INTRODUÇÃO
A profissão de Tatuador não tem recebido a atenção devida da parte da Saúde Ocupacional. Parte dos acidentes de trabalho neste contexto poderão envolver o contato cutâneo, e sobretudo percutâneo, com sangue eventualmente contaminado.
Enquanto que para os Profissionais de Saúde existem protocolos há já muitos anos relativos ao que fazer, o mesmo não acontece para a Tatuagem. Os protocolos atrás mencionados não são totalmente equivalentes entre instituições ou países, nem foram imutáveis ao longo dos anos, mas apresentam uma homologia bastante elevada entre si, ainda que possam apresentar discretas variações, sobretudo em relação a timings de diversos procedimentos no seguimento.
Quando se trata de Profissionais de Saúde, sobretudo os que exercem a nível hospitalar, caso aconteça este tipo de acidente, apenas têm de se deslocar ao local apropriado e iniciar o protocolo pré-definido. No caso dos Tatuadores não há essa facilidade e estes têm de esclarecer com a empresa à qual contrataram o seguro de Acidentes de Trabalho, onde se devem dirigir caso haja um sinistro: se a uma instituição privada de Saúde (parceira da Seguradora) ou a qualquer hospital dos Sistema Nacional de Saúde.
As patologias mais relevantes neste contexto são as Hepatites B e C, bem como o HIV (vírus da imunodeficiência adquirida humana).
Pretende-se com este artigo chamar a atenção para o tema da parte de três setores: as Empresas prestadoras de Serviços de Saúde Ocupacional (com clientes nesta área ou que pretendam vir a ter), as Seguradoras com contratos de Acidentes de Trabalho a Tatuadores e aos Tatuadores em si, de forma a que cada empresa crie um protocolo de atuação similar e o divulgue, para que se sejam prestados os cuidados adequados e em tempo útil.
Questões Gerais
Deve-se considerar que qualquer cliente tatuado pode estar potencialmente infetado; daí que se devam ver “procedimentos de riscos”, em vez de dar atenção a indivíduos teoricamente de risco (1) (2).
O Tatuador deve usar equipamentos de proteção adequados (1), que lhe darão uma defesa total ou parcial para este risco, consoante as circunstâncias do contato.
Considera-se que ocorreu exposição ao sangue sempre que este (ou outro líquido biológico contaminado por sangue) entrou em contato com a pele (por picada ou corte) e/ ou foi projetado para uma mucosa ou pele não íntegra (com eczema, escoriação e/ ou ferida) (1).
O risco é maior por via percutânea (picada), com lesão mais profunda e/ ou extensa (1) (3), com maior volume de inoculado, agulhas de maior calibre (1) e/ ou ocas (1) (3), quando menos tempo tiver saído o material inoculado do cliente (3); bem como quando há sangue visível no instrumento e o cliente apresentar alta carga viral (3) e/ ou pior estiver o seu sistema imune (ainda que esses dados não vão ser do conhecimento do Tatuador; aliás, às vezes nem a própria pessoa sabe que está infetada).
Das principais doenças transmissíveis por contato com sangue, apenas a hepatite B tem vacina.
O risco de infeção por Hepatite B e C é superior ao do HIV (1). O risco de infeção por contato percutâneo (por injeção) é de 5 a 40 (3) ou 6 (4) ou 7 a 30% (4) (5) para a Hepatite B, 3 a 10 (3) ou 7% (4) (5) (6) (média 1,8%) (5) para a Hepatite C e 0,2 (3) (6) ou 0,3 (4) (5) a 0,5 para o HIV (3) (4) (6) (neste último contexto estima-se que se a lesão for profunda ou superficial o risco de infeção será maior e menor que 0,3%; se se tratar de uma superfície grande ou pequena o risco será maior e menor que 0,1% (respetivamente) (3); outros também estimaram o risco de 0,3% via percutânea ou até mais (se existir um volume grande de sangue) e 0,09% por contato com mucosas (ocular, nasal e oral) (5).
As normas gerais após exposição acidental a material eventualmente contaminado incluem:
➢ limpeza da área com água e sabão (se for uma zona de pele) e lavar com jato de água ou soro fisiológico (se se tratar de contato com o nariz, boca ou olhos) (1) (5) (6) ou deixar sangrar e limpar com água ou solução salina e depois desinfetar com água e sabão, seguidos de álcool a 70% (3). Por sua vez, outros protocolos recomendam o uso de gluconato de clorexidina ou iodopovidona (Betanide®) (4). Não se recomenda o uso de lixívia nas feridas (1) (2), injeção de antisséticos ou desinfetantes (1)
➢ colher sangue ao sinistrado, se possível, para dosear marcadores relacionados com a Hepatite B e C, bem como HIV 1 e 2 (1) (2) (3) (4) (5) (ainda que, na realidade, se considere ser possível o contágio com 26 vírus, destacam-se os três atrás mencionados) (5). Quando o acidente com profissionais de saúde ocorre a nível hospitalar, pode-se solicitar ao paciente uma amostra de sangue para esse efeito; neste caso, seria também útil que o cliente tatuado colaborasse; se este se recusar a dar a amostra, deverá atuar-se como se esta fosse positiva (3).
Contudo, a colheita de sangue imediata no acidentado, serve apenas para provar uma infeção prévia ao acidente e não infeção imediata pelo sinistro que acabou de ocorrer (3).
Para avaliar o sistema imune do sinistrado deve-se pedir hemograma, analisando quer leucócitos, quer linfócitos (5).
Hepatite B
Acredita-se que este vírus consegue manter-se viável, em sangue seco, à temperatura ambiente, pelo menos, por uma semana (6).
A recomendação de profilaxia após exposição, depende de o sinistrado estar ou não imune à Hepatite B; ou seja, se foi vacinado e não se sabe se ficou imune, se está dentro do processo de vacinação no momento (ou seja, ainda não a concluiu), se tem anticorpos num nível considerado duvidoso para proporcionar proteção ou se tal valor se considera seguro. Algumas normas também levam em conta a informação que se possa saber sobre o indivíduo que proporcionou a amostra geradora do acidente de trabalho (ou seja, se tinha ou não marcadores de Hepatite B). Existem quadros onde entram todas estas variáveis e determinam se não são precisas medidas (por haver provas de uma imunidade segura), se se deve dar a primeira dose de imunoglobulina e/ ou vacina ou se tal é apenas recomendado; se se deve terminar a vacinação previamente iniciada ou revacinar (1) (2) (4).
5 a 10% dos vacinados não responde ou faz tal de forma insuficiente (5) (6). Os não- respondedores, em caso de exposição acidental, deverão fazer a imunoglobulina (HBIG- gamablobulina humana hiperimune anti-hepatite B) (6).
Considera-se que há imunidade completa quando o sinistrado fez as três doses da vacina pelo menos, doseou os anticorpos e estes estavam acima do nível mínimo ao qual se atribui defesa aceitável (3) (6), ou seja, acima de 10 mUI/ml, avaliado um a dois meses após terminar a terceira dose (6).
Os indivíduos respondedores não necessitam de continuar a testar tal ao longo da vida e/ ou a fazer qualquer reforço, excetuando quando existem questões médicas como Insuficiência Renal/ Hemodiálise, infeção por HIV ou imunossupressão (6).
Se a imunidade é parcial ou não existe, deve ser fornecida a primeira dose da vacina e da imunoglobulina, via intramuscular3, até 244 ou 48 horas depois do sinistro (2) (3). Se for administrada a imunoglobulina e a vacina na mesma altura, devem ser utilizados braços diferentes (2).
A profilaxia deverá, desejavelmente, ser iniciada nas primeiras 24 horas (5). Se se passarem mais de catorze dias, não se deve administrar a imunoglobulina, apenas a vacina (4).
Desde 1995 que a vacina para a Hepatite B está incluída no Plano Nacional de Vacinação; ou seja, indivíduos que tenham nascido antes não fizeram esta vacina, exceto se se tiverem mobilizado nesse sentido, como vacina extra. Seria muito relevante que todos os Tatuadores tivessem esta vacina concluída e com um patamar de anticorpos acima do que considera que proporciona uma imunidade segura.
O controlo laboratorial após acidente poderá ser feito sensivelmente às 4, 12 e 24 semanas, doseando TGO, TGP (função hepática), antigénio (1) e anticorpos da Hepatite B (1) (4) (um mês após completar a vacinação, se esta tiver ocorrido) (1).
Hepatite C
Em caso de acidente de trabalho por picada dever-se-á realizar também a pesquisa de marcadores da Hepatite C (7).
O seguimento para a Hepatite C poderá ser executado às 6ª, 12ª e 54ª semanas (1) ou 3º, 6º, 9º e 12º mês (3), doseando anticorpos anti-HVC, RNA HVC, TGO e TGP (1) ou mensalmente, nos primeiros quatro meses e depois ao 6º mês (5).
Se se provar positividade, poderá ser iniciado o interferão e/ ou a ribavirina, variável entre países e instituições (3). Alguns consideram que o primeiro destes apenas é útil em casos de infeção crónica e não aguda (5).
HIV
Quanto ao HIV, a profilaxia é mais eficaz se iniciada nas primeiras duas horas (1) (6). Até se perceber se o sinistrado foi ou não contaminado, este deve comportar-se como se tivesse sido, ou seja, deve abster-se de ter atividade sexual (1) (ou usar preservativo) (1) (3), não doar sangue/ tecidos/ esperma e suspender a amamentação. Caso se decida fazer antirretrovirais, estes deverão ser consumidos por um mês (1) (4) (5) (6) e iniciados até duas (4) (6) a seis horas após o sinistro (3) (6), ainda que tal possa ocorrer com validade até os primeiros três dias (4) (5); sendo que alguns investigadores até consideram uma semana (5), sobretudo em situação de risco mais elevado (6).
O seguimento laboratorial proposto também varia entre instituições e países e poderá ocorrer sensivelmente à 3ª (5) ou 4ª, 12ª e 24ª semanas, onde devem ser doseados anticorpos HIV, pelo método ELISA. Podem também ser colhidas análises para dosear (nos que iniciaram antirretrovirais) hemograma, ureia, creatinina, TGO, TGP, bilirrubinas, GGT e fosfatase alcalina (1) (3) (5) ou apenas hemograma, TGO, creatinina e marcadores virais, devido aos eventuais efeitos secundários destes fármacos; aliás pode ser necessário prescrever antieméticos (4).
A profilaxia não é cem por cento eficaz e deve ser tomada sempre à mesma hora (4). A nível de fármacos antirretrovirais alguns países e/ ou instituições recomendam zidovudina, lamivudina, emtricitabina, tenofovir e/ ou lopinavir; regra geral em esquemas duplos (1) (básicos- situações com menor risco (5)) ou triplos (1) (extensos-situações com maior risco) (5). Outras normas recomendam apenas indanavir, lamivudina e zidovudina (3); ou seja, dois inibidores da transcriptase reversa e um inibidor da protéase (3) (5). Outros ainda sugerem zidovudina, lamivudina ou emtricitabina (para regime duplo) e, para o triplo, acrescentam o lopinavir ou ritonavir. A maioria dos acidentes laborais é orientada com o regime básico; ainda que a eficácia do triplo seja superior (5).
Como eventuais efeitos secundários podem ser destacados para o indanavir a litíase renal e, para a zidovudina, cefaleia, náusea, anemia a alterações hepáticas (3). Estas medicações poderão estar contraindicadas durante a gravidez (sobretudo no primeiro trimestre) e amamentação (1).
A zidovudina tem 67,5% de eficácia em impedir a transmissão da doença de mãe para filho, se tomada durante a gravidez e até às primeiras seis semanas do recém-nascido. Estima-se que tenha uma eficácia para acidentes laborais na ordem dos 81%.
Outras normas recomendam que se tomem antirretrovirais caso a lesão seja percutânea (profunda ou superficial) (3) (6) ou se existir contato com mucosa ou pele não íntegra (se numa grande superfície); poderá ser opcional se se tratar de uma pequena superfície (3). Por fim, a profilaxia não está aconselhada em situações de pele íntegra (3) (5) (6).
A fazer terapêutica antiretroviral, alguns autores recomendam consultas de seguimento semanais (6).
Se o HIV se mantiver inativo até os primeiros seis meses, não é provável que exista infeção; contudo, há quem defenda a necessidade de se colher outra amostra aos doze meses, pela possibilidade remota de haver uma seroconversão tardia, até porque 95% das seroconversões ocorrem até às primeiras doze semanas (3).
CONCLUSÃO
Seria pertinente que algumas instituições associadas à Tatuagem nacional e/ ou internacional trabalhassem em conjunto para propor um plano de atuação perante acidente desta ordem, de forma a que, em sintonia com Seguradoras, Empresas prestadoras de Serviços Externos de Saúde Ocupacional e Tatuadores, ficasse acordado como proceder para minimizar o Risco.