INTRODUÇÃO
O trabalho tem grande importância na história da humanidade. É elemento determinante da inclusão social, independência e autonomia económica, valorização e realização pessoal dos cidadãos. Ao longo da história o trabalho tem moldado sociedades e estas respondem do mesmo modo e reconhecem a sua importância. Desde sempre existiram agentes sociais com preocupação pelas condições laborais, no entanto a saúde e segurança não surgiu como um pressuposto das atividades laborais, mas antes como uma necessidade de resposta social aos constrangimentos e consequências que estas têm no Ser Humano(1).
Uma das consequências do trabalho são aos Acidentes de Trabalho (AT) que merecem ser alvo de estudo para que se possa, aos poucos, perceber como e porque acontecem, de forma a chegar a soluções que possam minimizar o problema.
Os acidentes de trabalho são fenómenos frequentes e têm de facto um grande impacto no indivíduo, na sociedade e na economia(2,3). A sua ocorrência não é homogénea para todas as ações humanas e assim, pela natureza do ambiente de trabalho e do tipo de atividade, os hospitais são as instituições de saúde com maior sinistralidade laboral(2,4,5).
O funcionamento dos hospitais durante 24 horas por dia, implica que os profissionais de saúde tenham um horário rotativo, podendo haver a necessidade de se realizarem turnos de 8, 16 ou mesmo 24 horas consecutivas(6).
Estes profissionais trabalham, frequentemente, com horários prolongados e muitas vezes com um número de profissionais presentes inferior ao desejável. Estas condições são geradoras de stresse conduzindo, muitas vezes, a um deficiente desempenho profissional, aumentando as probabilidades de erro e a ocorrência de acidentes(6).
Segundo dados da Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, os acidentes com picadas de agulha em profissionais de saúde são os acidentes de trabalho com maior incidência no meio hospitalar(7).
A exposição a agentes biológicos representa um risco com potenciais repercussões graves para os profissionais de saúde. Nos hospitais, a transmissão de agentes biológicos pode ocorrer por contacto (direto ou indireto), gotículas, via aérea, veículo comum (via hídrica ou entérica) e por vetores. A transmissão indireta pode surgir, entre outras, em consequência de um AT por lesão percutânea ou mucocutânea, através da exposição ao sangue ou a fluídos corporais provenientes de doentes infetados(3,8,9).
OBJETIVOS
O presente trabalho tem como objetivo caracterizar a incidência de AT ocorridos entre 2015 e 2019 num Centro Hospitalar da Região Centro e identificar os padrões da sua ocorrência, concretamente em relação ao dia da semana e à hora do dia em que se verifica a sua ocorrência, o número de horas trabalhadas e evolução ao longo dos anos.
MATERIAL E MÉTODOS
Fez-se de uma análise retrospetiva dos registos dos AT ocorridos em profissionais de saúde de um Centro Hospitalar da Região Centro de Portugal, entre janeiro de 2015 e dezembro de 2019.
O Serviço de Saúde Ocupacional (SSO) do referido Centro Hospitalar, após a receção das participações dos AT, procede ao registo, análise e acompanhamento dos mesmos.
A recolha de dados efetuou-se mediante análise documental das participações dos AT e inserção dos dados na respetiva plataforma, aplicados pelo SSO do referido Centro Hospitalar.
Foram analisados todos os AT, registados em suporte informático e documental, com risco biológico, no período em referência, de acordo com os seguintes critérios: género, idade, categoria profissional, dia da semana, hora da ocorrência e número de horas trabalhadas até ao momento do acidente.
O estudo estatístico foi concretizado através do programa informático Microsoft Excel®, versão 1905 para Windows e IBM SPSS Statistics versão 26. Foi utilizado o coeficiente de correlação de Spearman para analisar associação entre variáveis quantitativas. A interpretação estatística no que diz respeito à rejeição da hipótese nula (H0) assumiu-se como probabilidade de significância p-value ≤0,05.
RESULTADOS
Entre 2015 e 2019 ocorreram 2213 AT. Destes, 888 (40%) tiveram risco biológico (Gráfico 1).
A idade média dos sinistrados foi de 38,81 +/- 10,44 anos. Oitenta por cento (n=712) eram do género feminino. Quanto à categoria profissional, 30,2% (n=268) eram médicos, 48,4% (n=430) enfermeiros, 18,7% (n=166) assistentes operacionais, 2,5% (n=22) técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e 0,2% (n=2) assistentes técnicos.
Ao longo deste período, verificámos que existiu uma correlação fraca para a diminuição do número de acidentes com risco biológico (R=-0,316, p=0,014) (Gráfico 2).
No global, o dia da semana em que ocorreram maior número de AT com risco biológico, foi a segunda-feira (n=170), seguindo-se a quinta-feira (n=158). Em 2016, 2017 e 2019 a segunda-feira foi o dia com maior número de AT, enquanto em 2018 e 2019 tal ocorreu à quinta-feira (Gráfico 3).
Observou-se uma distribuição assimétrica dos dados de horas trabalhadas até o acidente de trabalho ocorrer, sendo a mediana de quatro horas (amplitude inter-quartil 2-6). Verificou-se que a incidência de AT é mais elevada após duas horas de trabalho, em todos os anos (2015, n=33; 2016, n=32; 2017, n=28; 2019, n=30), à exceção de 2018, cuja maior incidência se verificou após três horas de trabalho, mas com um nº de AT apenas discretamente superior ao valor das após duas horas de trabalho (n=32 após 3 horas vs n=31 após duas horas) (Gráfico 4).
No conjunto dos anos em estudo podemos observar que os dois intervalos com maior frequência foram após as duas e três horas de trabalho (n=154 e 125, respetivamente).
Após três horas de trabalho, verificou-se uma tendência de diminuição na incidência destes AT, mas ela é invertida quando se atingem as sete horas de trabalho, onde se destaca um aumento de incidência (n=87).
Aumentando os intervalos temporais e comparando períodos de trabalho, foi possível verificar que foi no período da manhã que existiu uma maior incidência de AT com risco biológico (n=605, 68%), seguido do período da tarde (n=197, 22%) e finalmente o da noite (n=86, 10%).
Analisando com mais detalhe o período da manhã, foi possível verificar que a frequência de AT foi maior nos períodos compreendidos entre as 10-11 e 11-12 horas (Tabela 1).
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Entre 2015 e 2019, a proporção de acidentes de trabalho com risco biológico foi semelhante à encontrada noutros estudos(2,4,5) e refletindo a maior prevalência deste risco em meio hospitalar(4).
Enfermagem, em termos absolutos, foi a categoria profissional com maior frequência (48,4%), de acordo com outras publicações(2,10). Devemos também realçar que neste Centro Hospitalar um estudo de 2013 a 2015 teve resultados semelhantes na distribuição dos acidentes de trabalho com risco biológico, com 46% a verificarem-se em enfermeiros(5). Curiosamente, esta é também a categoria profissional mais numerosa dentro da instituição (com cerca de 36% nos anos em estudo), sendo que, em relação ao número total de cada categoria profissional, se verifica uma ligeira maior proporção de médicos com uma incidência de 16,6%, em relação aos enfermeiros, com 15,4%.
Já em relação à idade é conjeturado que os profissionais mais novos sejam mais afetados em consonância com a sua menor experiência profissional(6). Na nossa amostra verificamos que o escalão com maior frequência em termos absolutos foi dos 30 aos 39 anos com 37% dos casos, o que não corresponde às idades de início de carreira típicas das categorias profissionais mais afetadas. Contudo, no nosso Centro Hospitalar, o escalão etário entre os 20 e os 29 anos representa cerca de 9% do total de profissionais, assim, em termos relativos houve uma incidência de 31% neste, seguido do escalão dos 30 aos 39 anos com 16%, de acordo com outros autores (6).
A prevalência de profissionais do género feminino nos anos em apreço no Centro Hospitalar era de cerca de 74%. Assim, em relação ao total de profissionais verificamos uma incidência relativa de 13% no género feminino e de 9% no género masculino, não havendo diferença significativa.
Da análise dos resultados concluímos que a maioria dos AT com risco biológico, entre 2015-2019, ocorreu no período da manhã, em concordância com os estudos consultados(10,11). A maior incidência de AT verificou-se entre as dez e as doze horas da manhã, coincidindo com o horário em que há maior volume de trabalho e maior afluência de pessoas à instituição, pois a maioria das colheitas de amostras, preparação e administração de terapêutica, cirurgias, exames complementares de diagnóstico, mobilizações e transferências de doentes, cuidados de higiene, procedimentos de higienização e manuseamento de resíduos, são realizados neste período. O excesso de confiança relativamente a comportamentos de risco ou ambientes de trabalho em que os profissionais estão constantemente sob pressão, são também possíveis causas para a elevada frequência do acidente por picada a nível hospitalar(6).
Destaca-se ainda um segundo pico entre as 15 e as 16 hoas do turno da manhã, nos anos em referência, à exceção de 2018, correspondendo à 7ª e 8ª hora de trabalho do turno, que coincide com o final do turno de trabalho, podendo sugerir o impacto do cansaço e fadiga, que podem interferem na capacidade do profissional em realizar a sua atividade de forma segura(6).
Nos anos em estudo verificámos que os acidentes com risco biológico têm vindo a diminuir ao longo do tempo, sendo o ano de 2019 aquele que apresenta menor incidência. Este facto estará eventualmente relacionado com a importância do papel da equipa do SSO na análise dos AT, formação e informação dos profissionais de saúde na definição e implementação de medidas corretivas. Desde o início deste estudo que foram implementadas medidas, como a introdução de dispositivos médicos corto-perfurantes que incorporem mecanismos de proteção, formação acerca da correta triagem e acondicionamento de resíduos e ações de formação em sala com vista à promoção de saúde e segurança no trabalho.
É fundamental dar continuidade à implementação destas estratégias de segurança e saúde que promovam a contínua e sistemática diminuição da incidência dos AT, sendo importante manter a monitorização constante da incidência dos AT e intervir nas causas subjacentes. Estas medidas poderão ter impacto importante no aumento da segurança dos trabalhadores e redução dos custos económicos a médio e longo prazo(3).