INTRODUÇÃO
O Sarampo é uma infeção aguda sistémica causada por um paramixovírus (1). É altamente contagiosa, sendo transmitida ou por contacto direto com secreções nasais ou faríngeas de pessoas infetadas ou por via aérea. Habitualmente é benigna, mas em alguns casos pode ser grave ou mesmo fatal (2).
Nas últimas seis décadas, a promoção da vacinação contra o Sarampo diminuiu drasticamente a sua incidência (3). Entre 2000 e 2016, a incidência anual desta patologia diminuiu cerca de 87%. Apesar disso, a contagem global de casos tem aumentado nos últimos anos, com cerca de sete milhões de novas infeções diagnosticadas em 2016. A erradicação do Sarampo é definida pela ausência de transmissão endémica deste vírus numa determinada região geográfica durante pelo menos doze meses (1). Dado que esta doença já foi considerada erradicada em Portugal, um novo caso de infeção requer uma avaliação e resposta céleres (2).
Estima-se que os profissionais de saúde (PS) apresentam um risco treze a dezanove vezes superior de contraírem esta infeção. Por outro lado, PS infetados podem contagiar os seus colegas e pacientes. Assim, a vacinação adequada deste grupo de trabalhadores representa uma das principais estratégias para consolidar a eliminação do Sarampo em Portugal (4).
Neste seguimento, considera-se de elevada pertinência a existência de um protocolo de atuação de resposta ao Sarampo num hospital português, de forma a padronizar os procedimentos a adotar para os PS que contactaram com doentes infetados.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica relativa aos aspetos clínicos e preventivos do Sarampo com recurso às principais orientações de organizações como a Direção-Geral da Saúde e Centers for Disease Control and Prevention, Foi também conduzida uma pesquisa nas bases de dados PubMed/MEDLINE e procedeu-se à identificação de artigos científicos escritos em inglês, publicados entre 2011 e 2021, utilizando os seguintes temas-chave: “Measles”, “Measles vaccine”, “Vaccination”, “Outbreak” e “Prevention”. Foram encontrados duzentos e vinte e quatro artigos. Após revisão dos títulos e resumos, foram selecionados cinco, na medida em que apresentavam particular interesse para a elaboração de um protocolo exequível num serviço hospitalar. A lista de referências dos artigos foi revista para identificar estudos adicionais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Clínica e complicações
A infeção por este vírus apresenta um período de incubação que pode durar entre sete a vinte e um dias (2), durante o qual existe replicação viral nas células mieloides e linfoides (5). Após esta fase, segue-se o período prodrómico, no qual o quadro clínico característico se inicia por febre e pelo menos um dos seguintes sintomas: tosse, conjuntivite e coriza. Durante esta fase surgem as manchas de Koplik: pequenas pápulas brancas na mucosa da boca e possibilitam a realização do diagnóstico clínico de Sarampo, as quais antecedem em um a dois dias o rash eritematoso e maculopapular. Este, aparece três a quatro dias após o início da febre, inicialmente na face e posteriormente aos pavilhões auriculares progredindo para a região do tronco e extremidades. A febre e os sintomas catarrais são mais intensos aquando do surgimento do exantema, o qual persiste durante três a quatro dias. A recuperação surge uma semana após o início do exantema em pessoas sem complicações decorrentes da doença (6).
Os doentes com Sarampo são contagiosos cerca de quatro dias antes e quatro dias após o aparecimento do exantema.
Há casos particulares que requerem especial atenção, como os indivíduos imunodeprimidos, vacinados e grávidas. Em indivíduos imunodeprimidos, o período de contágio pode ser mais prolongado (2). Têm uma maior probabilidade de surgirem complicações, tais como sobreinfeção bacteriana e envolvimento severo do sistema nervoso central (5). Em pessoas vacinadas o período de contágio pode ser mais curto e também apresentam menor risco de transmissão. Para além disso, nestes, a doença é normalmente mais benigna e podem não apresentar a clínica completa (2). Durante a gravidez, o Sarampo aumenta o risco de complicações maternas, fetais e neonatais. De facto, o vírus pode lesar a placenta e/ou o feto, o que acarreta um risco acrescido de aborto espontâneo e de nascimento de um nado-morto ou nado-vivo com Sarampo congénito (5).
Diagnóstico
Apesar de um caso típico poder ser facilmente reconhecido no contexto de um surto, o diagnóstico é desafiante para os PS que nunca o tenham realizado no passado e caso o paciente se apresente antes do início do exantema típico ou em que este seja menos aparente. Este cenário pode ocorrer nos indivíduos que receberam previamente a imunoglobulina humana (IG) ou que foram vacinados após a exposição ao vírus do Sarampo.
Segundo o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), a presença de exantema maculopapular generalizado, febre (temperatura corporal ≥ 38.3ºC), tosse, coriza ou conjuntivite (ou uma combinação destes sintomas) apresenta uma elevada sensibilidade (75 a 90%), mas um valor preditivo positivo baixo para o diagnóstico desta patologia num local onde a incidência seja baixa. Por este motivo, é necessária a existência de uma confirmação laboratorial (7).
Existem três tipos de critérios fundamentais para o diagnóstico: clínicos, laboratoriais e epidemiológicos. Os primeiros são a presença de febre, exantema maculopapular e pelo menos um dos seguintes: tosse, coriza ou conjuntivite. No que diz respeito aos critérios laboratoriais, tem de ser cumprido pelo menos um dos seguintes: isolamento do vírus a partir de uma amostra biológica; deteção do ácido nucleico num produto biológico; bem como no soro ou saliva, de anticorpos IgM específicos da resposta a infeção aguda e seroconversão em dois soros correspondentes à fase aguda e fase de convalescença. Por último, os critérios epidemiológicos dizem respeito à existência de ligação epidemiológica com um caso confirmado. Assim, podem definir-se casos confirmados (critérios clínicos + laboratoriais), prováveis (critérios clínicos + epidemiológicos) ou possíveis (critérios clínicos) (2).
Tratamento
Uma vez que não existe um antivírico específico, o tratamento é essencialmente de suporte, para prevenir a desidratação. É também fundamental o diagnóstico e tratamento precoces de infeções bacterianas secundárias como pneumonia e otite média (7).
Prevenção
Em 1974, a vacina monovalente contra o Sarampo (VAS) foi incluída no Programa Nacional de Vacinação (PNV). Em 1987, a VASPR (vacina combinada contra Sarampo, parotidite epidémica e rubéola) substituiu a VAS no PNV, sendo recomendada aos quinze meses de idade.
De acordo com o PNV 2017, a melhor medida de prevenção contra esta doença é a vacinação. Em indivíduos com menos de dezoito anos é recomendada a realização de duas doses de VASPR (aos doze meses e cinco anos de idade); aos indivíduos com dezoito anos ou mais: se nascidos antes de 1970 não se encontra recomendada qualquer dose; se nascidos a partir de 1970 é recomendada a realização de uma dose de VASPR; todos os PS sem história credível de Sarampo devem realizar duas doses de VASPR, independentemente do ano de nascimento. O intervalo mínimo entre duas doses de VASPR é de quatro semanas.
Em todos os exames médicos de admissão, o médico de trabalho deve averiguar a existência de registos de vacinação prévios, bem como a existência de história credível de Sarampo. Se o PS não apresentar registo vacinal (VAS ou VASPR) e não apresentar história credível de infeção, deve realizar o esquema de duas doses (zero e quatro semanas); se existir registo de apenas uma dose de vacina (VAS ou VASPR) deve realizar uma segunda dose com um intervalo mínimo de quatro semanas entre as doses; se houver registo de duas doses (VAS ou VASPR) ou história credível de Sarampo, não é necessária qualquer atitude adicional por parte do médico do trabalho.
Apesar da determinação de anticorpos não ser necessária para a tomada de decisão vacinal, se esta for positiva, não é necessária a administração de mais doses de vacina (2).
A vacinação é contraindicada na gravidez e as PS em idade fértil devem evitar a gravidez até um mês depois da administração da VASPR (2) (8).
Investigação de surto
Define-se como contacto qualquer pessoa que tenha partilhado o mesmo espaço por qualquer período de tempo ou que tenha estado na mesma sala de espera ou consultório nos trinta minutos após a saída de um doente em fase de contágio (2).
Os PS expostos deverão ser identificados pela Direção do Serviço em articulação com o Serviço de Saúde Ocupacional (SSO) e a Unidade de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistências aos Antimicrobianos (UPCIRA).
Todos os casos devem ser participados através da plataforma Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).
Profilaxia pós-exposição
Em situação de pós-exposição, deve ser avaliado o estado vacinal do contacto e apenas devem ser administradas as doses vacinais necessárias para atingir as duas doses requeridas.
A vacinação pós-exposição é sempre urgente e tem como objetivo garantir a proteção dos contactos suscetíveis e interromper cadeias de transmissão (2). Se administrada até às setenta e duas horas após exposição, pode prevenir a doença ou, se esta ocorrer, terá habitualmente um curso mais benigno. Após as setenta e duas horas, não evita o Sarampo consequente à exposição ocorrida, se já tiver havido contágio. No entanto, aos contactos que não foram contagiados, confere imunidade para exposições futuras. Tem, portanto, um efeito benéfico em termos de saúde pública na prevenção de casos terciários.
As grávidas e os indivíduos com imunodepressão grave (quadro 1) representam contraindicações para a realização da vacina, pelo que devem receber a IG nos seis dias após a exposição. De facto, pacientes com imunodepressão grave e com história de exposição ao vírus do Sarampo devem receber a IG independentemente do status vacinal ou imunológico, uma vez que podem não se encontrar protegidos pela vacina. É de salientar que, neste caso, não se deve administrar a VASPR nos seis meses consequentes a terem recebido a IG (2) (9).
IMUNODEPRESSÃO GRAVE |
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Imunossupressão grave não farmacológica: Leucemia/linfoma ativo; Neoplasia metastizada; Anemia aplásica; Doença do enxerto-versus-hospedeiro; Imunodeficiências congénitas; Cancro sob quimioterapia/radioterapia ou cujo último ciclo de quimioterapia terminou há menos que três meses; História de transplante de medula óssea inferior a dois anos. Imunossupressão grave farmacológica: Prednisolona em dose superior a 20mg/dia por mais de duas semanas; Doentes sob efeito de agentes alquilantes (ciclosporina), antimetabolitos (azatioprina, 6-mercaptopurina), imunossupressores relacionados com a transplantação, quimioterápicos (exceto tamoxifeno), agentes anti-TNF ou outros agentes biológicos. |
Existe um grupo particular de doentes que merece especial atenção, nomeadamente os que suspenderam corticoterapia há mais que um mês, terminaram quimioterápicos há mais que três meses ou em que a última toma de agente biológico tenha ocorrido há mais que seis meses, nos quais deve ser ponderada a administração de VASPR em situação de pós-exposição (2).
Aptidão para o trabalho
Em situação de pós-exposição, os PS com registo de duas doses da vacina VAS ou VASPR após os doze meses de idade (intervalo mínimo entre doses de quatro semanas), história credível de Sarampo ou evidência laboratorial de imunidade, que contactem com doentes infetados, não necessitam de realizar profilaxia pós-exposição, nem de evicção laboral. Devem monitorizar diariamente sinais e sintomas de Sarampo durante vinte e um dias após a última exposição.
Os PS sem registo vacinal disponível e sem história credível de Sarampo ou evidência laboratorial de imunidade devem ser afastados do posto laboral desde o quinto dia após a primeira exposição até ao vigésimo primeiro dia após a última exposição. Devem também realizar profilaxia pós-exposição.
No caso de o PS ter recebido a primeira dose da vacina previamente à exposição, poderá permanecer no posto de trabalho e deve completar o esquema vacinal (pelo menos quatro semanas após a primeira dose). Neste caso, deve ser realizada vigilância ativa de sinais e sintomas até vinte e um dias após o último contacto.
Os PS com diagnóstico de Sarampo devem permanecer afastados do posto de trabalho até quatro dias após o aparecimento do exantema maculopapular. Nos indivíduos imunodeprimidos, o período de evicção laboral é estendido até resolução do quadro clínico (2) (10).
CONCLUSÃO
O Sarampo é uma das doenças infeciosas mais contagiosas. Na maioria dos casos é benigna, mas pode apresentar um quadro clínico grave e potencialmente fatal. Por este motivo, é fundamental a existência de planos de atuação bem definidos nas instituições hospitalares com o objetivo de evitar ou conter potenciais surtos, minimizando a ocorrência de cadeias de transmissão intra-hospitalares e o contágio subsequente de pessoas com maior risco de complicações decorrentes da doença. Todos os esforços devem-se dirigir no sentido do diagnóstico precoce de novos casos de Sarampo para se dar início à investigação epidemiológica e instituição de medidas preventivas eficazes. Como perspetiva futura, o protocolo apresentado poderá ser disponibilizado na intranet hospitalar, de forma que todos os PS o possam consultar, garantindo assim uma intervenção rápida e eficaz perante um novo caso de infeção, bem como os seus contactos.