação em ajustar estratégias à medida que novas evidências relacionadas com o SARS-CoV-2 se tornam disponíveis.
Muito precisa ser feito, contudo, a constante verificação/ aplicação de práticas de trabalho seguras para limitar a exposição à COVID-19 no local de trabalho deve ser uma prioridade, principalmente após compreendermos que o contacto sem a proteção adequada com os doentes infetados foi a principal fonte nosocomial de transmissão entre a população trabalhadora estudada. Deve-se colocar em curso medidas de controlo para eliminar primeiro o risco e, se tal não for possível, minimizar a exposição dos trabalhadores ao mesmo.