INTRODUÇÃO
Os tumores malignos do nariz e dos seios paranasais são neoplasias raras (a incidência é inferior a 1 por 100.000 nos países desenvolvidos), correspondendo a menos de 5% das neoplasias da cabeça e pescoço (1) (2) (3). Os fatores etiológicos mais frequentes dos tumores nasossinusais malignos são mutações hereditárias, causas adquiridas como a radioterapia e o tabagismo, além de fatores ocupacionais. Os fatores de risco ocupacional que têm sido relacionados com uma maior incidência de tumores nasossinusais incluem exposição crónica a pó de madeira e couro, níquel e compostos de crómio, formaldeído e outros solventes, bem como a hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (1) (3). Estudos epidemiológicos ocupacionais também demonstraram um risco acrescido nos trabalhadores empregados no curtimento de peles, produção de ácido isopropílico, soldadores e com produtos de cortiça (4). Há muito que se sabe que o consumo de tabaco e de álcool aumenta o risco de malignidades na cabeça e pescoço, mas não foi demonstrada nenhuma associação significativa com os tumores nasossinusais (3) (4).
Os tumores epiteliais representam mais de dois terços dos tumores nasossinusais e histologicamente diferenciam-se maioritariamente entre adenocarcinoma e carcinoma espinocelular (1). Os adenocarcinomas nasossinusais classificam-se nos tipos intestinal e não intestinal (5). A incidência dos adenocarcinomas nasossinuais varia entre países e regiões geográficas, presumivelmente devido a diferenças na exposição ocupacional. Num estudo europeu, as taxas de incidência padronizadas por idade nos homens entre 2003 e 2007 foram de 0,8-1,5 por 100.000 em França, e de 0,5 por 100.000 na Finlândia (6).
O adenocarcinoma do tipo intestinal (ADTI) está fortemente associado à exposição ocupacional, particularmente a pó de madeiras de densidade elevada. O ADTI é um tumor raro que representa 8-25% de todos os tumores nasossinusais malignos (5, 7). Num estudo comparativo entre adenocarcinomas nasossinusais em homens franceses e finlandeses os ADTI ocorreram muito mais frequentemente em França do que na Finlândia e são claramente mais comuns do que os adenocarcinomas não intestinais, enquanto na Finlândia o inverso é verdadeiro. Os autores referem que em França, as árvores tradicionais, como o carvalho e a faia, são amplamente utilizadas nas indústrias da madeira, enquanto na Finlândia as derivadas coníferas, como o pinheiro, o abeto, e a bétula são utilizadas mais frequentemente, refletindo os tipos predominantes de árvores que crescem nos respetivos países (6). Na Europa, existem regiões com maior incidência, como a região norte de Espanha, onde a incidência de ADTI é de 0,19 casos/100.000 habitantes por ano (5).
O ADTI encontra-se mais frequentemente (85%) no seio etmoidal e na parte superior da cavidade nasal (8) (9). Apenas raramente surge noutros locais da cavidade nasal (seio maxilar em 10%) e estes casos normalmente não estão relacionados com a exposição ao pó da madeira (5) (10). A metastização à distância e linfática é pouco frequente, enquanto as recidivas locais constituem a principal causa de morte entre os doentes (11). A idade média de diagnóstico situa-se entre os 50 e 60 anos e nos tumores relacionados com o pó de madeira pode ocorrer mais cedo (5) (8) (10) (12). Os homens desenvolvem ADTI quatro vezes mais frequentemente do que as mulheres, o que reflete o risco profissional implicado (5) (10).
A apresentação clínica na maioria dos casos consiste na obstrução nasal unilateral, rinorreia e epistaxes (5). Estes sintomas são frequentemente confundidos com causas benignas como rinite ou sinusite o que atrasa, em média, o diagnóstico seis a oito meses, desde os primeiros sintomas. Os tumores localmente avançados podem invadir a cavidade orbital, intracraniana, oral ou facial. Nesta fase podem causar dores faciais, exoftalmia, diplopia, cefaleias ou outras queixas neurológicas (2) (5).
O diagnóstico é geralmente efetuado por rinoscopia anterior ou endoscopia nasal em combinação com uma biópsia para exame histopatológico. Adicionalmente, a extensão do tumor e a intervenção cirúrgica é avaliada através da análise imagiológica por ressonância magnética (RM).
Sendo um cancro raro, é crucial que os profissionais de saúde estejam atentos aos fatores de risco ocupacionais. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho consiste em descrever um caso de ADTI num doente já reformado com um histórico ocupacional de exposição ao pó de madeira e sensibilizar os profissionais de saúde para a vigilância, prevenção e diagnóstico precoce destes cancros ocupacionais.
CASO CLÍNICO
Apresentamos o caso de um homem de 81 anos, reformado, que durante toda a sua vida profissional foi marceneiro. Como antecedentes pessoais apresenta hipertensão arterial (HTA) e dislipidemia, estando medicado e controlado. Em relação aos hábitos pessoais é fumador com uma carga tabágica estimada de cerca de 34 unidades de maço-ano e nega consumos alcoólicos regulares.
No histórico ocupacional refere ter começado a trabalhar como marceneiro, na região norte do país, aos doze anos de idade. O seu trabalho consistia no fabrico de móveis, transporte, corte e acabamento da madeira com recurso a ferramentas, lixas e máquinas de serrar. Nega qualquer utilização de Equipamento de Proteção Individual (EPI), nomeadamente proteção respiratória, auditiva ou luvas. Descreve a oficina de trabalho com níveis elevados de empoeiramento derivado das madeiras que utilizava mais frequentemente- carvalho, castanho, mogno, freixo, faia e raramente kambala. Como acidentes de trabalho referiu múltiplos cortes nas mãos com serras e a amputação da falange distal em dois dedos da mão direita. Reformou-se ao fim de 56 anos nesta atividade, trabalhando sempre em pequenas empresas. Foi ainda reportado um escasso acompanhamento pela Medicina do Trabalho através dum serviço externo de segurança e saúde do trabalho.
Em consulta de vigilância de HTA, na sua Unidade de Saúde Familiar, referiu epistaxes e obstrução nasal ocasional à direita, com cerca de três meses de evolução. Negou dor facial, rinorreia e sintomas sistémicos. Ao exame objetivo apresentava palpação cervical sem alterações, inspeção da boca e orofaringe normais, mas, ao exame rinoscópico, visualizou-se uma massa friável que ocupava a fossa nasal direita. Foi pedida Tomografia computadorizada (TC) dos seios perinasais, que revelou “lesão ocupando espaço na fossa nasal direita, de configuração grosseiramente polipóide, que se acompanha de destruição/desminerilização do esqueleto ósseo dos cornetos nasais, de algumas células etmoidais e do seio esfenoidal”. Dada a presença de lesão neoformativa, o doente foi encaminhado com urgência para consulta de Otorrinolaringologia (ORL).
Nesta consulta, realizou biópsia da lesão e foi pedida ressonância magnética (RM) urgente dos seios perinasais (Figura 1).
A anatomia patológica do fragmento biopsado revelou “aspetos morfológicos de adenocarcinoma do tipo intestinal”. Depois de avaliado em consulta de grupo, o doente foi proposto para cirurgia endoscópica nasossinusal e radioterapia adjuvante. A peça cirúrgica confirmou tratar-se de Adenocarcinoma do etmoide direito do tipo intestinal com o estadiamento T2N0M0. Adicionalmente, foi proposto ao doente acompanhamento em consulta de cessação tabágica, tendo ao momento reduzido em 50% a carga tabágica diária. Os tratamentos decorreram sem intercorrências e o utente mantém vigilância em consulta de ORL e Medicina Geral e Familiar.
DISCUSSÃO
O contacto com o pó da madeira é uma das exposições profissionais mais comuns, com milhões de trabalhadores expostos em todo o mundo. Nas fábricas de mobiliário e carpintarias da União Europeia (UE), estima-se que 87.000 trabalhadores (12%) poderão estar expostos a um nível que excede os 5 mg/m3 - o limite de exposição ocupacional na UE (13). Esta substância complexa é composta principalmente de celulose (40%-50%), polioses e outras substâncias, mas a sua fórmula exata depende da espécie de árvore que está a ser processada. As árvores são caracterizadas como gimnospérmicas (madeiras suaves) e angiospérmicas (madeiras duras), sendo estas últimas geralmente mais densas e produzindo poeiras mais finas e mais abundantes (14). Em 1995, a Agência Internacional de Investigação do Cancro (IARC) classificou o pó de madeira como definitivamente cancerígeno para os seres humanos (grupo 1), principalmente com base em descobertas de cancros nasossinusais (15).
Estima-se que as pessoas que trabalham com exposição profissional ao pó de madeira têm um risco de desenvolver adenocarcinoma nasossinusal quinhentas vezes superior ao da população masculina não exposta e quase novecentas vezes superior ao da população geral (4, 5, 12). A latência média é de quarenta anos, existindo um provável efeito dependente da dose e da duração da exposição. Parece que a exposição ao pó da madeira é um fator de risco independente da associação a produtos químicos utilizados na indústria, tais como polimentos ou vernizes (12).
Com relevância epidemiológica em Portugal, num estudo recente que incluiu 39 doentes com diagnóstico de ADTI, foi encontrada uma associação ocupacional aos trabalhadores da cortiça (4). Mais de metade dos doentes (69%) apresentava uma exposição prolongada a agentes ocupacionais, nomeadamente pó da madeira/cortiça, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, formaldeído, carvão, isomastique e indústria têxtil. Entre estes, quase 70% tinham trabalhado no processamento da cortiça por períodos prolongados, com uma média de duração de exposição de trinta anos (4).
A patogénese desta neoplasia ocupacional ainda não é totalmente compreendida. Sabe-se que a cavidade nasal funciona como porta de entrada para as partículas inaladas e que apenas partículas superiores a 5 μm de diâmetro ficam presas na mucosa do corneto médio e do etmóide (8) (9). Assim, a exposição relevante na indústria do mobiliário é limitada a certas tarefas como a lixagem, o que coloca especialmente em risco os marceneiros. Apesar da sua etiologia clara, ainda é desconhecido o mecanismo molecular que leva ao desenvolvimento dos adenocarcinomas nasossinusais (5). As partículas de madeira parecem enfraquecer a função ciliar das células nasais que prolongam o seu contacto com a mucosa e assim potenciam os seus possíveis efeitos carcinogénicos (5) (8). Perto do local onde as partículas de pó da madeira são depositadas, desenvolve-se a hiperplasia, depois metaplasia e, por último, neoplasia (5).
O prognóstico dos adenocarcinomas nasossinusais é insatisfatório, apresentando uma sobrevivência aos cinco anos entre 20-50% (4) (5) (9). O longo período de latência para o desenvolvimento do adenocarcinoma e a maior sobrevivência das pessoas tratadas nas fases iniciais da doença tornam necessária uma vigilância médica periódica na deteção precoce do adenocarcinoma nasal. Os exames periódicos de Medicina do Trabalho são essenciais para o diagnóstico precoce deste cancro. Na presença de algum sintoma, (nomeadamente epistaxes, obstrução nasal, rinorreia e dor persistente) a rinoscopia anterior é aconselhada. De facto, o diagnóstico deve ser sempre suspeito num adulto com rinorreia unilateral purulenta ou sanguinolenta. A TC e a RM fornecem informações sobre a extensão da lesão e o envolvimento ósseo, enquanto o diagnóstico definitivo é feito através de biópsia. O tratamento de escolha é a cirurgia seguida de radioterapia. Quando são realizadas grandes ressecções, são necessárias técnicas reconstrutivas e ocasionalmente, próteses podem funcionar como alternativa estética e funcional.
Os serviços de Saúde e Segurança Ocupacionais têm um papel preponderante na prevenção e minimização destes cancros ocupacionais, tendo como obrigação primária a formação dos trabalhadores para os perigos e riscos ocupacionais. Uma vez identificados estes riscos, deverão ser adotadas medidas preventivas numa tentativa de os eliminar. Sempre que possível, deve ser evitado a utilização de madeiras duras, substituindo-as por outras madeiras alternativas. Quando não for possível substituir a matéria-prima, devem ser implementadas medidas de redução de exposição e controlo como o encapsulamento da fonte ou cabines.
A medida de controlo e proteção coletiva mais importante perante a exposição ao pó da madeira consiste na ventilação mecânica com exaustão localizada. Os exaustores devem estar colocados o mais próximo possível da fonte de emissão (ou na maquinaria de trabalho da madeira) e muitas vezes integrados em sistemas de guardas ou cabines. É fundamental a limpeza diária das instalações, a fim de evitar a acumulação de pó e aparas de madeira. Além disso é imprescindível a sinalética na área de trabalho alertando para o perigo para a saúde dos trabalhadores devido à exposição ao pó de madeira, além da proibição de comer, beber e fumar no local de trabalho. Quando as medidas de controlo, apesar de uma boa conceção e implementação, não garantem uma exposição ao pó da madeira inferiores a 1 mg/m3, deverão ser fornecidos aos trabalhadores EPI (16). Em particular, no lixamento de madeiras duras, recomenda-se sempre a utilização de máscaras de proteção respiratória (dispositivos de filtragem contra partículas com filtro tipo P3 ou máscara FFP3, de uso para pó/poeiras).
Nos trabalhadores de carpintarias e marceneiros existem múltiplos riscos ocupacionais além da exposição ao pó da madeira. Numa revisão sistemática desta atividade destacam-se o ruído, manuseamento de cargas e as lesões musculoesqueléticas, trabalho com máquinas e serras, agentes biológicos e agentes químicos (17). Os trabalhadores deverão também utilizar proteção auditiva, luvas, fato e calçado apropriados além de óculos de viseira, para evitar o contacto da poeira da madeira com a pele (16).
A vigilância periódica dos trabalhadores em exame de saúde pela Medicina do Trabalho deverá sempre englobar uma avaliação da história ocupacional e da utilização de medidas de proteção, para além da história clínica. É importante questionar atividades extralaborais com exposição ao pó da madeira e hábitos toxicológicos. A anamnese precisa ser exaustiva sendo indispensável questionar ativamente por sintomas respiratórios e de obstrução nasal. O exame objetivo completo necessita de exploração clínica com rinoscopia anterior além do exame neurológico. O trabalhador deve ser informado dos sintomas aos quais deverá prestar atenção, particularmente sintomas de obstrução nasal unilateral. Sempre que existir suspeita de um adenocarcinoma nasossinusal o Médico do Trabalho tem de orientar o trabalhador em parceria com o Médico de Família, em vista do diagnóstico e tratamento mais precoces possíveis. É importante salientar que muitas vezes a vigilância pós-ocupacional é realizada em contexto dos cuidados de saúde primários, uma vez que o período de latência destes cancros é longo. Nesse sentido é também fundamental que os Médicos de Família estejam conscientes desta patologia e que a comunicação entre ambas as especialidades seja um veículo na proteção da saúde destes trabalhadores.
CONCLUSÃO
O adenocarcinoma nasossinusal é um tumor raro que está fortemente associado à exposição ocupacional ao pó de madeiras angiospérmicas. É fundamental garantir a prevenção no local de trabalho através da utilização de EPI com fator de proteção respiratória adequado e instalação de ventilação/extração de ar (16) que garanta níveis de exposição idealmente inferiores a 1 mg/m3. Neste aspeto é importante salientar o papel essencial que os Serviços de Medicina do Trabalho desempenham na sensibilização das empresas para este risco, na sua monitorização e na vigilância da saúde dos trabalhadores, em sinergia com a Medicina Geral e Familiar, enquanto parceiro na continuidade dos cuidados e seguimento dos pacientes durante toda a sua vida.
A clínica destes tumores é muitas vezes indolente, pelo que sintomas unilaterais associados a um histórico ocupacional são altamente sugestivos e assinalam a necessidade de investigação diagnóstica. A anamnese cuidada aliada ao histórico ocupacional é fundamental no diagnóstico dos cancros ocupacionais. Neste artigo, é descrito um caso de ADTI diagnosticado com base numa elevada suspeição face à profissão e aos sintomas do doente.
Dada a presumível exposição profissional, optou-se por participar a Doença Profissional ao Departamento de Proteção de Riscos Profissionais do Instituto de Segurança Social. Esta medida foi tomada em prol da proteção e promoção da saúde dos trabalhadores da indústria do mobiliário com intuito de sensibilizar para o risco e evitar ou minimizar a exposição de outros trabalhadores em risco de exposição carcinogénica ao pó de madeiras.
No que concerne à importância da anamnese exaustiva em contexto ocupacional, acredita-se que a construção de uma ferramenta que oriente esta prática pode constituir uma mais valia impulsionando a investigação na área. Destaca-se também a necessidade de maior vigilância junto de empresas semelhantes à retratada e a importância de medidas promotoras da existência de EPI, bem como da adesão aos mesmos.