INTRODUÇÃO
A COVID-19 foi reconhecida pela Organização Mundial de Saúde como pandemia no dia 11 de março de 2020 e, desde então, têm sido adotadas várias medidas para diminuir a transmissão da infeção por SARS-CoV-2. Entre elas, destacam-se as orientações relativas à identificação de casos e o seu diagnóstico, políticas de promoção de distanciamento social, isolamento profilático, bem como legislação específica com introdução de medidas de apoio social às famílias e às empresas.
De acordo com as orientações do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC), o rastreio de contactos é um elemento chave na identificação precoce de casos e ferramenta muito útil para implementação de medidas profiláticas1-3.
Neste sentido, perante um cenário clínico e epidemiológico sugestivos de infeção por SARS-CoV-2, devemos procurar obter um diagnóstico confiável que tem vindo a ser ancorado no conhecimento desses dois fatores e na deteção de SARS-CoV-2 por método RT-PCR (Reverse Transcriptase Polymerase Chain Reaction), numa amostra do trato respiratório. A sensibilidade diagnóstica deste exame é dependente de vários fatores, dos quais se destacam o tempo decorrido desde a exposição, o local anatómico de colheita (superior/ inferior), a qualidade da amostra e do teste, podendo a taxa de falsos negativos variar dos 2 e os 29%4-8. Tendo em conta estes dados, tem-se claro entendimento que se trata de uma técnica com uma sensibilidade subótima, devendo o julgamento clínico ser o pilar de decisões a implementar.
CASO CLÍNICO
Trata-se de um enfermeiro de 51 anos, residente na zona centro de Portugal que exerce a sua atividade profissional num Centro Hospitalar da zona centro de Portugal em uma enfermaria médico-cirúrgica e, até ao presente episódio, sem antecedentes pessoais relevantes. Após a criação de enfermaria médica dedicada a doentes com COVID-19, este passou a exercer as suas funções nessa unidade.
Em 20/4/2020 foi pedida, ao Serviço de Saúde Ocupacional, a avaliação do profissional em questão, por se apresentar com temperatura subfebril, cefaleias e mialgias. No dia seguinte foi feito teste para SARS-CoV-2, com zaragatoa nasofaríngea, que foi negativa. Contudo, sendo um profissional de saúde sintomático numa fase de pandemia com diversos surtos a nível nacional e hospitalar, foi decidida a evicção do local de trabalho.
No dia 23/4/2020 recorre ao seu Médico de Família por manutenção das queixas e referência a toracalgia. Negava outros sintomas e estava apirético. Nessa noite recorreu ao Serviço de Urgência por agravamento das queixas. Apresentava um perfil tensional adequado, saturação periférica de O2 de 96%, auscultação cardíaca sem alterações e auscultação pulmonar com murmúrio vesicular mantido e sem ruídos adventícios. Realizou estudo com radiografia de tórax (ver Figura 1) que mostrou reforço das paredes brônquicas a nível hilar, bilateralmente, bem como discreto reforço intersticial bilateral. Pela alta suspeição de infeção por SARS-CoV-2, realizou novo teste para SARS-CoV-2 em zaragatoa nasofaríngea, que voltou a ser negativo.
Seis dias depois foi observado por médico assistente, a quem relatou alguma melhoria sintomática. Fez novamente estudo complementar com radiografia do tórax (Figura 2), que mantinha o reforço brônquico e perfil analítico com Proteína C reativa em decrescendo (de 3 para 1 mg/dL, valor de referência <1mg/dL) sem outras alterações analíticas.
Pela clínica, estudo complementar e contexto epidemiológico muito sugestivo foi decidido, em articulação com o Serviço de Saúde Ocupacional e Médico Assistente, manter o enfermeiro com incapacidade temporária absoluta (ITA) para o trabalho durante duas semanas.
Findo este período, após ausência prolongada e seguindo orientação interna de realização de teste para SARS-CoV-2 para retoma da atividade profissional, foi realizado novo teste a 13/5/2020, que mais uma vez se mostrou negativo.
A 24/6/2020 foi feita nova reavaliação clínica e analítica, tendo nesta data feito colheita de sangue para deteção de imunoglobulinas (Ig) específicas para SARS-CoV-2. Foram realizadas duas análises de IgG SARS-CoV-2 e uma de IgM SARS-CoV-2. O teste IgM mostrou-se não reativo, enquanto que os dois testes de IgG mostraram reatividade. O teste IgG por quimiluminescência da marca Maglumi tinha um valor de 32.32 (Reactivo se >=1) e o teste da marca Abbott 8,07 (Reativo se >=1,4).
Perante a reatividade de imunoglobulina foi feito novo teste para SARS-CoV-2 com zaragatoa nasofaríngea que se mostrou negativo.
Até à data o enfermeiro não apresentou novas queixas.
DISCUSSÃO
O contacto com a pandemia por SARS-CoV-2 tem sido um desafio diário que motiva o interesse de estudo e compreensão de uma doença sem precedentes a nível mundial na história do século XXI. Parte deste desafio prende-se com a diversidade de expressão clínica, o incremento acelerado do número de casos, o rápido e crescente volume de informação médica e evolução técnica constante. Estas características tornam o diagnóstico diferencial extremamente difícil9,10.
Do ponto de vista conceptual, o diagnóstico assenta nos sinais e sintomas, contexto epidemiológico e na identificação de ARN viral por RT-PCR7,10. Outros elementos a considerar são alterações analíticas como linfopenia ou aumento de proteína C reativa, que podem sugerir o diagnóstico, mas não o sustentam isoladamente11. Temos ainda a avaliação imagiológica, que chegou a ser considerada como relevante o suficiente para sustentar o diagnóstico num cenário de escassez de testes RT-PCR. De facto, foram encontrados achados radiológicos mais típicos como opacidades em vidro despolido, atingimento difuso, heterogéneo, bilateral. Estes achados radiológicos em conjugação com o quadro clínico têm uma sensibilidade diagnóstica bastante alta12.
A pesquisa de ARN viral por RT-PCR apresenta limitações. Como já introduzido, a amostra desde logo condiciona o desempenho diagnóstico, sendo maior em locais mais profundos do trato respiratório. Em um estudo, a sensibilidade da RT-PCR em 205 pacientes variou entre 93% para lavagem bronco-alveolar, 72% para expetoração, 63% para esfregaços nasais e apenas 32% para esfregaços de orofaringe5,8,13. Apesar de as amostras mais fiáveis serem do trato respiratório inferior, no caso em estudo só foram colhidas amostras do trato respiratório superior, como é o procedimento habitual com base nas normas internacionais e da Direção Geral da Saúde à data de colheita.
A sensibilidade também pode variar dependendo do estádio da doença, taxas de multiplicação viral e de eliminação viral5,8,13.
Fica então mais que evidente que o estudo de um caso é um processo complexo, cheio de áreas cinzentas e de incertezas relacionadas com o que fazer perante uma situação suspeita do ponto de vista de prevenção primária de doença. É aqui que as medidas de afastamento social e profissional precisam ser bem medidas e ponderadas, pois há uma perturbação importante da dinâmica pessoal e profissional, qualquer que seja a decisão.
No caso em apreço, a dificuldade diagnóstica foi motivada por achados pouco congruentes. Por um lado, existia um quadro clínico compatível e epidemiologicamente sugestivo, apoiado por exames de imagem, enquanto que por outro lado o resultado da pesquisa de ARN viral era negativo.
Teria tido também interesse excluir a presença de outros agentes víricos entre os quais a pesquisa de vírus da gripe sazonal (vírus influenza A, vírus influenza B e vírus sincicial respiratório), mas face ao contexto pandémico, aos constrangimentos na realização de outros testes de diagnóstico e à distância temporal relativamente ao pico de incidência da referida gripe essa pesquisa não foi realizada.
Ainda assim, a decisão que melhor servia os interesses de saúde do profissional, dos colegas de trabalho e dos doentes era a de promover o seu afastamento do local de trabalho. Esta decisão assentou fundamentalmente no estado clínico pessoal que beneficiava com incapacidade temporária para o exercício das suas funções profissionais e no contexto epidemiológico de risco acrescido de exposição de colegas de trabalho e doentes a seu cargo, pois a possibilidade de transmissão de um agente infecioso respiratório e consequente aparecimento de mais casos de profissionais com sintomatologia respiratória, numa fase de pandemia com elevado número de casos a nível nacional, poderia implicar uma maior disrupção da capacidade de atividade assistencial no Serviço.
Após o período de doença aguda e sintomática, com recurso a pesquisa de imunoglobulinas específicas para SARS-CoV-2, foi encontrada reatividade IgG que levanta uma dicotomia relativamente ao diagnóstico que se prende com a probabilidade de testes de PCR serem negativos repetidamente e a fiabilidade da pesquisa de imunoglobulinas.
A reatividade IgG representa uma resposta imune adequada a uma infeção, mas, no entanto, não nos permite especificar quando essa infeção aconteceu8,13-16.
Os ensaios imunológicos têm taxas de sensibilidade variável ao longo do tempo, em função dos dias decorridos desde o início de sintomas. De uma forma geral a sensibilidade pode variar entre 65,5% (0-6 dias) até 100% (mais de 14 dias) e a especificidade entre 93,0 e 99,8%17. De facto, diferentes estudos sugerem que a reatividade imunológica confiável e mensurável ocorre nos 7 a 14 dias após o início dos sintomas, sem que haja evidência robusta de quanto tempo essa reatividade se mantém16,18-20. Estes dados podem levantar a questão acerca da data de início de doença, pelo que deve ser colocada a possibilidade de o enfermeiro ter tido COVID-19 numa data diferente à relatada.
Um estudo que usou como amostra doentes com RT-PCR positiva, comparou os resultados ao longo do tempo entre ensaio molecular e ensaio imunológico e verificou que a sensibilidade clínica da RT-PCR tem declínio ao longo do tempo, variando de mais de 90% nos primeiros cinco dias até aos 30% ao 21º dia, enquanto que no ensaio imunológico a sensibilidade aumentou até atingir os 100% aos 21 dias19. Tendo em conta estes dados é então admissível que o resultado de RT-PCR no caso em questão pudesse ser negativo mesmo durante a fase sintomática da doença e que a reatividade IgG tenha vindo mais tarde revelar o contacto com o agente viral.
De referir ainda que, apesar de o tempo de exposição de colegas de trabalho e doentes ter sido curto e de estarem a ser cumpridas as medidas de prevenção de infeção, não se podia excluir o risco de contágio destes, o que nunca se chegou a verificar. De salientar o importante papel do Serviço de Saúde Ocupacional na promoção do diagnóstico, no sentido de diminuir ao máximo a possibilidade de exposição de colegas de trabalho e doentes.
CONCLUSÃO
Este caso vem relembrar que o resultado dos testes laboratoriais, por mais sofisticados que sejam, têm de ser sempre confrontados com o contexto clínico e as medidas a adotar devem ir ao encontro do melhor acompanhamento clínico e à necessidade de prudência na gestão desta pandemia.
Partindo deste exemplo percebe-se a necessidade de armas diagnósticas mais sensíveis e específicas. Tendo em conta que o processo diagnóstico da COVID-19 poderá não ter a robustez desejada e que acarreta implicações num cenário de saúde pública complexo, a suspeição clínica fundamentada deve ser o motor essencial para a procura diagnóstica e implementação de medidas profiláticas.