INTRODUÇÃO
A COVID-19 é uma infeção respiratória aguda causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global.
O SARS-CoV-2 é um betacoronavírus inicialmente descoberto em amostras de lavado broncoalveolar obtidas de pacientes com pneumonia de causa desconhecida na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, em dezembro de 2019. Pertence ao subgénero Sarbecovírus da família Coronaviridae e é o sétimo coronavírus conhecido a infetar seres humanos. Os coronavírus são uma grande família de vírus comuns em muitas espécies diferentes de animais, incluindo camelos, gado, gatos e morcegos. Desde a identificação dos primeiros casos, este vírus continuou a disseminar-se, atingindo uma dimensão em número e distribuição geográfica que determinou a sua classificação como pandemia, pela Organização Mundial de Saúde, a 11 de março de 2020.
A infeção pode variar de casos assintomáticos e manifestações clínicas leves, até quadros com envolvimento multissistémico, graves e críticos, sendo necessária atenção especial aos sinais e sintomas que indicam agravamento do quadro clínico que exijam a hospitalização do paciente (1).
A capacidade de os coronavírus afetarem o sistema nervoso é conhecida, existindo múltiplos casos de envolvimento neurológico descritos durante as epidemias de Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus (SARS-COV) e de Middle East Respiratory Syndrome Coronavirus (MERS), de 2002 e 2012, respetivamente (2).
Uma primeira análise retrospetiva de 214 casos, realizada por Mao et al, referiu a presença de sintomas neurológicos em 36,4% dos doentes internados por COVID-19. A semiologia/patologias mais comuns foram tonturas (16,8%), cefaleias (13,1%), mialgia (10,7%), alteração do estado de consciência (7,5%), disgeusia (5,6%), hiposmia (5,1%), acidente vascular cerebral (2,8%), ataxia (0,5%) e convulsões (0,5%) (1,3). Desde então, vários outros artigos e séries têm sido publicados, relatando múltiplas manifestações ou patologias neurológicas, como a Síndrome de Guillian-Barré ou encefalites.
A paralisia de Bell é a neuropatia craniana mais comum, com etiologia e fisiopatologia muito particulares. Embora a paralisia de Bell, por definição, seja considerada uma doença idiopática, existe uma evidência científica crescente que mostra que várias infeções virais estão relacionadas com esta patologia. Acredita-se que resulte da compressão do sétimo nervo craniano no gânglio geniculado devido à inflamação. A primeira parte do canal do facial, o segmento labiríntico, é o mais estreito e é aí que ocorre a maioria dos casos de compressão. Devido à estreita abertura do canal do facial, a inflamação causa a compressão do nervo e pode mesmo levar à isquemia (3,14). Esta patologia é caracterizada pela diminuição ou abolição, temporária ou não, da função do nervo facial no seu segmento periférico. Apresenta-se clinicamente por alterações da mobilidade dos músculos faciais, secreção salivar e lacrimal e sensibilidade facial, resultando em comprometimento estético e funcional nos indivíduos acometidos (2,11). Vários agentes infeciosos virais, como herpes simplex, varicela zoster e vírus da imunodeficiência humana, estão muitas vezes associados à paralisia do nervo facial.
A patogénese exata da paralisia do nervo facial de início agudo não é totalmente conhecida, mas acredita-se que esteja associada à disseminação axonal e replicação viral, levando à inflamação e desmielinização do nervo. Na paralisia idiopática do nervo facial, a isquemia do vasa nervorum e a desmielinização induzida por um processo inflamatório podem ser considerados possíveis mecanismos relacionados com o dano do nervo (2,16). No entanto, na literatura médica, apenas alguns casos de paralisia de Bell relacionadas com a infeção a SARS-CoV-2 foram publicados (3) (8) (14-17). Por outro lado, o aumento da incidência de paralisia facial observado durante um ensaio de vacinas sugeriu que um mecanismo imunomediado deve ser considerado. Pensa-se que o dano do SARS-CoV-2 seja causado também pela ativação da imunidade, e os coronavírus são conhecidos por serem neurotrópicos, portanto, há uma base para considerar uma ligação entre o COVID-19 e a paralisia facial (3) (14).
O relato do seguinte caso clínico descreve a história de uma profissional de saúde infetada pelo coronavírus SARS-CoV-2, com sintomatologia inaugural bastante atípica. Dado que ainda se desconheçam inúmeros dados acerca desta infeção, servirá também como um alerta para que sintomas menos comuns não sejam ignorados.
DESCRIÇÃO DO CASO CLÍNICO
Trata-se de uma profissional de saúde, 31 anos de idade, sem antecedentes pessoais de relevo, aparentemente saudável. Encontrava-se a exercer funções num Centro Hospitalar, tendo contacto diário com doentes COVID-19 positivos. Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por alteração da sensibilidade da hemiface direita e assimetria facial. Ao exame objetivo apresentava hipoestesia álgica na hemilíngua direita, parésia facial periférica direita discreta e assimetria “gag reflex” (menor à direita). Para além disso, negava alteração do paladar e apresenta restante exame neurológico sumário sem alterações. Ainda no SU realizou Tomografia Computorizada Crânio Encefálica sem alterações. Admitiu-se o diagnóstico de Paralisia de Bell e prescreveu-se Prednisolona 20mg uma vez por dia, toma oral e Aciclovir 800mg de 4 em 4h, também toma oral, tendo tido alta para o domicílio, com indicação para consulta de Neurologia, duas semanas depois, para reavaliação e eventual realização de Ressonância Magnética Crânio Encefálica.
Cerca de uma semana após, recorreu novamente ao SU por mal-estar geral, náuseas e vómitos. Na admissão no SU apresentava-se febril (38ºC) e com tosse seca irritativa. Foram solicitadas análises, as quais apresentavam ligeiras alterações dos parâmetros inflamatórios, leucopénia 3.770/uL, Proteína C Reativa 14.5mg/L, discreta citólise hepática (AST 75 U/L, ALT 127 U/L e GGT 53 U/L), sem desvios iónicos. Foi também realizada Radiografia de Tórax que revelou hipotransparência bibasal com reforço hilar. No contexto da pandemia COVID-19 foi considerada como caso suspeito, procedendo-se ao despiste através de teste Polymerase Chain Reaction (PCR) por colheita nasofaríngea e orofaríngea. O teste revelou-se positivo e, por este motivo, ficou internada para vigilância em enfermaria COVID-19. Foi proposto à doente a realização de Punção Lombar que a mesma recusou, não tendo sido possível analisar a presença de vírus no líquido cefalorraquidiano. O internamento decorreu sem intercorrências, com apirexia sustentada desde o segundo dia de internamento, eupneica em ar ambiente e valores tensionais controlados. Teve alta ao quinto dia com indicação para manter isolamento no domicílio e medicada com Prednisolona 20mg uma vez por dia, toma oral e por mais sete dias. Realizou novo teste de despiste COVID-19 uma semana após alta, com resultado Negativo. Nesta altura foi avaliada pelo Médico de Família, encontrando-se assintomática e com resolução completa do quadro de paralisia facial. No regresso ao trabalho realizou consulta na Saúde Ocupacional do seu Hospital, apresentando anticorpos IgG positivos para SARS-CoV-2 e Radiografia Torácica sem alterações relevantes. Dado o diagnóstico de COVID-19 em contexto ocupacional procedeu-se à Participação Obrigatória de Doença Profissional (4,5,6).
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
A rápida expansão da pandemia COVID-19 levou ao desenvolvimento de um número crescente de síndromes neurológicos. O relato deste caso clínico apoia que a paralisia facial periférica poderá ocorrer durante o curso clínico de COVID-19 ou até, antecipar outras manifestações típicas, como febre e sintomas respiratórios (3) (15).
As manifestações típicas da COVID-19 são uma síndrome viral acompanhada de clínica respiratória, caracterizada por tosse seca, febre e dispneia, imagiologicamente assemelha-se com uma pneumonia viral. Além das manifestações respiratórias mais comuns, têm sido publicados vários artigos que descrevem alterações neurológicas nestes doentes, como anosmia/hiposmia, ageusia/hipogeusia, fadiga, astenia, polineuropatia aguda, cefaleia, enfarte cerebral ou encefalite. Admite-se, portanto, atingimento do sistema nervoso central (SNC), periférico (SNP) e a própria fibra muscular (3,16).
Como é conhecido, a hipercoagulabilidade ocorre em alguns pacientes com a doença COVID-19, que pode resultar em danos e complicações trombóticas arteriais e venosas do endotélio vascular. Esta situação aparece como um achado que suporta a patogénese da paralisia facial. O dano viral direto ou uma reação autoimune que produz inflamação em direção ao nervo seriam mecanismos alternativos ou cooperantes para que resultasse esta disfunção (16). Uma vez que este vírus tem uma alta afinidade para os recetores da enzima conversora da angiotensina 2 (ACE-2), que são frequentemente encontrados no sistema nervoso, pensa-se que ocorra uma relação de neurotropismo, podendo causar diretamente dano no nervo. Os recetores da ACE-2 são altamente expressos no epitélio ciliado e células caliciformes, sendo que a replicação viral é mais elevada na mucosa nasal, é facilmente percetível a deteção de carga viral alta quando examinadas as células nasais (15, 16). Na maioria dos casos, não tem sido possível o isolamento do vírus no líquido cefalorraquidiano acreditando-se que a disseminação ao sistema nervoso central e/ou periférico seja transitória e que a carga vírica seja inferior à capacidade de deteção dos testes disponíveis (12) (13). Assim, tendo em conta os mecanismos descritos, seria bastante possível que o caso apresentado se tratasse de uma manifestação inaugural da COVID-19.
Por outro lado, a coexistência da paralisia facial periférica e do SARS-CoV-2 poderá tratar-se de uma simples coincidência. Num estudo realizado por Mutlu, verifica-se que durante o ano pandémico não houve aumento no número de doentes internados com paralisia facial periférica idiopática e 98% desses pacientes tiveram um resultado negativo no teste SARS-CoV-2 de PCR. Para esclarecer o assunto, estudos post mortem em pacientes que desenvolveram paralisia facial periférica idiopática e morreram de COVID-19 no mesmo período serão necessários (17).
Em última análise não podemos ignorar que logo na primeira ida da doente ao SU, foi-lhe instituído tratamento com corticoterapia, não tendo sido colocada a hipótese de estar infetada com SARS-CoV-2 naquele momento. Daqui surgem duas hipóteses possíveis: a doente poderia já estar positiva para SARS-CoV-2, mas não havendo uma suspeição clínica, não foi testada; ou então o facto de lhe ter sido prescrita corticoterapia para tratamento da paralisia facial, poderá tê-la tornado imunologicamente mais suscetível a contrair o vírus posteriormente.
Apesar dos grandes estudos relatarem a fisiopatologia e associação do COVID-19 com as manifestações neurológicas, é necessário que sejam realizadas mais pesquisas para compreender os efeitos a longo prazo da invasão no Sistema Nervoso. A alta contagiosidade deste vírus e o contexto pandémico que vivemos, reforça a importância de exames físicos cuidados e histórico médico detalhado, de forma a evitar atrasos no diagnóstico e consequentemente a transmissão adicional do vírus (7,8). No entanto, é necessário que haja um alto índice de suspeição por parte dos médicos para infeção por SARS-CoV-2, de forma que este vírus não permaneça subdiagnosticado.
Explorar as manifestações neurológicas de COVID-19 é um passo em direção à melhor compreensão do vírus, prevenindo a propagação do mesmo e permitindo providenciar o tratamento adequado aos doentes afetados por esta pandemia (11,12).
A Saúde Ocupacional adquiriu um papel de extrema relevância durante a pandemia que vivemos. Muitos dos infetados a nível mundial contraíram a infeção durante o exercício das suas profissões, como o caso que apresentamos. A investigação de sequelas futuras, encaminhamento para apoio psicológico e o fornecimento de suporte de reabilitação consistem em premissas futuras a incluir pela Medicina do Trabalho na vigilância periódica, nomeadamente, de trabalhadores que contraíram a infeção por COVID-19.