INTRODUÇÃO
A Diabetes Mellitus (DM) é uma doença metabólica crónica, caracterizada por hiperglicemia, cuja incidência mundial aumentou nas últimas décadas. Estima-se uma prevalência global de 463 milhões de casos em adultos (9% da população mundial entre os 20-79 anos), com cerca de 374 milhões já com alterações da glicemia em jejum ou da tolerância à glicose, a denominada "pré-diabetes" ou hiperglicemia intermédia, sendo que cerca de 75% destes estão em idade ativa. Além disso, estima-se que a prevalência da DM1 seja superior a um milhão em crianças com idade inferior a 14 anos. Os custos para o sistema de saúde das cinco milhões de mortes associadas à DM estão estimados entre 760 mil milhões de dólares. Se a tendência se mantiver em 2045, teremos cerca de 700 milhões de casos globais de DM (1).
Segundo dados do Observatório Nacional da Diabetes, em 2018, a prevalência estimada da DM na população portuguesa com idades compreendidas entre os 20 e os 79 anos (7,7 milhões de indivíduos) foi de 13,6% (2). Este cenário traduz-se, naturalmente, num elevado número de trabalhadores com DM, submetidos periodicamente a exames de aptidão para o trabalho.
A avaliação de um trabalhador com DM pelo Médico do Trabalho (MT) poderá ocorrer na admissão num novo emprego, mas também em exames periódicos ou ocasionais, podendo estes últimos ser motivados pelo diagnóstico de novo, por ausência prolongada por doença ou acidente de trabalho (AT) (3), eventualmente relacionados com a doença. Não devem ser colocadas limitações a priori ao trabalhador com DM, devendo a abordagem ser individualizada, com as limitações reservadas para os que não atingirem o controlo glicémico ou desenvolverem complicações (4) (5).
O MT poderá ter também um papel no diagnóstico precoce da DM2 através de rastreio de trabalhadores assintomáticos, que apresentem outros fatores de risco (6). Assim, é fundamental que este conheça a doença e respetiva abordagem terapêutica para deliberação fundada sobre a aptidão destes trabalhadores para as tarefas designadas (7). Este conjunto de competências revela-se especialmente importante se considerarmos os dados epidemiológicos globais, que apontam para um enorme aumento da prevalência da DM nas próximas décadas.
Este documento resume as potenciais implicações da farmacoterapia anti-hiperglicémica em contexto ocupacional e poderá servir como guia para o MT que avalie a aptidão de trabalhadores com DM.
Considerações legais
A Constituição da República Portuguesa consagra a todos o direito ao trabalho digno e em condições de Higiene, Saúde e Segurança (8). Já o Código do Trabalho garante o direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho, não podendo o trabalhador com doença crónica ser discriminado no exercício deste direito (9).
A Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, refere como obrigação do empregador, relativamente à prevenção dos riscos profissionais, assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde no trabalho (3). O trabalhador com doença crónica é dispensado da prestação de trabalho, entre as 20h de um dia e as 7h do dia seguinte, se esta puder prejudicar a sua Saúde ou Segurança no trabalho, não sendo ainda obrigado à prestação de trabalho suplementar (9).
As normas mínimas relativas à aptidão para a condução de veículo a motor nas pessoas com DM estão descriminadas na legislação, resumindo-se o seguinte: na avaliação de aptidão de trabalhadores para condução de veículos do grupo 1 (categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE; ciclomotores e tratores agrícolas) é emitido ou revalidado o título de condução, mediante apresentação de relatório do médico assistente que ateste o acompanhamento regular, bom controlo metabólico e a capacidade do trabalhador para gestão da doença. A revalidação do título deve realizar-se a cada cinco anos e é determinado inapto para condução quem apresentar hipoglicemia grave (episódio que necessita de assistência de terceiros), recorrente (pelo menos dois episódios de hipoglicemia grave num período de doze meses) e/ou quem demonstre não ter capacidade de reconhecer e gerir a hipoglicemia. Para a condução de veículos do grupo 2 (categorias C1, C1E, C, CE, D1, D1E, D e DE; ou categorias B e BE que exerçam a condução de ambulâncias, veículos de bombeiros, de transporte de doentes, de transporte escolar, de transporte coletivo de crianças e de automóveis ligeiros de passageiros de aluguer) terão de apresentar relatório do médico assistente com os mesmos requisitos, acrescidos da declaração da não ocorrência de qualquer episódio de hipoglicemia grave nos doze meses prévios e de que não existem outras complicações associadas à diabetes. Estes condutores devem revalidar o título de condução a cada três anos (10).
A ficha de aptidão não pode conter elementos que envolvam o segredo profissional médico (informação clínica especialmente sensível) (3). Contudo, ao comunicar de modo cuidadoso, claro e sucinto as recomendações, condicionalismos ou limitações profissionais, permite estabelecer uma ponte para a implementação das medidas que previnem o agravamento da DM em consequência do trabalho, assim como a potencial melhoria do controlo da doença e a prevenção de complicações nos órgãos-alvo. Olhando ao acima descrito, dado o curso/controlo variável da doença e a infinidade de tarefas/profissões existentes, recomenda-se uma abordagem individualizada, em articulação com o médico assistente do trabalhador com DM.
O TRABALHADOR COM DIABETES MELLITUS
Diabetes mellitus
A DM é uma doença metabólica crónica, caracterizada por disfunção do metabolismo glucídico, condicionando hiperglicemia. Resulta de uma deficiência na secreção e/ou ação periférica da insulina, a qual pode conduzir a complicações agudas e/ou crónicas, micro e/ou macrovasculares. A insulina é sintetizada e secretada pelas células beta dos ilhéus de Langerhans do pâncreas e atua como promotora da captação celular de glicose e como reguladora da neoglicogénese hepática, entre outras funções. A DM pode classificar-se em DM1, DM2, diabetes gestacional ou outros tipos específicos de DM, do qual é exemplo a diabetes monogénica (6).
Na DM tipo 1 (DM1), existe uma destruição autoimune da célula beta pancreática, com consequente insulinopenia absoluta e necessidade de tratamento substitutivo ad eternum com insulina. A DM tipo 2 (DM2) carateriza-se por insulinorresistência, frequentemente associada a insulinopenia relativa e está geralmente associada a outros fatores de risco cardiovascular, como o sedentarismo ou a obesidade (11) O trabalho por turnos, sobretudo noturnos, está também associado a um aumento da resistência à insulina, por provável desregulação de ritmos circadianos (4) (12), podendo levar ao desenvolvimento da DM ou dificultar o controlo glicémico, apesar da adesão terapêutica. A diabetes gestacional aumenta o risco de a mulher desenvolver DM2 no futuro (13), devendo ser reforçada a vigilância neste contexto e promovidas medidas de estilo de vida saudável.
A distinção clássica entre DM1 em crianças e DM2 em adultos com excesso de peso está desatualizada, podendo a DM1 e outros tipos de DM surgir na idade adulta. Já um diagnóstico de DM2 num doente normoponderal, deve motivar investigação relativa ao tipo de DM, assim como em casos não responsivos à terapêutica, em que se objetivem sintomas de insulinocarência, anticorpos anti-célula beta ou elevação de corpos cetónicos (14).
Deve suspeitar-se do diagnóstico na presença de sintomas de insulinocarência- polifagia, polidipsia e poliúria, que podem ou não ser acompanhados de perda de peso, visão turva e astenia. No estado hiperglicémico da DM, a insulina circulante/produzida não é suficiente para assegurar a captação celular e a glicose é excretada na urina, aumentando a diurese e privando o organismo de uma importante fonte de energia. Infeções urinárias ou da pele recorrentes poderão ser sinais de hiperglicemia. A presença de corpos cetónicos (cetonemia igual ou superior a 0,6 mmol/L) indica níveis de insulina tão baixos, em que o organismo não consegue metabolizar a glicose, obtendo energia através da degradação de ácidos gordos. Na DM2, o diagnóstico pode passar despercebido ao longo de vários anos, já que habitualmente é assintomática (15). O diagnóstico de DM é realizado com base em critérios de glicemia plasmática (em jejum ou duas horas após a administração de 75g glicose) ou de HbA1c. Na ausência de hiperglicemia inequívoca, o diagnóstico requer dois testes alterados na mesma amostra ou em amostras distintas (6) Os métodos disponíveis para diagnóstico de DM e pré-diabetes estão resumidos na tabela 1.
Diagnóstico de DM | Diagnóstico de pré-diabetes | |
---|---|---|
Glicemia em jejum | ≥ 126 mg/dL | ≥ 100 mg/dL |
Glicemia às 2h na PTGO | ≥ 200 mg/dL | ≥ 140 mg/dL |
HbA1c | ≥ 6,5 % | ≥ 5,7 % |
Glicemia ocasional com sintomas | ≥ 200 mg/dL | N.A. |
O tratamento da DM passa pela adoção de medidas de estilo de vida saudável em associação à farmacoterapia anti-hiperglicémica, cujo principal objetivo é a obtenção de um adequado controlo glicémico, com vista à prevenção da ocorrência das complicações associadas ou atraso da sua progressão (16).
Complicações da DM e implicações no trabalho
Independentemente do tipo de DM, a hiperglicemia pode traduzir-se em sintomas agudos, com evolução de horas a dias, como mal-estar geral, astenia, alterações gastrointestinais, cefaleias, sintomas de insulinocarência ou visão turva. Se não adequadamente tratados, podem evoluir para situações particularmente perigosas para o trabalhador com DM, como a cetoacidose diabética (CAD) ou o estado hiperosmolar hiperglicémico. Estas situações carecem de atendimento médico urgente, uma vez que são potencialmente fatais se não adequadamente tratadas (4).
A hiperglicemia crónica pode causar complicações microvasculares (retinopatia, neuropatia, nefropatia) e/ou macrovasculares (doença vascular periférica/cerebrovascular, cardiopatia isquémica), com importantes implicações na capacidade de trabalho (17) (18).
A neuropatia diabética pode apresentar-se de várias formas. A versão autonómica pode ser incapacitante, pela hipotensão ortostática e/ou gastroparésia. A neuropatia periférica sensitiva pode alterar a perceção térmica (19), podendo causar, em condições adversas, lesões graves das extremidades (queimaduras), principalmente, quando cobertas pelo equipamento de proteção individual (EPI), como luvas e botas que não permitem a visualização de alterações tróficas de alerta. A neuropatia condiciona, também, a aptidão para tarefas que impliquem boa discriminação tátil/vibratória, movimentos finos e/ou capacidade propriocetiva, colocando o trabalhador em maior risco de sofrer acidente de trabalho (AT) envolvendo quedas, lesões por máquina perigosa ou traumatismo por queda de ferramentas de trabalho (20).
A retinopatia diabética evolui com alterações visuais (19), podendo culminar em amaurose. Isto limitará fortemente o trabalhador na maioria das suas tarefas (14), nomeadamente na condução, nas tarefas que impliquem prestação de cuidados a outrem ou na manipulação de máquinas/instrumentos de trabalho. A doença renal diabética pode evoluir para doença renal crónica (DRC) com possível progressão para DRC terminal com necessidade de terapêutica de substituição renal (TSR), transplante renal ou diálise. A TSR condicionará o trabalhador pela necessidade de realização periódica de diálise (19). É ainda importante ter em conta o risco acrescido de infeção, condicionado pela imunossupressão associada ao transplante (21), ou ainda, pela realização de diálise peritoneal (22). A nefropatia pode, ainda, ser agravada pela exposição profissional a diversos agentes químicos nefrotóxicos (19) (23), pelo que deve ser tomada cautela na avaliação destes trabalhadores. A DM foi ainda inconsistentemente associada ao declínio da capacidade cognitiva, com demonstração de perda ligeira em doentes com idade superior a 60 anos (17). A doença vascular periférica pode causar incapacidade por intolerância ao esforço ou por evolução com feridas crónicas, com potencial necessidade de amputação (25). Condiciona dificuldade na locomoção, necessidade de uso de ajudas técnicas, à qual acresce a eventual colocação de material protésico e reabilitação fisiátrica. Nestes trabalhadores com doença neuropática (“pé diabético”) que afeta os membros inferiores é necessário especial cuidado na escolha do EPI, principalmente do calçado, que deverá ser confortável de modo a não originar ou agravar as lesões (26).
A doença cerebrovascular e a cardiopatia isquémica podem condicionar incapacidades absolutas para o trabalho após evento agudo ou também a tolerância a tarefas que exijam esforço físico como a manipulação manual de cargas (27).
Outros fatores de risco, como o tabagismo, dislipidemia e hipertensão arterial, contribuem, sinergicamente, para o aparecimento precoce de várias destas complicações (11), que condicionam visitas médicas ou a cuidados de saúde frequentes, ausências laborais prolongadas e eventuais incapacidades permanentes para o trabalho (17). Os exames de aptidão para o trabalho são oportunidades úteis de educação para a saúde, reforço da importância da adesão terapêutica e da prática de um estilo de vida ativo e saudável, principalmente, na DM2.
As complicações agudas da DM incluem ainda a hipoglicemia, que será a que terá maior interferência na atividade profissional (14). Esta define-se como glicemia inferior a 70 mg/dL e pode ser um efeito adverso de algumas das classes farmacológicas utilizadas, nomeadamente da insulina e das sulfonilureias. A maior parte das pessoas com DM consegue detetar alterações subtis para valores de glicemia ligeiramente diminuídos, conseguindo realizar a autovigilância e adequada correção da glicemia. Nestas apresentações ligeiras, sintomas adrenérgicos, como ansiedade, hipersudorese, tremor e palpitações, são comuns. Estes trabalhadores apresentam, portanto, um risco relativamente baixo de incapacitação, caso disponham de todo o material necessário para a confirmação e tratamento da hipoglicemia. No entanto, existem casos em que a perceção para as hipoglicemias se perde, especialmente quando existem de forma recorrente. Até 5% dos episódios são graves, com sintomas neuroglicopénicos, como alterações visuais, tonturas e alteração do estado de consciência (5). Nestes casos, a incapacidade de reconhecimento dos sintomas por parte do trabalhador pode conduzir a uma situação de incapacitação temporária. As alterações da cognição podem levar a uma errada categorização do risco e sobrestima do nível de segurança, colocando o próprio e, eventualmente, terceiros em risco (14).
Trabalhadores tratados com fármacos com risco de hipoglicemia devem dispor, constantemente, de forma de monitorização da glicose (28). Para corrigir uma hipoglicemia, os trabalhadores tratados com insulina ou sulfonilureias devem dispor sempre de produtos que contenham glicose e, em casos indicados, dispositivos de administração de glucagon - intramuscular ou intranasal (5). Apesar de a maioria dos episódios serem ligeiros, os sintomas graves incapacitam o trabalhador e necessitam de apoio de terceira pessoa para correção. Assim, pessoas com DM sem perceção para hipoglicemias não devem trabalhar isoladas, manipular máquinas ou instrumentos de trabalho perigosos, laborar em altura ou em planos desnivelados, nem conduzir profissionalmente (10) (29). É importante que pessoas próximas ao trabalhador sejam educadas para a gestão das hipoglicemias graves no caso de incapacitação dos mesmos, incluindo manuseamento de dispositivos para administração de glucagon, caso esteja indicado. Após um evento de hipoglicemia, mesmo nos casos assintomáticos, o trabalho deve ser interrompido, considerando um período de recuperação mínimo de quarenta e cinco minutos (14).
Terapêutica anti-hiperglicémica
O tratamento farmacológico da DM pode interferir com a capacidade de trabalhar, devido às características farmacodinâmicas ou efeitos adversos, devendo estes ser investigados no exame de aptidão para o trabalho. De seguida descrevem-se as diversas classes terapêuticas e potenciais implicações no trabalho.
Fármacos com alto risco de hipoglicemia
Insulina
O contexto de insulinopenia absoluta verificado na DM1 requer terapêutica substitutiva com insulina, sendo o gold-standard o tratamento com sistema de infusão subcutânea contínua de insulina (ISCI) (30). Porém, muitas pessoas com DM1 estão medicadas com insulina basal e insulina prandial (bolús) - esquema basal-bólus, quer por preferência pessoal ou do clínico, quer face à incapacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) comparticipar o tratamento com ISCI a todas as pessoas com DM1. Determinados utentes encontram-se medicados com insulina em pré-mistura. Algumas pessoas com DM2 e outros tipos de DM estão, também, medicadas com insulina, mais frequentemente sob regimes diferentes daqueles verificados na DM1, usando habitualmente insulina basal (31). Em ambulatório, a insulina é administrada por via subcutânea: por via de caneta pré-cheia, em cartucho para canetas reutilizáveis ou através de sistemas de ISCI.
O aparecimento da insulina degludec, uma insulina basal administrada uma vez por dia, sem hora fixa (32) permite maior flexibilidade de administração pelo trabalhador, ao contrário das outras insulinas basais (insulinas isofânica, detemir e glargina), que devem ser administradas à mesma hora (31). Sendo assim, a insulina degludec poderá ser especialmente útil nos trabalhadores que trabalham por turnos.
A insulina de ação rápida, administrada antes das refeições ou isoladamente como bólus corretor, requer cuidados específicos, visto que em muitas situações a quantidade de insulina administrada depende do valor de glicose, dos alimentos ingeridos e de eventuais setas de tendência, que em alguns dispositivos indicam a direção e velocidade da alteração dos níveis de glicose tendo em consideração os dados recolhidos nos vinte a trinta minutos anteriores à medição (33). A administração de insulina rápida (insulina humana regular, insulina aspártico, insulina lispro e insulina glulisina) deve anteceder a refeição de acordo com tempo pré-determinado em conjunto com Médico Assistente, frequentemente dez a quinze minutos, mas variável tendo em conta a glicemia, pelo que este timing deve ser tido em conta para atingir o controlo glicémico adequado (29). O surgimento de novos análogos de insulina ultra-rápidos (insulina aspártico ultra-rápida e insulina lispro ultra-rápida) pode facilitar determinados casos, visto que existem inclusivamente estudos que atestam a sua eficácia quando administrados imediatamente antes do início da refeição (34) (35), não sendo necessário o tempo de espera atrás referido, que pode ter interferência com horários de trabalho.
A insulinoterapia acarreta desafios especiais no local de trabalho, apesar de se terem verificado alguns avanços nos últimos tempos. Enquanto fármaco biológico, a insulina carece de condições de armazenamento próprias. Deve ser guardada no frigorífico (2 a 8ºC) antes da primeira utilização e, após, não deve ser submetida a temperaturas extremas, não podendo ultrapassar os 30ºC, sob pena de degradação (36). Nos bólus, a quantidade de insulina administrada é calculada em função da composição da refeição e do valor de glicemia ou glicose intersticial e eventual seta de tendência (29) (33) (37)
Relativamente aos eventos adversos, o mais comum e com maior implicação na atividade profissional é, sem dúvida, a hipoglicemia, que ocorre quando a dose de insulina administrada é superior às necessidades. A capacidade de as reconhecer e gerir, bem como a frequência com que acontecem, são fatores fundamentais na avaliação da aptidão do trabalhador. Não obstante, a maioria ser ligeira e passível de correção, as graves podem resultar em alteração do estado de consciência e da cognição, colocando em risco o próprio e terceiros (14).
O trabalhador com DM sob insulinoterapia encontra frequentemente dificuldades na gestão da doença no emprego. Apesar dos avanços, o esquema basal-bólus necessita de múltiplas administrações diárias, muitas vezes a todas as refeições, com monitorização prévia da glicose (16). Deste modo, os trabalhadores que administrem insulina no horário de trabalho devem realizar pausas compatíveis com a prescrição dietética e dispor de local recatado para administração da insulina, com adequadas condições de higienização das mãos. Deverão ainda dispor de condições para armazenamento seguro da insulina, especialmente em tarefas/profissões que impliquem exposição a extremos térmicos (37). Nos casos tratados com insulinoterapia funcional, a quantidade de insulina administrada em bólus depende da composição da refeição e é calculada pela pessoa em função do teor de hidratos de carbono e/ou, por vezes, de outros macronutrientes (16). Este processo exige grande esforço e educação para a DM, sendo facilitador para o trabalhador a existência da informação nutricional detalhada nas áreas de refeição e cantinas adstritas ao local de trabalho.
Os trabalhadores tratados com insulina devem transportar consigo o glicómetro e dispor sempre de produtos que contenham glicose, para corrigir uma eventual hipoglicemia. No caso do trabalhador cuja tarefa implique condução de veículos ou máquinas, é importante a medição da glicose antes da viagem e a realização de pausas regulares para avaliação da glicose, com eventual ingestão alimentar (29,37), principalmente em viagens prolongadas. Hipoglicemias recorrentes condicionam uma perda progressiva da capacidade para reconhecer sintomas e, consequentemente, maior risco para o trabalhador (38).
Sistemas de infusão subcutânea contínua de insulina - “bombas” de insulina
A utilização de ISCI tem vindo a aumentar no panorama nacional, com o número de pessoas com DM sob este tipo de tratamento a crescer de ano para ano. Estes sistemas contêm insulina de ação rápida que é administrada de forma contínua, de acordo com o definido na programação do dispositivo. O dispositivo eletrónico é aplicado diretamente na superfície corporal ou entrega a insulina através de um cateter. A possibilidade de definir ritmos de infusão diferentes de acordo com a hora do dia torna este método mais fisiológico, pelo que se torna o método de eleição para tratamento substitutivo na DM1. Permite, ainda, uma maior liberdade aos utilizadores, dado que podem alterar a quantidade de insulina administrada em situações de exercício ou de doença aguda e diminuem drasticamente a quantidade de injeções diárias necessárias, fazendo bólus através da “bomba” quando se alimentam (39). Já existem sistemas híbridos em closed-loop que permitem a comunicação do sistema de ISCI com um dispositivo de monitorização contínua com ajustes automáticos da quantidade de insulina basal administrada (40). A eventual disfunção mecânica do dispositivo, pode levar à interrupção do fornecimento de insulina, resultando em hiperglicemia e, em casos extremos, em cetoacidose diabética (41). Para acautelar esta situação os trabalhadores devem dispor de formas de monitorização de glicose e de correção alternativa nas eventuais hiperglicemias, como uma caneta de insulina ou outro conjunto de consumíveis para troca do sistema de ISCI.
Em contexto laboral, estes sistemas trazem vantagens claras em comparação com o tratamento através de múltiplas injeções diárias por caneta de insulina (42). Desde logo, a simplificação da administração de insulina é evidente, obviando a necessidade de injeção subcutânea antes de todas as refeições ou quando é feito um bólus corretor, bastando introduzir na “bomba” ou em dispositivos móveis a quantidade de insulina a administrar, muitas vezes calculada automaticamente. Outra vantagem é a capacidade de redução de insulina administrada em situações de trabalho com alto dispêndio energético, sendo que os trabalhadores podem reduzir, temporariamente, a taxa de infusão contínua de insulina antecipando uma atividade mais intensa (4) (37).
As limitações da ISCI no trabalho prendem-se com o facto de a insulina estar continuamente acoplada ao corpo do utilizador, condicionando, por exemplo, a realização de trabalho em condições de submersão/elevada humidade relativa ou em temperaturas extremas. O dispositivo eletrónico pode não ser impermeável e a insulina poderá ser degradada pelo calor (37) ou frio (36). Os sistemas de ISCI representam um avanço importante no tratamento de trabalhadores com DM1 (39) (40), contudo, podem conter partes móveis que devem estar adequadamente acondicionadas, de modo a não facilitar a ocorrência de AT.
Sulfonilureias e Outros Secretagogos da Insulina
As sulfonilureias e as glinidas atuam ao estimular a secreção de insulina pela célula beta pancreática de forma glicose-independente, sendo ambas as classes farmacológicas potencialmente causadoras de hipoglicemia (43). As glinidas (nateglinida) têm uma expressão de utilização residual em Portugal, observando-se na prática clínica apenas em alguns doentes tratados em países estrangeiros. Por outro lado, as sulfonilureias (gliclazida, glimepirida, glipizida, glibenclamida) continuam a ser amplamente utilizadas na DM2, apesar da orientação por parte de guidelines internacionais para o uso preferencial de outras classes farmacológicas em várias situações (16) (44). Tendo em conta o potencial de hipoglicemia, os trabalhadores que estejam medicados com estes fármacos devem fazer-se acompanhar de método de determinação de glicose em todas as circunstâncias (14). Trabalhadores com dificuldade em controlar a glicemia e sem sintomas de alerta para hipoglicemias devem ser condicionados nas tarefas descritas anteriormente. Em caso de trabalho com alto dispêndio energético a monitorização de glicose deve ser feita de forma regular e, em caso de hipoglicemia ou de tendência para tal, a atividade deve ser interrompida, com correção da glicemia (16). Dado o potencial para hipoglicemia e aumento de peso, e tendo em conta a existência de várias classes farmacológicas para o tratamento de DM disponíveis, as sulfonilureias não são os fármacos de eleição para trabalhadores com DM (14).
Fármacos com baixo risco de hipoglicemia
Metformina
A metformina é um fármaco da classe das biguanidas que atua como insulinossensibilizador, sendo o agente farmacológico de primeira linha na DM2 (17) (41). Pode causar efeitos adversos gastrointestinais, especialmente no início da sua utilização, podendo associar-se a deficiência de vitamina B12, pelo que a monitorização clínica e analítica periódica está recomendada (45). A acidose láctica associada à metformina é uma entidade rara, mas potencialmente fatal, pelo que está contraindicada a utilização para taxa de filtração glomerular inferior a 30 mL/min/1.73m2 (19).
Incretinas
Os agonistas do recetor do glucagon-like peptide-1 (ARGLP-1) e os inibidores da dipeptidil peptidase-4 (iDPP4) exercem o seu efeito anti-hiperglicémico através de vários mecanismos, incluindo o atraso do esvaziamento gástrico, diminuição do apetite ou aumento de secreção de insulina de forma glicose-dependente. Os iDPP4 (sitagliptina, vildagliptina, linagliptina, alogliptina, saxagliptina) têm vindo a ser, progressivamente, menos utilizados, tendo em conta a evidência recente relativa aos ARGLP-1 (liraglutido, exenatido, dulaglutido, semaglutido) (46). Estes demonstraram benefícios quer na doença aterosclerótica (36) (38), quer na redução de peso (50) (51), sendo que o liraglutide se encontra, inclusivamente, aprovado como tratamento médico de obesidade.
Apesar de serem fármacos relativamente seguros, os eventos adversos mais frequentes e que podem ter impacto no trabalho são os gastrointestinais (diarreia, náuseas, vómitos) e tendem, habitualmente, a melhorar ao longo do tempo. A utilização de formulações em doses progressivamente maiores, permite a titulação do fármaco com melhoria desta sintomatologia (46). Um efeito adverso dos iDPP4 particularmente importante nos trabalhadores é a artralgia, que em certos casos pode ser grave e incapacitante- recomenda-se a sua suspensão nestas situações (52) (53). Por fim, outro efeito adverso que pode ser notado no exame de aptidão para o trabalho é o aumento da frequência cardíaca, ainda que discreto (54).
Os ARGLP-1 disponíveis em Portugal, neste momento, são administrados sob a forma de injeção subcutânea diária ou semanal (51). No entanto, já existe uma formulação oral do semaglutide (52) noutros países, pelo que se prevê que possa vir a estar disponível em breve em Portugal.
Inibidores do SGLT2
Os inibidores do co-transportador sódio-glicose 2 (iSGLT2) são outros dos fármacos cuja utilização aumentou nos últimos anos devido ao surgimento de nova evidência, nomeadamente ao nível da doença cardiovascular (44) (45), da insuficiência cardíaca (54) (55) e da doença renal diabética (48) (49). Os iSGLT2 (empagliflozina, dapagliflozina, canagliflozina, ertugliflozina), ao inibirem o referido transportador, provocam glicosúria, tendo assim propriedades anti-hiperglicémicas (58). As infeções micóticas genitais são os eventos adversos mais frequentes destes fármacos (64), contudo, terão uma interferência limitada no trabalho. Por outro lado, a cetoacidose diabética (por vezes euglicémica) (65) ou a depleção de volume (66), poderão exigir maiores cuidados. Além da aprovação da DM2, a dapagliflozina esteve, até outubro de 2021, aprovada no tratamento da DM1, tendo sido retirada a indicação pelo elevado risco de cetoacidose (67). Como tal, além da capacidade de monitorização de glicose, os trabalhadores com DM1 tratados com este fármaco devem dispor de formas de monitorização de cetonemia. Um programa de estudos envolvendo a canagliflozina apontou para um aumento do risco de fraturas ósseas e amputação dos membros inferiores (57), pelo que se aconselha precaução nestas situações. Trabalhadores medicados com iSGLT2 que exerçam funções com exposição ao calor (4) ou ambientes com vento ou baixa humidade relativa, devem ser cuidadosamente informados dos riscos da depleção de volume e alertados para o aumento da probabilidade de desidratação, bem como das medidas a tomar para a prevenir e as complicações associadas.
Pioglitazona
A pioglitazona pertence ao grupo das tiazolidinedionas e tem uma ação insulinossensibilizadora (68). Tem como efeito adverso importante a retenção hídrica com potencial ganho de peso e agravamento de insuficiência cardíaca. Foi demonstrado um aumento do risco de fratura com este fármaco, especialmente em mulheres (69). No entanto, tendo demonstrado reduzir eventos cardiovasculares (70), continua a ser uma arma terapêutica a considerar.
Acarbose
A acarbose, ao inibir a α-glucosidade intestinal, atrasa a digestão de hidratos de carbono complexos e consequente absorção de glicose (71). Porém, dado o seu efeito anti-hiperglicémico modesto e a elevada taxa de eventos adversos gastrointestinais (flatulência, diarreia e desconforto abdominal) (72), a sua utilização é cada vez mais infrequente.
Monitorização da glicose
O controlo glicémico pode ser avaliado pela hemoglobina glicosilada (HbA1c), pela autovigilância da glicemia capilar (AVG), ou pela utilização de dispositivos de monitorização de glicose intersticial (MGI), que podem ser contínuos ou intermitentes. O método clássico de AVG compreende a punção digital com uma lanceta e consequente utilização do sangue, através de tira-teste, para determinação de glicemia num glicómetro. A MGI envolve um sensor de aplicação subcutânea e um leitor do mesmo ou um smartphone com capacidade de leitura através de uma aplicação compatível que concretize essa função.
A HbA1c reflete a glicemia média nos três meses prévios e é a métrica mais utilizada para demonstração dos benefícios do adequado controlo glicémico (73). Como tal, é realizada por rotina na maioria das pessoas com DM, regra geral, tri ou semestralmente, para avaliação pelo Médico Assistente (74). Existem algumas situações, de que são exemplo as hemoglobinopatias ou DRC, em que este método é menos fiável (6), devendo-se privilegiar outras formas de avaliação. De qualquer modo, a HbA1c representa apenas uma média, não fornecendo informação relativa à existência de hipoglicemia (73).
A AVG e a MGI, para além de fornecerem informação mais detalhada ao clínico, são frequentemente utilizadas pelas pessoas com DM para decisão terapêutica. São, ainda, utilizadas em situações especiais como quando surgem sintomas sugestivos de hipo ou hiperglicemia (75). Como tal, os trabalhadores com DM que tenham indicação para monitorizar os valores de glicose, por necessidade de informação complementar para decisão terapêutica ou utilização de fármacos com risco de hipoglicemia, devem fazer-se acompanhar de dispositivo para o efeito. Para os trabalhadores que realizam AVG, são necessários glicómetro com lancetas e tiras-teste para determinação de glicemia (14). Na MGI, o trabalhador porta um sensor continuamente acoplado ao corpo, habitualmente, localizado na região posterior do braço ou na zona abdominal, e deve fazer-se acompanhar de leitor deste dispositivo, podendo ser o próprio glicómetro ou um smartphone. Alguns dispositivos de MGI têm a opção de ativação de alarmes para valores de glicose baixa e/ou alta, opção especialmente útil em trabalhadores com falta de perceção para hipoglicemia e na realização de trabalho com alto dispêndio energético (42). Alguns sistemas de ISCI comunicam com dispositivos de MGI e suspendem automaticamente a infusão de insulina quando é previsível a ocorrência de hipoglicemia. Outros, mais sofisticados, alteram automaticamente a quantidade de insulina administrada para alcançar a normoglicemia (40). A utilização destes sistemas tende a ser progressivamente maior, o que facilitará a gestão da DM1 no trabalhador.
CONCLUSÃO
A DM é uma doença comum, que condiciona um importante impacto psicológico, físico, financeiro e social, e cuja prevalência mostra tendência crescente, principalmente da DM2.
Fora comum, em tempos, estigmatizar trabalhadores em função deste diagnóstico. Contudo, ter DM não é sinónimo de inaptidão para o trabalho, independentemente de necessitar de insulina. Estes trabalhadores merecem especial atenção por parte do MT, uma vez que a avaliação do impacto do trabalho e a correção dos fatores agravantes, são intervenções fundamentais para manutenção, quer do adequado controlo da doença, quer da segurança do trabalhador e de terceiros.
O controlo glicémico, pela adesão terapêutica, aliado às modificações do estilo de vida e correção dos fatores de risco modificáveis, assume o papel central no controlo da DM e na prevenção de complicações, que poderão afetar gravemente a capacidade de trabalho. Apesar do esforço para controlar a DM, é frequente os trabalhadores relatarem as dificuldades que encontram no local de trabalho para a manutenção das recomendações dietéticas e até na possibilidade de cumprimento terapêutico. Características do trabalho podem afetar, por si só, o controlo metabólico, como é o caso da realização de trabalho por turnos e em período noturno ou a exposição a agentes químicos ou biológicos. A segurança do trabalhador pode ficar gravemente comprometida nos episódios de hipoglicemia, que poderão, inclusivamente, resultar de iatrogenia na terapêutica da DM.
A capacidade para reconhecer e gerir uma hipoglicemia, bem como a frequência com que acontece, são fatores fundamentais na verificação da aptidão do trabalhador com DM. Apesar de a maioria não ter limitação funcional e ser capaz de desempenhar as suas tarefas, alguns poderão necessitar de adaptações no local de trabalho ou de condicionar tarefas, para conseguir controlar a doença e diminuir o risco de AT.
Com o surgimento de novos fármacos, novas formas de monitorização de glicose e avanços nos dispositivos de ISCI, a gestão da DM tem-se tornado progressivamente mais complexa. Existe um maior leque de opções que devem ser do conhecimento de todos os médicos que lidem com pessoas com DM, exigindo uma atualização contínua e permanente.
Compete ao MT a garantia da gestão das questões laborais que possam agravar patologias do trabalhador. Situações especiais, como no caso da condução profissional, trabalho com alto dispêndio energético, em extremos térmicos, em planos desnivelados/em altura ou que impliquem condução e manipulação de máquinas perigosas, devem ser cuidadosamente avaliadas, tendo em conta a medicação habitual, bem como, a existência de eventuais complicações que possam comprometer a capacidade de trabalho.