INTRODUÇÃO
As doenças ocupacionais respiratórias são adquiridas pela inalação de partículas orgânicas, inorgânicas e sintéticas, vapores, gases ou agentes infeciosos no local de trabalho e que resultam diretamente deste (1).
A Silicose é a doença profissional pulmonar crónica com maior prevalência no mundo e resulta da inalação de sílica (1).
A sílica (dióxido de silício) é o mineral mais abundante na crosta terrestre e atividades que perturbem a crosta terrestre ou exponham o trabalhador ao uso ou processamento de rochas ou areia potenciam a probabilidade desta patologia ocorrer. Incluem-se aqui a extração e o trabalho em rochas, como granito e pedras em geral, mineração (ouro, arsénio, estanho, pedras preciosas, carvão), pedreiras e túneis, perfuração de poços, indústrias de cerâmica, materiais de construção, borracha, fabrico de vidro e fertilizantes (rocha fosfática), fundições e produção de talco, decapagem com jato de areia, rebarbação, polimento de metais e minerais com abrasivos que contêm sílica (2).
Classicamente, são as formas cristalinas (quartzo, tridimite, cristobalite) as mais patogénicas, contudo está também descrita a ocorrência de Silicose por inalação de sílica amorfa (1).
Os macrófagos alveolares estão diretamente envolvidos na patogénese. Estes são responsáveis pela fagocitose da sílica quando esta atinge o alvéolo, desencadeando a libertação de citocinas e a ativação do sistema imunitário humoral e celular. A sílica cristalina tem um efeito citotóxico, secundário à lesão química direta à membrana celular. No entanto, o efeito primário da sílica inalada sobre os macrófagos é a ativação. Os macrófagos ativados pela sílica recrutam e ativam linfócitos T que, por sua vez, recrutam e ativam uma população secundária de monócitos-macrófagos. Os macrófagos ativados produzem citocinas, que estimulam os fibroblastos a proliferar e a aumentar a síntese de colagénio (3).
Desde 1997 que a International Agency for Research on Cancer (IARC) classificou a sílica cristalina inalada (na forma de quartzo ou cristobalite) como carcinogénio do Grupo 1 (4), e desde então vários estudos suportam uma relação dose-resposta (4, 5, 6).
Esta doença é a principal causa de invalidez entre as doenças respiratórias ocupacionais e o European Occupational Disease Statistics (EODS) classificou-a como a sexta doença respiratória ocupacional mais frequente (2, 7). Em Portugal é a patologia respiratória mais notificada (2).
No que diz respeito à epidemiologia, é uma doença rara antes dos cinquenta anos de idade e é mais frequente no sexo masculino (o que poderá estar relacionado com a sua associação a profissões segmentadas de acordo com o género e predominantemente exercidas por homens) (2).
A apresentação da doença depende da quantidade e da duração da exposição (2). Do ponto de vista clínico existem três formas clássicas de apresentação: aguda, quando o nível de exposição é muito elevado/intenso e surge num curto período de tempo, cerca de um a três anos após o início de exposição; acelerada ou progressiva, com um nível de exposição elevado, durante cerca de cinco a dez anos, e evoluindo frequentemente para a fibrose e crónica, quando os níveis de exposição são moderados e durante cerca de vinte a trinta anos (2). Recentemente, novas definições do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) classificam a Silicose como aguda (silicoproteinose) ou nodular, sendo que esta última inclui as formas acelerada e crónica (8).
DESCRIÇÃO DO CASO
Apresenta-se o caso de um doente do sexo masculino com 50 anos de idade. O doente apresentava um quadro inicial, com um mês de evolução, de dispneia para esforços médios, tosse seca, astenia e perda ponderal (quantificada em cerca de quatro quilogramas), tendo sido encaminhado à consulta de Pneumologia do hospital da área de residência pelo seu médico assistente em 2012. No que diz respeito aos antecedentes pessoais, destaca-se a Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) sob APAP (automatic positive airway pressure) e os hábitos tabágicos, que cessou em 2010, com uma carga tabágica de dez unidades maço-ano (UMA). Negava outras patologias conhecidas e referia prática habitual de atletismo. Salienta-se a história de exposição ocupacional e ambiental, durante cerca de vinte anos, como marteleiro numa pedreira e cerca de dois anos em minas de carvão (em Espanha), sem utilização de qualquer tipo de equipamento de proteção individual.
Dos exames complementares diagnósticos iniciais, pedidos após a avaliação em consulta de Pneumologia, destaca-se a Tomografia Computadorizada (TC) do Tórax (2012), com múltiplos micronódulos com tendência à confluência nos lobos superiores e no lobo médio, originando extensas áreas de consolidação com calcificações puntiformes no seu seio, aspeto que sugere fibrose maciça progressiva no contexto de Silicose. Nos lobos inferiores identificam-se vários pequenos nódulos calcificados. As provas de função respiratória demonstravam uma alteração obstrutiva, com diminuição do Volume Expiratório Forçado no primeiro segundo (VEF1) do Índice de Tiffeneau (VEF1/CVF) e défice de capacidade de difusão pulmonar para o monóxido de carbono (DLCO).
Tendo em conta a sintomatologia, a história ocupacional e os achados imagiológicos característicos, foi estabelecido diagnóstico de Silicose crónica e notificada a suspeita de doença profissional.
O doente manteve seguimento em consulta de Pneumologia, com necessidade de oxigenoterapia de longa duração a partir de 2015. Manteve também terapêutica com formoterol e budesonida, brometo de tiotrópio, montelucaste e carbocisteína. Realizou ainda o rastreio da tuberculose, através do Interferon-Y Release Assay (IGRA), com resultado negativo.
Por agravamento clínico e funcional foi referenciado a consulta de Transplante Pulmonar em 2017 com integração em lista de espera no final desse ano.
Dos exames complementares diagnósticos pré-transplante, destacam-se a Radiografia do Tórax (2019) que revelou múltiplos nódulos pulmonares infracentimétricos, alguns calcificados, com predomínio central e confluindo em opacidades peri-hilares, bilateralmente. Associadamente observa-se desvio da traqueia para a direita, por prováveis alterações fibróticas, mais expressivas no pulmão homolateral (figura 1).
Na TC tórax (2019), apresentava a nível dos lobos superiores consolidações com broncograma aéreo e focos cálcicos internos, que condicionavam bronquiectasias de tração e perda volumétrica, compatíveis com fibrose progressiva maciça no contexto de silicose; adenopatias hilares esquerdas com calcificações em “casca-de-ovo”, características de Silicose (figuras 2 e 3).
Em julho de 2019 o doente foi submetido a transplante unipulmonar direito que decorreu sem intercorrências, tendo apresentado evolução favorável no período pós-operatório.
DISCUSSÃO
O diagnóstico de Silicose crónica é, geralmente, um diagnóstico clínico baseado em três elementos-chave: história de exposição a sílica passível de causar a doença no tempo de latência adequado, imagiologia compatível e ausência de outro diagnóstico que possa justificar as alterações observadas. Raramente é necessário recorrer à biópsia pulmonar (2). Deve ser feito o diagnóstico diferencial com doenças cujos achados imagiológicos se assemelhem aos da Silicose, nomeadamente doenças infeciosas (micobactérias ou fungos), neoplasia pulmonar (quando a coalescência das lesões da fibrose progressiva maciça é unilateral ou assimétrica), Síndrome de Caplan (pneumoconiose dos mineiros do carvão), sarcoidose e histiocitose de células de Langerhans (8). As complicações mais habituais da Silicose são a infeção por micobactérias tuberculosas e não tuberculosas, doenças do tecido conjuntivo (esclerose sistémica progressiva, artrite reumatóide e lúpus eritematoso sistémico), insuficiência renal crónica, neoplasia pulmonar, Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, cor pulmonale e pneumotórax espontâneo (2).
A exposição prolongada a sílica, aumenta ainda o risco de adquirir tuberculose ao longo da vida (3,9). A silicose aumenta o risco de tuberculose ativa em até quatro vezes. Indivíduos com teste tuberculínico positivo e diagnóstico de Silicose apresentam risco aproximadamente trinta vezes superior para o desenvolvimento de tuberculose e devem realizar tratamento para a tuberculose latente (3).
A associação da Silicose e VIH tem um efeito multiplicativo, aumentando o risco de adquirir tuberculose ativa em quinze vezes (quando comparados com doentes sem diagnóstico de Silicose e VIH) (10).
Não existe terapêutica específica para a Silicose crónica. Os tratamentos disponíveis são de suporte e incluem a cessação tabágica (caso se aplique), broncodilatadores, oxigenoterapia e vacinação antipneumocócica e antigripal (8).
No caso de Silicose avançada, o transplante pulmonar é a única forma de reestabelecer a qualidade de vida e prolongar a sobrevida destes indivíduos (8).
Todos os doentes com evidência imagiológica devem evitar a exposição a partículas inaláveis de sílica, o que passa pela otimização das condições de trabalho, proteção das vias respiratórias e, em última instância, alteração do posto de trabalho ou até mesmo inaptidão definitiva para o trabalho. No entanto, uma vez instaurada a Silicose, o afastamento dos locais de trabalho não impede a evolução do processo pneumoconiótico (2) (11).
Assim, o reconhecimento precoce e o tratamento adequado das doenças pulmonares ocupacionais podem alterar significativamente o prognóstico do doente reduzindo as taxas de morbilidade e mortalidade (8).
No que diz respeito à monitorização da saúde dos trabalhadores, várias medidas podem ser implementadas, nomeadamente, a realização de uma história clínica detalhada que inclua antecedentes pessoais, ocupacionais e demográficos, exposições pregressas ou concomitantes, implementação de questionários padronizados com ênfase no sistema respiratório, Provas de Função Respiratória e Radiografia do Tórax (8).
Relativamente às medidas de proteção coletiva, estas passam por reconhecer em que circunstâncias se geram partículas de sílica e planear a sua eliminação sempre que possível. As medidas de contenção de risco, são a chave da prevenção primária. Sempre que possível o risco deve ser eliminado e substituído por alternativas como o óxido de alumínio, escória de carvão, escória de cobre, almandina, olivina, estaurolite, entre outros. Sempre que não é possível eliminar o risco, este deve ser reduzido através da alteração do processo (por exemplo, processos de transformação a húmido), redução das atividades suscetíveis de libertar poeiras, redução do tempo de exposição e permanência dos trabalhadores em locais de maior exposição, bem como a redução do número de trabalhadores expostos. A automação, os processos realizados em sistemas fechados, a adequada ventilação dos espaços e a separação das áreas limpas e contaminadas são outras medidas importantes. A limpeza das superfícies e pavimento dos locais de trabalho deve ser feita com regularidade, por aspiração ou a húmido. Não devem ser utilizadas escovas/vassouras ou ar comprimido. É também importante fazer a monitorização ambiental periódica do local de trabalho e colocar sinalização bem visível que delimite as áreas contaminadas.
Um estudo de 2008, realizado em pedreiras na Índia, demonstrou a redução da suspensão de partículas de sílica respiráveis em até 80% através da instalação de um sistema de spray de água, diminuindo assim a probabilidade de desenvolver Silicose, cancro pulmonar e tuberculose pulmonar (12).
Para além das medidas de proteção de caráter coletivo ou organizacional, devem ser implementadas medidas de carácter individual, das quais fazem parte, a promoção da prática de medidas de higiene pessoal para evitar exposição desnecessária a outros agentes no local de trabalho, o uso de roupa descartável ou de lavagem fácil e, sempre que possível, tomar banho e mudar de roupa ao sair do local de trabalho, prevenindo assim a contaminação de carros próprios, casas e outros locais (15).
Sempre que, apesar das medidas instituídas, não for possível manter o nível de exposição abaixo dos limites recomendados pelo National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH) - Recommended Exposure Limit (REL) 0.05 mg/m3 time-weighted average (TWA), é necessário implementar o uso de medidas adicionais de proteção, nomeadamente, equipamentos de proteção respiratória. É recomendado o uso de respiradores com filtros N95, R95 ou P95 para exposições a sílica em concentrações iguais ou inferiores a 0.5 mg/m3 (8) (13). Concentrações superiores requerem respiradores motorizados com purificação de ar (PAPR - Powered Air Purifying Respirators) (8) (14).
Os respiradores devem cumprir as normas estabelecidas pelo NIOSH (Guide to Industrial Respiratory Protection) e pela Occupational Safety and Health Administration (OSHA), ser mantidos, limpos e armazenados corretamente. Deve ainda ser avaliada a capacidade de o trabalhador desempenhar as suas funções enquanto usa o respirador e garantir que este se encontra bem-adaptado.
É essencial assegurar também a formação dos trabalhadores, garantindo que conhecem os potenciais efeitos nefastos da exposição a que estão sujeitos e as boas práticas de utilização dos equipamentos de proteção individual.
Estas medidas de proteção devem ser revistas e ajustadas regularmente pelo empregador. O método de prevenção primário deve ser a implementação de medidas de controlo mais eficazes nos locais de trabalho e não a utilização do equipamento de proteção individual (14-16).
Sempre que exista diagnóstico já estabelecido ou uma suspeita fundamentada é da competência do Médico, independentemente da especialidade, realizar a declaração obrigatória de suspeita ao Centro Nacional de Proteção contra os Riscos Profissionais.
CONCLUSÃO
Apesar dos vastos conhecimentos no que diz respeito à prevenção desta doença, novos casos de Silicose continuam a ser diagnosticados anualmente, em todo o mundo (8) e continua a existir uma prevalência significativa nos trabalhadores das pedreiras, com grande expressão nos territórios onde estas têm lugar.
Dada a inexistência de tratamento específico, é essencial que o investimento seja direcionado para a prevenção da doença. Após diagnóstico de Silicose, a vigilância da saúde, deve ser direcionada para a prevenção da progressão e desenvolvimento de complicações.
O Médico do Trabalho desempenha uma função essencial na delimitação de estratégias para minimizar a exposição de trabalhadores de risco, não só através da monitorização clínica regular, mas também tendo um papel ativo na literacia em saúde para os trabalhadores. A par disto, devem também ser asseguradas estratégias para um adequado controlo ambiental e assim reduzir, tanto quanto possível, a exposição à sílica no local de trabalho, prevenindo e diminuindo a incidência de Silicose e mortalidade nos trabalhadores.
Quando as medidas preventivas falham, e após o diagnóstico, a exposição deve ser evitada ou minimizada, se a evicção completa não for possível.
A subnotificação dos impactos do trabalho na saúde mantém-se uma problemática atual, mesmo quando estes estão bem estabelecidos e é possível aferir o nexo de causalidade com o trabalho e realizar o diagnóstico sem reservas.