INTRODUÇÃO
A Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) é uma organização humanitária pertencente ao Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. A sua missão é prestar assistência humanitária e social, em especial aos mais vulneráveis, prevenindo e reparando o sofrimento e contribuindo para a defesa da vida, da saúde e da dignidade humana (1). Dentro da diversidade de equipas que compõem a estrutura operacional de emergência da CVP, estão as Equipas de Socorro e Transporte (EST), que integram os socorristas, também designados de tripulantes de ambulância. A CVP é composta por 86 estruturas locais, onde operam 245 equipas de socorro (www.cruzvermelha.pt) num total de mais de 2500 socorristas. Para desempenharem o seu papel, os socorristas podem ter dois níveis de formação: o elementar, ou seja, a formação “Tripulante de Ambulância de Transporte” (TAT) e o avançado, isto é, a formação “Tripulante de Ambulância de Socorro” (TAS).
Ao longo do tempo tem vindo a crescer o interesse pelo estudo dos profissionais que operam no contexto de emergência pré-hospitalar. Dada a imprevisibilidade, complexidade das situações a que os socorristas acorrem e outros fatores de risco ocupacional como as cargas e ruídos, é considerada uma das atividades com maiores riscos para a segurança e saúde dos seus trabalhadores (2-5). A exposição contínua a estes fatores pode torná-los mais vulneráveis ao impacto do trabalho (6), poderá influenciar as relações sociais e familiares (7) e a qualidade do socorro que prestam à população (8) (9), sendo também importante considerar a influência de outras variáveis (como personalidade, resiliência).
Saúde e bem-estar psicológico
Quando falamos em saúde falamos em algo mais do que a ausência de doença; trata-se de um estado de completo bem-estar físico, psicológico e social (10). Especificamente, o bem-estar psicológico, refere-se a um conjunto de características como a autoaceitação, relações positivas com outros, autonomia, domínio sobre o ambiente, propósito na vida e crescimento pessoal (11).
As características inerentes ao trabalho em contexto pré-hospitalar faz com que estes profissionais estejam sujeitos a níveis de stresse mais elevados comparativamente a outros profissionais de saúde (8) (12-15), podendo manifestar-se num maior risco de desenvolver problemas de saúde física e mental (4) (14) (16-18). A maior parte dos estudos aponta no sentido de as mulheres reportarem mais problemas de saúde mental em geral (13) (16) (19-21).
Trauma psicológico
Podemos definir trauma psicológico como o impacto extremo de um acontecimento stressante no funcionamento psicológico de uma pessoa (22). Quando as reações a um acontecimento provocam mal-estar e interferem com o seu funcionamento habitual, podemos estar a falar no desenvolvimento de um quadro clínico ou perturbação, como é o caso da Perturbação de Stresse Pós-Traumático (PSPT) (23). Considerando a probabilidade de este tipo de eventos acontecerem ao longo da vida da maioria das pessoas (24) e de acordo com o número de eventos experienciados (25), podemos assumir que o risco de desenvolver trauma é maior para os profissionais que operam em emergência pré-hospitalar. Estudos apontam que cerca de 56% a 88% destes profissionais já passaram pelo menos por uma experiência potencialmente traumática (2) (26), apresentando um maior risco de desenvolver sintomas de PSPT (27) (28). A literatura tem vindo a apontar para uma maior prevalência de sintomas de PSPT nas mulheres (29-31).
Satisfação e bem-estar afetivo em relação ao trabalho
A satisfação com o trabalho refere-se ao grau de satisfação com as características intrínsecas (por exemplo: método usado, variedade de tarefas, responsabilidade) e extrínsecas (condições físicas, colegas, carga horária) de um trabalho (32). O bem-estar afetivo em relação a esta variável diz respeito à avaliação que uma pessoa faz sobre o quão bem se sente no exercício da sua atividade e é influenciada por fatores pessoais e do ambiente (33). Alguns estudos verificaram níveis baixos de satisfação com o trabalho em populações semelhantes às dos socorristas (21) (34); no entanto, outros estudos reportaram níveis elevados (2) (35).
Coping
Refere-se a ações adotadas face a uma situação indutora de stresse ou, como Lazarus e Folkman (36) o definiram, conjunto de esforços para gerir as exigências internas ou externas consideradas como excedendo os recursos pessoais. Os estudos realizados com esta população têm vindo a referir que quando são ativados, e antes de chegar ao local da emergência, os socorristas antecipam cenários e procedimentos (37) (38), de modo a prepararem-se para a situação. Durante a prestação de socorro em situações indutoras de stresse, focam-se nos procedimentos técnicos, mantendo um certo distanciamento emocional (38) (39). Após os eventos, estes profissionais preferem falar com os colegas e utilizar o humor para aliviar a carga emocional das situações (2),(5) (40-42).
Suporte social percebido dos Pares e da Organização
O suporte social tem sido amplamente reconhecido como um fator protetor para a saúde mental, especialmente em situações adversas e stressantes (18,43,44). Além de permitir a expressão e partilha de emoções, especialmente as negativas, permite receber ajuda prática. Além da família e amigos, o apoio prestado pelos colegas de trabalho e pelos supervisores parece ser particularmente importante para os socorristas (5) (41) (45-47). Os profissionais que se sentem apoiados e valorizados parecem experienciar níveis mais baixos de stresse negativo (48) e de sintomas de stresse traumático (49).
Em Portugal não existem estudos prévios que permitam caracterizar os socorristas da CVP. Os objetivos deste estudo foram descrever o perfil destes operacionais considerando variáveis de saúde, trabalho, coping e suporte social, bem como, explorar diferenças de género e a relação entre as variáveis em estudo com a saúde e bem-estar psicológico. Assim, os dados deste estudo serão um contributo importante no sentido de se desenvolverem ações de prevenção, promoção da saúde ocupacional e, se necessário, tratamento junto deste grupo de profissionais.
METODOLOGIA
Participantes
Este estudo integrou uma amostra de 313 socorristas da CVP, com idades entre 18 e 67 anos (M=33.87; DP=9.91) e uma média de anos de experiência de 7.83 (DP=6.35). A maioria são do género feminino (55.9%), voluntárias/os (67.7%), do norte do país (59.7%), não desempenham funções de chefia (75.7%) e têm a formação de Tripulante de Ambulância de Transporte (TAT) (70.9%), tal como pode ser observado na tabela 1.
N=313 | % | ||
---|---|---|---|
Género | Masculino | 138 | 44.10 |
Feminino | 175 | 55.90 | |
Idade M=33.87 DP=9.91 Min= 18 Max=67 |
18 - 20 anos | 11 | 3.50 |
21 - 30 anos | 122 | 39.00 | |
31 - 40 anos | 101 | 32.30 | |
41 - 50 anos | 60 | 19.20 | |
51 - 60 anos | 17 | 5.40 | |
+ 60 anos | 2 | 0.60 | |
Escolaridade | Básico | 44 | 14.06 |
Secundário | 128 | 40.89 | |
Superior | 141 | 45.05 | |
Zona do país | Norte | 187 | 59.70 |
Centro | 61 | 19.50 | |
Lisboa e Tejo | 34 | 10.90 | |
Alentejo | 18 | 5.80 | |
Algarve | 9 | 2.90 | |
Madeira | 4 | 1.30 | |
Vínculo à Cruz Vermelha | Voluntário | 212 | 67.70 |
Profissional | 101 | 43.30 | |
Anos de Experiência M=7.83 DP=6.35 Min= 0 Max=35 |
0 - 5 anos | 144 | 46.00 |
6 - 10 anos | 82 | 26.20 | |
11 - 15 anos | 53 | 16.90 | |
16 - 20 anos | 21 | 6.70 | |
21 - 25 anos | 9 | 2.90 | |
+ 25 anos | 4 | 1.30 | |
Nível de formação | TAT | 222 | 70.90 |
TAS | 89 | 28.40 | |
Papel de chefia | Sim | 76 | 24.30 |
Não | 237 | 75.70 |
Instrumentos de recolha de dados
General Health Questionnaire-28 (GHQ-28) (50) versão portuguesa de Pais Ribeiro e colaboradores (51) O GHQ é um dos instrumentos de rastreio da saúde mais utilizados, para avaliar a saúde mental ou o bem-estar psicológico (50). É composto por quatro subescalas: sintomas somáticos (GHQ-28, SS), ansiedade e insónia (GHQ-28, AI), disfunção social (GHQ-28, DS) e depressão grave (GHQ-28, DG). A resposta a cada item é dada numa escala ordinal, que varia entre 0- 3 (“De modo nenhum”- “Muito mais que o habitual”): o somatório das respostas permite obter quer o valor para cada subescala, quer um total a total. O valor de cada subescala varia entre 0- 21 e a nota total (GHQ-28, Total) varia entre 0- 84. Valores mais elevados indicam pior saúde mental. Uma nota total acima de 23 sugere presença de um caso para estudo.
Posttraumatic Stress Disorder Checklist 5 (PCL-5) (52); versão portuguesa de Ferreira, Ribeiro, Santos & Maia, 2016)
A PCL-5 avalia a sintomatologia da Perturbação de Stresse Pós-Traumático (PSPT), de acordo com o DSM-5 (23). É constituída por 20 itens e quatro subescalas, que correspondem aos critérios de diagnóstico da PSPT: sintomas intrusivos (PCL-5, SI), evitamento (PCL-5, E), alterações negativas na cognição e no humor (PCL-5, CH) e alterações significativas da ativação e reatividade (PCL-5, AR). As respostas são dadas numa escala de Likert de cinco pontos, que varia entre 0- 4 (“nada” - “extremamente”). O resultado total (PCL-5 TOTAL) pode variar entre 0- 80, sendo que quanto mais elevada a pontuação, mais severa é a sintomatologia. Pode ser atribuído um diagnóstico provisório de PSPT, após identificar a existência de um evento traumático, classificando de seguida cada item, correspondente a um sintoma, com resposta ≥2 como estando presente. Para além disso, alguma investigação sugere que uma pontuação de corte na PCL-5 entre 31-33 é indicativa de provável PSPT (53-55).
Warr, Cook and Wall’s (1979) Job Satisfaction Scale (JSS) (56); versão portuguesa de Wilks e Neto (57)
Esta escala avalia o grau de satisfação com as caraterísticas intrínsecas e extrínsecas do trabalho (condições físicas, liberdade para escolher o modo de trabalho, colegas, reconhecimento, chefe de equipa, responsabilidade atribuída, oportunidade para usar conhecimentos e competências, relação das chefias com os membros, possibilidade de ser promovido, gestão da organização, sugestões dadas, horário, tarefas, segurança e stresse) (32). A versão original, assim como a portuguesa, contém 16 itens, todavia, neste estudo foi eliminado o item referente à satisfação com o salário, uma vez que os socorristas podem ter vínculo voluntário ou profissional (Alpha de Cronbach do instrumento com os 15 itens: .92). As respostas são dadas numa escala Likert de 1- 5 (“Muito insatisfeito” - “Muito satisfeito”). É possível obter um índice através do somatório dos itens, onde valores mais elevados sugerem um nível de satisfação mais elevado.
Warr’s (1990) Job-Related Affective Well-Being Scale |JAWS (33); versão portuguesa de Wilks e Neto (57)|
A JAWS afere o bem-estar afetivo relacionado com o trabalho. É composta por 12 itens, 6 itens com emoções positivas (entusiasmado, satisfeito, otimista, confortável, interessado e relaxado) e 6 itens com emoções negativas (ansioso, melancólico, tenso, deprimido, preocupado e infeliz). As respostas são dadas numa escala Likert de 1- 5 (“Nunca” - “Sempre”). Os itens relativos às emoções negativas são codificados de forma inversa. O resultado global obtém-se através da soma dos itens, onde valores mais elevados revelam um nível mais elevado de bem-estar afetivo no trabalho.
Brief COPE (58); versão portuguesa de Pais Ribeiro e Rodrigues (59)
O COPE avalia estilos e estratégias de coping (58). O Brief COPE é constituído por 28 itens agrupados em 14 escalas: coping ativo, planear, utilizar suporte instrumental, utilizar suporte social emocional, religião, reinterpretação positiva, auto-culpabilização, aceitação, expressão de sentimentos, negação, auto-distração, desinvestimento comportamental, uso de substâncias e humor. As respostas são dadas numa escala ordinal com quatro alternativas, que variam entre 0- 3 (“Nunca faço isto” - “Faço sempre isto”). O instrumento pode ser ajustado, consoante o interesse dos investigadores no coping estado ou coping traço. Neste estudo optou-se pelo segundo. Apesar de originalmente o resultado final ser apresentado como um perfil, em que as subescalas não são somadas, nem há uma nota total, neste estudo seguiremos a subdivisão por fatores utilizada em estudos anteriores com populações similares (60-62): F1 coping focado no problema: planear, coping ativo, suporte instrumental (Alfa de Cronbach da escala neste estudo= .68); F2 coping focado na emoção: suporte emocional, aceitação, humor, reinterpretação positiva, religião (Alfa de Cronbach da escala neste estudo= .59) e F3 coping disfuncional e evitamento: negação, auto-culpabilização, desinvestimento comportamental, uso de substâncias, expressão de sentimentos (Alfa de Cronbach da escala neste estudo = .59).
Survey of Perceived Organizational Support (SPOS) (63,64); versão portuguesa de Santos e Gonçalves (65) e Suporte Percebido dos Colegas (SPC, adaptado para o presente estudo)
A SPOS avalia as crenças globais dos trabalhadores acerca do grau em que a organização valoriza os seus contributos e bem-estar (63). A versão original tem 36 itens, apesar da maioria dos estudos usar uma forma abreviada da SPOS (desde 3 a 21 itens; ex., Yoon & Lim, 1999; Guzzo et al., 1994). De acordo com uma revisão (66), uma vez que a escala original é unidimensional e tem uma elevada fiabilidade interna, a utilização de versões mais curtas não aparenta ser problemática. Nesta investigação foram selecionados oito itens (64), com um Alfa de Cronbach = .62, correspondentes a crenças sobre bem-estar dos trabalhadores, objetivos e opiniões, favores, erros e disponibilidade da organização para ajudar o trabalhador a resolver problemas. As afirmações, iniciadas com a expressão “A/o nome da organização...”, podem ser respondidas através de uma escala tipo Likert, que varia entre 1 - 7 (“Discordo totalmente” - “Concordo totalmente”). Para avaliar o suporte por parte dos colegas (PCS), adaptou-se a SPOS substituindo a palavra “A Cruz Vermelha Portuguesa” por “Os meus colegas” (Alfa de Cronbach = .79).
Procedimento
Este estudo foi aprovado pela CVP e pela Comissão de Ética da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. O pedido de colaboração foi realizado através de um email para todas as Estruturas Locais da CVP. Além da apresentação do estudo, dos seus objetivos, procedimentos e questões éticas subjacentes, reforçou-se o caráter voluntário da participação. O acesso à bateria de testes, disponível numa plataforma online, Google Docs., era feito através de um link, que foi igualmente divulgado através das redes sociais, num grupo de conversação de socorristas da CVP. Previamente ao preenchimento, foi feita uma breve descrição do estudo quanto aos objetivos, ao critério de inclusão (ser socorrista no ativo), à confidencialidade e anonimato dos dados e à natureza voluntária da resposta e participação. O consentimento informado foi apresentado, sendo que os/as participantes só poderiam avançar no preenchimento do instrumento depois de assinalarem (item de preenchimento obrigatório) a sua concordância com a participação no estudo. A bateria de testes esteve disponível online entre maio de 2018 e fevereiro de 2019, tendo o processo sido concluído em março de 2019. A análise dos dados foi realizada através do IBM SPSS para Windows, versão 25.
RESULTADOS
Saúde e bem-estar psicológico
Os resultados sugerem que 30.70% dos participantes (IC 95%: 25.6- 36.1) apresentam alterações na saúde mental. As mulheres evidenciam mais alterações na saúde mental global (M=21.89; DP=8.95), por comparação com os homens (M=18.97; DP=9.46): t=-2.796, df=311, p=.006, d=.32), bem como na escala sintomas somáticos (t=-4.931, df=309.748, p=.000, d=.56), ansiedade e insónia (t=-3.310, df=308.748, p=.001, d=.37).
Stresse traumático
Dos participantes, 28.40% (n=97) identifica exposição a um acontecimento traumático (Critério A da PSPT), com 3.8% (n=12) acima do ponto de corte ≥ 31 e 2.56% (n=8) cumprindo critérios para provável diagnóstico de PSPT. Os resultados da PCL-5 apresentam os seguintes valores: Pontuação Total M=13.35 (DP=14.54), Sintomas Intrusivos M=4.03 (DP=4.23), Evitamento M=2.01 (DP=2.38), Alterações nas cognições e humor M=3.09 (DP=4.52) e Ativação reativa aumentada M=3.64 (DP=5.11). Também na sintomatologia traumática, as mulheres (n=54) surgem com um resultado global mais elevado (M=15.96; DP=16.25), por comparação com o género masculino (n=35; M=9.31; DP=10.39): t=-2.355, df=86.995, p=.021, d=.50. Na subescala sintomas intrusivos, verifica-se de igual modo esta diferença (t=-2.487, df=93.780, p=.015, d=.51; tabela 2).
Masculino | Feminino | df | t | p | d | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
M | DP | M | DP | |||||
GHQ-28 SS | 3.82 | 2.95 | 5.61 | 3.47 | 309.748 | -4.931 | .000** | .56 |
GHQ-28 AI | 3.88 | 4.08 | 5.53 | 4.75 | 308.748 | -3.310 | .001* | .37 |
GHQ-28 DS | 10.09 | 4.21 | 9.49 | 3.36 | 257.900 | 1.371 | .172 | .16 |
GHQ-28 DG | 1.18 | 2.41 | 1.26 | 2.06 | 311 | -.300 | .764 | .04 |
GHQ-28 TOTAL | 18.97 | 9.46 | 21.89 | 8.95 | 311 | 2.796 | .006* | .32 |
PCL-5 SI | 2.82 | 3.30 | 4.81 | 4.60 | 93.780 | -2.487 | .015* | .51 |
PCL-5 E | 1.51 | 1.98 | 2.33 | 2.57 | 89.600 | -1.736 | .086 | .36 |
PCL-5 CH | 2.32 | 3.20 | 3.58 | 5.15 | 94 | -1.326 | .145 | .30 |
PCL-5 AR | 2.70 | 3.90 | 4.27 | 5.74 | 90 | -1.453 | .122 | .33 |
PCL-5 TOTAL | 9.31 | 10.39 | 15.96 | 16.25 | 86.995 | -2.355 | .021* | .50 |
*p < .050.
**p < .001
Satisfação com o trabalho
O JSS apresenta uma pontuação total média de 53.35 (DP=11.45) e a pontuação média dos itens acima do valor intermédio de 3 (M=3.56; DP=.76). O item associado a maior satisfação é a responsabilidade atribuída (M=3.96; DP=.96), e, pelo contrário, à menor satisfação a possibilidade de ser promovido (M=3.09; DP=1.10). Não foram identificadas diferenças de género ou idade.
Bem-estar afetivo em relação ao trabalho
O JAWS apresenta uma pontuação total média de 30.29 (DP=9.03) e a pontuação média dos itens M=2.52 (DP=.75). O item com a média mais elevada é o interessado (M=3.30; DP=1.18) e, inversamente, o que tem a média mais baixa, o deprimido (M=1.88; DP=1.45). Não se observam diferenças a nível do género ou idade.
Coping
Os fatores do Brief COPE apresentam os seguintes valores: Fator 1 - Coping Focado no Problema: M=11.39 (DP=3.28); Fator 2- Coping Focado nas Emoções: M=15.21 (DP=4.55) e Fator 3- Coping Disfuncional/Evitamento: 7.06 (DP=3.81). Não foram encontradas diferenças de género ou idade.
Suporte social dos Pares e da Organização
O SPOS apresenta uma média de 4.18 (DP=.94) e o SPC uma média de 4.57 (DP=.87). O grupo etário faz variar a perceção do suporte organizacional (ANOVA one-way, F (5, 306) = 2.519, p = .030, partial η2 = .04). Se forem consideradas duas categorias de idade (18 - 40 anos e 41 ou mais anos de idade) verifica-se que o grupo com idade superior a 41 anos apresenta uma maior perceção de suporte por parte da organização (t=-2.228, df = 310, p = .027, d = .30, teste t student). Não se observam diferenças de género.
Variáveis Cruz Vermelha Portuguesa
As variáveis que apresentam diferenças quando comparadas caraterísticas específicas da CVP, como exercer a atividade de socorristas enquanto Voluntário versus Colaborador, ter nível de formação TAT versus TAS ou desempenhar um papel de Chefia nas Equipas de Socorro e Transporte, são as seguintes (efetuado teste t-student):
Saúde e Bem-estar Psicológico: os TAT evidenciam pior saúde mental, do que os TAS (t = 2.227, d=309, p = .027, d = .29).
Satisfação com o Trabalho: os Voluntários revelam maior satisfação, por comparação com os Colaboradores (t = 5.037, df = 157.110, p = .000, d = .64) e os TAT maior do que os TAS (t = 2.713, df = 307, p = .007, d = .34).
Bem-Estar Afetivo no Trabalho: os Voluntários revelam maior bem-estar, por comparação com os Colaboradores (t = 2.835, df = 311, p = .005, d = .35).
Suporte Organizacional: os Voluntários sentem maior suporte organizacional, por comparação com os Colaboradores (t = 2.224, df, 165.506, p = .027, d = .28) e os TAT maior do que os TAS (t = 3.280, df=146.775, p = .001, d = .42).
Suporte dos Colegas: os Voluntários percebem maior suporte da parte dos colegas, por comparação com os Colaboradores (t = 3.861, df = 311, p = .000, d = .45)
Um modelo preditivo exploratório da saúde e bem-estar psicológico dos Socorristas CVP, formado pelas variáveis analisadas neste estudo, revela-se significativo: F (11, 76) = 3.836, p = .000 (Regressão Múltipla, usando o Método Enter). O modelo explica 26% da variância (Adjusted R2 = .26). A tabela 2 apresenta a informação para as variáveis incluídas no modelo. Destas, o Coping Disfuncional/ Evitamento é significativo (tabela 3).
Variável | B | IC 95% | β | t | p |
---|---|---|---|---|---|
Sexo | .57 | [-3.21, 4.35] | .03 | .30 | .766 |
Formação | -3.78 | [-7.92, .35] | -.21 | -1.82 | .072 |
Anos de Experiência | .09 | [-.21, .40] | .07 | .62 | .541 |
PSPT | .06 | [-.07, .20] | .10 | .91 | .364 |
Satisfação com o Trabalho | -.78 | [-3.59, 2.04] | -.06 | -.55 | .584 |
Bem-Estar Afetivo no Trabalho | -1.11 | [-3.69, 1.47] | -.10 | -.86 | .395 |
Suporte Organização | -1.53 | [-3.98, .93] | -.15 | -1.24 | .218 |
Suporte Colegas | -.10 | [-.28, .33] | -.08 | -.60 | .550 |
Coping Focado no Problema | -.14 | [-.91, .64] | -.05 | -.35 | .726 |
Coping Focado nas Emoções | -.27 | [-.26, .80] | .14 | 1.03 | .307 |
Coping Disfuncional / Evitamento | -.85 | [.33, 1.36] | .38 | 3.27 | .002* |
Nota. n = 83. Adjusted R2= .26. IC = intervalo de confiança para B.
*p < .050
DISCUSSÃO DE RESULTADOS
A maioria dos participantes reportaram níveis satisfatórios de saúde em geral e bem-estar psicológico, resultados que contrariam a tendência de estudos anteriores (5) (18). No entanto, importa considerar a tendência destes profissionais em sub-reportar queixas de saúde (67) (68). As mulheres evidenciaram não só mais alterações ao nível da saúde global e bem-estar psicológico, bem como na escala de sintomas somáticos e na escala da ansiedade e insónia. Se, por um lado, estes dados corroboram estudos anteriores (16) (19) (21) (69), por outro lado, contrariam outros, que não identificaram diferenças entre homens e mulheres para estas variáveis (8).
Ainda que cerca de 28% dos participantes tenha estado exposto a um acontecimento potencialmente traumático, apenas cerca de 3% cumpriam critérios para um eventual diagnóstico de PSPT. Esta percentagem é bastante inferior comparativamente a outros estudos nacionais (20) (29) (35) (60) (70) e internacionais (28) (71), com populações semelhantes. Os dados deste estudo vão ao encontro da tendência apontada por Petrie e colaboradores (28) de que as taxas de PSPT nos operacionais de emergência têm vindo a diminuir ao longo dos anos. Por outro lado, estes valores levam-nos a refletir sobre que fatores poderão estar na origem da diferença entre os socorristas da CVP e os restantes profissionais de emergência pré-hospitalar (bombeiros e técnicos do Instituto Nacional de Emergência Médica). Verificamos ainda que as mulheres socorristas exibem mais sintomas globais de PSPT e sintomas intrusivos, tal como a literatura tem vindo a apontar (30) e à semelhança de estudos prévios conduzidos com bombeiros portugueses (31) e com técnicos de emergência pré-hospitalar (29). Estes dados levam-nos a considerar a hipótese da influência de fatores biológicos e o modo como lidam e gerem as emoções associadas aos eventos (72) (73). No entanto, houve outros estudos que não identificaram estas diferenças nos operacionais de emergência (8) (71) (74) (75).
A média da pontuação das respostas dos participantes para a satisfação profissional revelou-se superior ao ponto intermédio da escala de resposta, indicando bons níveis de satisfação com o trabalho, tal como sugerem outros estudos anteriores (2) (76). No que diz respeito ao bem-estar afetivo em relação ao trabalho, o valor da média das respostas dos participantes revelou-se próximo do ponto intermédio da escala de resposta, sugerindo um nível moderado de bem-estar em relação ao trabalho. Uma das razões que pode estar relacionada com estes níveis de satisfação e bem-estar afetivo é o facto de o trabalho no contexto de emergência ser um trabalho pessoalmente gratificante e recompensador (46) (77) (78).
Quanto ao coping, os dados revelaram que os socorristas da CVP utilizam mais estratégias de coping focado nas emoções, dentro das quais se encontram o suporte emocional, a aceitação e o humor. Estes dados estão de acordo com outros estudos anteriores (62), mas contrariam outros realizados com populações similares, em que as estratégias de coping focado no problema são as mais utilizadas (60) (61). Algumas estratégias focadas nas emoções, como é o caso do humor, podem ter um efeito positivo, uma vez que possibilita um distanciamento emocional entre os profissionais e a situação, promovem um sentido de mestria a lidar com as exigências do seu trabalho e promovem a coesão grupal, criando um “código de grupo” (2) (5) (8) (40) (41) (79-81). Além disso, o facto de estes profissionais refletirem e conversarem sobre a situação e o seu desempenho com os seus colegas de tripulação e amigos (5) (37) (38) (79), é uma oportunidade de reinterpretação positiva, crescimento pessoal e melhoria profissional (44). O coping adaptativo está associado a níveis mais baixos de stresse, PSPT e a melhor bem-estar psicológico (62) (79) (82), revelando um impacto positivo na gestão dos incidentes e no processo de adaptação após um evento traumático (83) (84). As estratégias de coping focado no problema mostram-se apropriadas quando o stressor é controlável, ao passo que as focadas na emoção são mais indicadas quando o stressor parece ser incontrolável (85). Os resultados apontam para o facto das estratégias de coping disfuncional ou evitamento serem as menos utilizadas, corroborando a maioria dos estudos anteriores (86-88). Comparativamente aos homens, as mulheres parecem utilizar mais estratégias de coping focado no problema e de coping disfuncional/evitamento, à semelhança de outros estudos prévios (60) (87). Se por um lado o coping focado no problema pode ter um efeito positivo, por outro, o coping disfuncional/evitamento podem favorecer sintomas intrusivos, de ativação emocional e de evitamento (40) e, se utilizadas isoladamente ou de forma inflexível, podem tornar-se prejudiciais (89) (90).
A análise dos dados sugere que o coping disfuncional/evitamento é uma variável que está correlacionada com a saúde e bem-estar psicológico. Também outros estudos prévios identificaram o valor preditivo desta dimensão em termos de problemas psicológicos, como é o caso do burnout e da fadiga de compaixão (87). Além disso, quando associado a baixos níveis de suporte social, este tipo de coping prediz sintomatologia de PSPT (91). Não obstante, estudos recentes têm vindo a verificar que este tipo de coping pode ser benéfico em algumas situações críticas e na recuperação após os eventos (82) (92). Exemplos destas situações poderão ser aquelas em que os socorristas têm que manter o seu foco nos protocolos e procedimentos de socorro. Será importante, em estudos futuros, considerar a variável “tempo decorrido desde o evento”, de forma a perceber a influência desta variável no sucesso das estratégias. Estes dados realçam a importância de sensibilizar os socorristas para ações que os ajude a lidar não só com os desafios do dia-a-dia, como também com os eventos críticos com que se deparam. Ações de sensibilização, formação e treino são por isso ações de extrema relevância e que devem ser desenvolvidas continuamente.
Relativamente ao suporte percebido por parte da Cruz Vermelha, os resultados parecem indicar níveis moderados, quer por parte da instituição, quer por parte dos colegas. A literatura é uníssona ao afirmar que ter o suporte por parte dos outros e trabalhar num ambiente de apoio tem um impacto positivo na saúde mental e no bem-estar destes profissionais (93-95) e na facilitação de respostas positivas após eventos potencialmente traumáticos (2) (13) (18) (87) (96-98). Os socorristas mais velhos apresentam uma maior perceção de suporte por parte da organização, o que pode estar relacionado com a visão que têm da própria instituição. Considerando o vínculo com a CVP, os socorristas voluntários sentem maior suporte organizacional e maior suporte por parte dos colegas. Estes dados poderão refletir o valor que o voluntariado- um dos princípios fundamentais da CVP- representa e a consequente atenção e eventual apoio dados aos voluntários, que representam a maioria dos socorristas da CVP. Percebendo o impacto que o apoio tem no desempenho dos seus papéis (99), torna-se essencial desenvolver ações que garantam a manutenção deste apoio. Também os socorristas com formação TAT reportam sentir maior suporte por parte da organização. Verificamos que a maioria dos socorristas com este nível de formação são voluntários, pelo que na origem desta perceção poderá estar a valorização dada ao trabalho voluntário desempenhado por estes socorristas. Considerando o efeito protetor que o suporte social parece assumir para estes profissionais (5), os resultados deste estudo sugerem que este apoio percebido poderá ajudar a reduzir os sentimentos decorrentes da sobrecarga de trabalho e do stresse ocupacional (9) (100). Nesse sentido, torna-se essencial garantir o apoio, quer seja através de medidas e ações promovidas pela organização, quer seja o apoio prestado pelos colegas.
CONCLUSÃO
Os socorristas da CVP reportaram níveis satisfatórios de saúde em geral e bem-estar psicológico, bons níveis de satisfação com o trabalho e níveis moderados de suporte percebido por parte da CVP. Relativamente às estratégias de coping, os resultados revelaram que os socorristas da CVP usam mais estratégias focadas na emoção. As diferenças encontradas e as variáveis correlacionadas identificadas para as várias dimensões dão-nos pistas importantes a considerar aquando do planeamento e execução de ações e intervenções com estes profissionais. A saúde e o bem-estar destes profissionais interfere não só com a dimensão individual, mas também ao nível familiar, organizacional e comunitário, pelo que a sua monitorização contínua deverá ser uma das prioridades por parte das estruturas onde estes profissionais operam. A otimização das condições de trabalho dos socorristas e a orientação para práticas promotoras de saúde será um importante contributo para o seu bem-estar psicológico e para a qualidade do apoio que prestam à população. Dada a impossibilidade de controlar a exposição a eventos com potencial traumático, importa capacitar estes operacionais para o uso de estratégias de coping adaptativas para lidar com os desafios do dia-a-dia. A preparação destes profissionais para lidar com este tipo de eventos, através da formação e treino é fundamental para a sua saúde e bem-estar. O apoio deverá ser uma componente basilar das estruturas de emergência numa lógica de continuidade. Por um lado, através da promoção de uma cultura de apoio e da disponibilização de um sistema de apoio estruturado (como sistema de apoio de pares); por outro lado, encorajando a utilização da rede de suporte informal (86).
Não obstante a originalidade e pertinência do presente estudo, existem algumas limitações que levam a que as inferências sejam feitas com cautela. Desde logo, a existência do viés da desejabilidade social associado aos estudos de autorrelato. Seria importante que estudos futuros pudessem contemplar a dimensão qualitativa do fenómeno e variáveis em estudo, de modo a fornecer uma visão mais holística e aprofundada desta realidade. Apesar das respostas adversas e sintomas psicopatológicos em profissionais de atividades de risco, a literatura tem vindo a apontar para as experiências e trajetórias positivas que esta atividade oferece (46) (104) (105). Nesse sentido, seria importante em estudos futuros considerar variáveis como são exemplos a resiliência, o engagement e o crescimento pós-traumático. Neste estudo foi avaliado o suporte percebido por parte da organização e por parte dos colegas. Seria importante em estudos futuros avaliar outras fontes de suporte informal, nomeadamente, o suporte por parte da família e de amigos. Estes dados foram recolhidos num período prévio à pandemia COVID-19, pelo que seria importante compreender estas dimensões à luz da atualidade.
Este estudo representa um contributo importante para o conhecimento desta classe profissional e lança pistas, quer para a Cruz Vermelha Portuguesa quer para outras entidades que operem no contexto de emergência pré-hospitalar, no que diz respeito ao desenvolvimento de ações de prevenção, promoção e, se necessário, intervenção no âmbito da saúde ocupacional. Simultaneamente, pode ser um bom ponto de partida no âmbito da literacia em saúde mental, quer para os socorristas individualmente, quer para os profissionais de saúde mental e as entidades que deles também têm de cuidar.