INTRODUÇÃO
O amianto é a designação utilizada para a variedade fibrosa de seis minerais metamórficos de ocorrência natural, que têm vindo a ser extraídos pelo seu interesse comercial (1). Devido às suas propriedades, o amianto tem inúmeras aplicações, estando presente em diversos tipos de materiais, designadamente em telhas de fibrocimento, revestimentos, coberturas de edifícios, gessos, estuques e outros existentes na indústria da construção (1). A exposição a estes minerais está associada ao desenvolvimento de uma grande diversidade de doenças, designadamente a asbestose pulmonar, o mesotelioma maligno e a neoplasia do pulmão (1)(2), o que determinou a proibição da utilização/comercialização de amianto e/ou produtos que o contenham, vigente em Portugal desde 2005 através do Decreto-Lei nº 101/2005, de 23 de Junho (3) .
Apesar das medidas regulatórias, o amianto continua a estar presente em múltiplos contextos, inclusivamente no período de 2001 a 2012 a Europa foi responsável por 31% da utilização global destes produtos (4). Este facto, aliado ao longo período de latência das patologias associadas a esta exposição, o amianto tem-se mantido relevante como tema de estudo, mantendo-se a exposição ocupacional a este como a etiologia responsável por maior número de mortes por cancro ocupacional, nos países desenvolvidos (5).
CASO CLÍNICO
Trata-se de um indivíduo de 80 anos, enviado ao serviço de urgência pelo seu médico assistente por anemia microcítica hipocrómica de novo, com diminuição de 4g/dL de hemoglobina (Hb) no último ano.
Clinicamente o doente referia astenia e perda de peso (sete quilogramas nos últimos três meses), tosse seca que desencadeava dor pleurítica no hemitórax direito e sensação de saciedade precoce, com episódios esporádicos de vómitos alimentares após refeições mais fartas.
Os seus antecedentes pessoais relevantes incluíam: cardiopatia isquémica, doença cerebrovascular; hábitos tabágicos (40 unidades maço ano), com cessação há mais de vinte anos e asbestose pulmonar de origem ocupacional (tinha trabalhado em fábrica de produção de telhas de fibrocimento durante 24 anos), mantendo seguimento na Pneumologia.
Ao exame físico apresentava finas crepitações em ambas as bases pulmonares e, à palpação da fossa ilíaca esquerda, dor à descompressão, apesar de abdómen mole, depressível e sem massas palpáveis.
A avaliação analítica inicial revelou anemia (Hb 10.6g/dL), aumento dos parâmetros inflamatórios (Leucócitos 12.000; Neutrófilos 95%, Proteína C Reativa 13.3mg/dL, Velocidade de Sedimentação 100 mm/h), insuficiência respiratória parcial (pressão de oxigénio- pO2 64.3; Saturação de O2 93.2%), que estava agravada face ao seu habitual e elevação de D-dímeros (4044 ng/mL). Realizou angio-Tomografia Computadorizada (TC) de tórax que excluiu tromboembolismo pulmonar, apresentando alterações compatíveis com asbestose crónica sobreponíveis aos seus exames anteriores, no entanto, foi detetada “densificação epiploica irregular e pequena quantidade de ascite no abdómen superior”.
Durante o internamento, para pesquisa de eventual foco neoplásico, foi submetido a endoscopia digestiva alta que excluiu origem maligna a esse nível e colonoscopia, que foi incompleta por ansa irredutível a trinta centímetros da margem anal, com elevado risco de iatrogenia.
Neste contexto, realizou TC abdomino-pélvica, identificando-se densificação da gordura epiplóica e mesentérica; ao nível do epíploon, densificação em toalha tecidular inframesocólica, associando-se a presença de ascite em moderada quantidade com acometimento de todos os recessos, assim como alguns pequenos espessamentos nodulares do peritoneu sobretudo nas goteiras, com dimensão milimétrica. Estes aspetos foram considerados francamente sugestivos de carcinomatose peritoneal ou, atendendo ao contexto de exposição a asbestos, mesotelioma peritoneal.
O doente foi submetido a biópsia do grande epíploon, identificando-se proliferação mesotelial atípica epitelioide. O estudo imuno-histoquímico foi positivo para calretinina e marcador 1 do tumor de Wilms (WT1; bem como negativo para marcador da glicoproteína presente na superfície e citoplasma de células epiteliais (BerEP4) e para o factor de transcrição específico do intestino (CDX2), confirmando o diagnóstico de mesotelioma maligno.
Em consulta de Oncologia, considerando as múltiplas comorbilidades e baixo performance status foi proposto para terapêutica paliativa, vindo a falecer em junho de 2020, três meses após o diagnóstico.
DISCUSSÃO
O mesotelioma maligno é uma neoplasia das membranas serosas da pleura, peritoneu, pericárdio ou túnica vaginal testicular (6). O peritoneu é o segundo local de aparecimento mais frequente deste tipo de neoplasia, a seguir à pleura, sendo responsável por 7-30% dos casos (7)(8).
A apresentação clínica do mesotelioma peritoneal é variável em função da extensão tumoral, correspondendo frequentemente a sintomatologia inespecífica (8)(9). A queixa mais comummente referida é distensão abdominal, que está presente em 30-80% dos casos, seguida de dor abdominal, habitualmente difusa e inespecífica, mas que também pode ocorrer sob a forma de abdómen agudo, em contexto de obstrução ou perfuração intestinal; outras queixas incluem as apresentadas neste caso: saciedade precoce, perda de peso e náusea (8).
Dada a baixa especificidade dos sintomas, o diagnóstico é frequentemente atrasado, estando relatado um intervalo de até seis meses, desde o início dos sintomas (8)(10), suscetível de ser melhorado através da colheita de anamnese exaustiva, com informações sobre ocupação profissional prévia que podem elevar o grau de suspeita para esta patologia.
No caso do mesotelioma pleural, apesar de estar associado a múltiplos poluentes industriais e minerais, está fortemente relacionado com a exposição a amianto, descrita em até 80% dos casos. Para a variante peritoneal, a associação é menos robusta, identificando-se em 33-50% dos casos, e a relação temporal e duração da exposição não se correlacionam diretamente com o desenvolvimento de doença (8). Ainda assim, o cancro peritoneal encontra-se entre as patologias para as quais existe um excesso de risco significativo associado à exposição a amianto (11) devendo, assim, a história de exposição elevar o grau de suspeita para esta patologia.
Em Portugal, não obstante da publicação do Decreto-Lei nº 101/2005, de 23 de Junho que determinou a proibição da utilização/comercialização de amianto e/ou produtos que o contenham (3), este continua a estar presente em múltiplos contextos, nomeadamente em edifícios públicos (escolas, hospitais, bibliotecas), estaleiros, materiais elétricos e isoladores, estando suscetível a desgaste, erosão e decomposição, com libertação de fibras de amianto (12). Para além da exposição ambiental, a exposição ocupacional, particularmente nos trabalhadores envolvidos na gestão dos resíduos de materiais contendo estas fibras, tem determinado a necessidade de implementação de medidas com vista à redução da exposição e adequada vigilância da saúde destes trabalhadores.
Neste âmbito, a prevenção das patologias associadas ao amianto passa, antes de mais, pelo conhecimento do local e condições de trabalho, com análise do risco exaustiva e compreensiva, que deve incluir as condições em que se encontram os materiais contendo amianto e a medição periódica da concentração de fibras de amianto na atmosfera dos locais de trabalho, que permita a estimação da natureza, grau e tempo de exposição dos trabalhadores (13).
Ainda que esteja fixado o limite de exposição ao amianto em 0,1 fibra por centímetro cúbico (13), para o mesotelioma não existe um limite seguro de exposição, sendo o risco proporcional à dose de exposição cumulativa (14). Assim, um programa de prevenção das patologias associadas ao amianto deve procurar reduzir a exposição a níveis mínimos, eliminando-a nas circunstâncias em que tal seja possível.
A gestão do risco das patologias associadas ao amianto passa ainda pela implementação de um programa de vigilância da saúde dos trabalhadores que deve incluir a avaliação clínica na admissão ao trabalho, previamente ao início da exposição e, posteriormente, de forma periódica (13). Esta avaliação deverá explorar as comorbilidades que contribuam para um aumento do risco destas patologias, assim como as queixas que possam sugerir o desenvolvimento de patologia associada ao amianto. No primeiro caso, é de destacar o tabagismo, cuja cessação deve ser fortemente recomendada (12).
Sempre que seja pertinente, as avaliações clínicas poderão ser complementadas com métodos de diagnóstico dirigidos, como radiografia de tórax, provas de função respiratória, ou tomografia computorizada (13).
Dado o longo período de latência das doenças relacionadas com amianto, mesmo com um adequado programa de vigilância da saúde, existe a possibilidade de estes trabalhadores virem a desenvolver sintomatologia após o término da sua atividade profissional. Nesse contexto, é extremamente importante a ampla divulgação desta associação etiológica, assim como a correta informação dos trabalhadores quanto aos riscos inerentes às respetivas profissões e quanto à história natural destas patologias. Desta forma, após a cessação da atividade profissional, estes indivíduos saberão que devem enfatizar a exposição ocupacional a asbestos junto do seu médico assistente e que tal poderá ser determinante para uma continuada vigilância da sua saúde que seja adequada e permita a obtenção de um diagnóstico atempado.
CONCLUSÃO
O mesotelioma peritoneal é uma entidade rara e cuja relação menos forte com a exposição a asbestos poderá, ao menos em parte, ser explicada pelo menor número de casos, escasseando a possibilidade para estudos etiológicos mais robustos. Igualmente, a apresentação clínica e imagiológica inespecífica poderá contribuir para uma subestimação da incidência, que poderia ser atenuada por colheitas de anamnese exaustivas, com exploração de eventuais exposições ocupacionais prévias.
Ainda que a regulação da utilização do amianto tenha sido instituída no início do século XXI, este continua a estar presente em múltiplos contextos e o longo período de latência que medeia a exposição e o desenvolvimento do mesotelioma maligno têm determinado o contínuo aparecimento de casos como o que aqui apresentamos.
Apesar de estar fixado um limite de exposição aos asbestos, no caso do mesotelioma não existe um nível de exposição abaixo do qual este não se desenvolva (14). A regulação da utilização de materiais com amianto foi útil, mas este continua a existir e corresponde ao carcinogéneo ocupacional mais letal nos países desenvolvidos (5). Assim, é da maior importância a correta avaliação dos locais e condições de trabalho, com identificação e documentação dos materiais que imponham maior risco de exposição, visando a implementação de medidas que a reduzam a níveis mínimos. Igualmente, é fulcral a implementação de programas de vigilância da saúde que facilitem a identificação atempada dos primeiros sinais e sintomas das patologias associadas à exposição a estes minerais.
Devemos continuar a documentar casos como o que aqui apresentamos, que reforçam o link epidemiológico entre a exposição a asbestos e o aparecimento de mesotelioma, procurando sensibilizar as equipas médicas para a importância de conhecer a história ocupacional dos doentes.