INTRODUÇÃO/ENQUADRAMENTO
A designação doença de Kienböck foi proposta pelo radiologista austríaco Robert Kienböck, em 1910, contudo, a osteonecrose do semilunar foi inicialmente descrita por Peste, em 1943 (1).
Esta patologia atinge mais frequentemente homens entre os 20 e 40 anos de idade, principalmente o seu punho dominante (2) (3), podendo, invulgarmente, apresentar-se de forma bilateral (3). É considerada uma doença rara, com prevalência considerada inferior a 5/10.000, apesar da real incidência e prevalência não serem conhecidas (4).
A etiopatogenia não é consensual (5), havendo autores que defendem a relação com microtraumatismos iterativos de caráter profissional (6), causados pela utilização de máquinas, ferramentas ou instrumentos de trabalho geradores de forças impactantes (7), enquanto outros relatam não ser incomum a existência de um evento traumático isolado antecedendo, de meses a anos, o diagnóstico (1). A revisão de Stahl et al não encontrou evidência suficiente para atribuir as vibrações transmitidas ao membro superior como causa de doença de Kienböck (4). As variações anatómicas na forma (5) e vascularização do semilunar, nomeadamente a existência de irrigação estritamente palmar ou dorsal, ao invés da habitual dupla irrigação, poderão aumentar o risco de lesões vasculares isquémicas (8), contribuindo para a eventual necrose óssea avascular subjacente à patologia (1) (2). Ainda, Kim et al concluíram recentemente que tarefas que impliquem a flexão/extensão ou imobilização prolongada do punho possam contribuir para a doença, por hipoperfusão do semilunar em angulações extremas (2) (8). A variância cubital negativa (sendo o cúbito anormalmente mais curto que o rádio) pode ocorrer em 75 a 78% dos casos (9,10), causando uma maior pressão do cúbito sobre os ossos do carpo e alteração da transmissão das forças ao longo do eixo mão-punho-antebraço, bem como da própria cinética interóssea cárpica, com eventual lesão do semilunar (2) (9) (10). D’Hoore, Nakamura, Stahl S et al não encontraram esta relação com a variância cubital negativa (3) (11) (12).
Assume-se então que a fisiopatologia é multifatorial, existindo uma interação complexa entre fatores endógenos (variações anatómicas predisponentes) e exógenos (esforços em posições extremadas do punho, vibrações sobre o eixo mão-punho-antebraço e microtraumatismos repetidos) (2) (13).
O principal sintoma da doença de Kienböck é a dor localizada à face dorsal do carpo, agravada pela palpação e mobilização; contudo, por vezes, a intensidade não é correlacionável com o estádio radiológico (14). Deste modo, o médico deverá estar particularmente atento ao exame objetivo da mão, nomeadamente a exacerbação da dor pela palpação do carpo, a diminuição/assimetria da força de preensão e a dificuldade à mobilização nos extremos articulares, podendo manter-se o arco de movimento intermédio normal (9). Na presença destas alterações, o médico deverá prosseguir investigação com a realização de exames de imagem do punho (10), uma vez que o diagnóstico se baseia na história clínica compatível com achados imagiológicos em radiografia, tomografia computorizada ou ressonância magnética. A classificação de Lichtman de 1977, modificada por Stahl em 1947, baseia-se no aspeto radiográfico do semilunar nas várias fases da doença (videtabela 1) (10).
Estadio I | Semilunar com aspeto radiológico normal, podendo a ressonância já apresentar alterações de sinal, indicativas de isquemia, necrose e revascularização óssea |
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Estadio II | Esclerose no semilunar |
Estadio III A | Esclerose e fragmentação do semilunar sem colapso (sem alteração dos ângulos do carpo) |
Estadio III B | Presença de fragmentação do semilunar com colapso do carpo |
Estadio IV | Osteoartrose do carpo |
A terapêutica visa retardar a progressão da doença e melhoria funcional, enquanto se proporciona alívio sintomático. O tratamento conservador, com imobilização, analgesia e reabilitação fisiátrica, é indispensável nas fases iniciais, contudo, é possível a deterioração estrutural das lesões, não obstante a aparente eficácia das intervenções terapêuticas, impondo a necessidade de intervenção cirúrgica (1) (5) (15). Existem várias opções, dependendo da idade do doente, da intensidade da dor e do arco de mobilidade (2) (16), das quais são exemplo a revascularização, nivelamento, carpectomia e artrodese do punho (16) (17).
Atualmente, a abordagem cirúrgica que permite melhoria álgica com preservação da força muscular e da mobilidade do punho no estadio 3B de doença de Kienböck (semilunar não colapsado) é a artrodese do carpo, não se recomendando a colocação de prótese do semilunar dada a elevada taxa de insucesso (18).
Na mecânica automóvel, assim como em outros trabalhos manuais pesados, a doença de Kienböck poderá estar associada à exposição a diversos fatores de risco profissional (4), nomeadamente vibrações, posturas de trabalho não fisiológicas e microtraumatismos repetidos. Estes perigos podem ser controlados pela adequada utilização de equipamentos de proteção individual (19), como as luvas anti vibratórias, ou pelo uso de equipamentos mais sofisticados incorporando mecanismos para atenuação das vibrações.
Em Portugal, o capítulo IV da lista das Doenças Profissionais inclui a osteonecrose do semilunar no grupo das “doenças provocadas por agentes físicos”, sendo apontado como fator de risco as “vibrações mecânicas transmitidas ao membro superior (MS) por máquinas, ferramentas e outros equipamentos”, com exposição mínima de um ano (7). Vibrações transmitidas ao MS (eixo antebraço-mão) de baixa frequência foram apontadas como causa de microtraumatismos repetidos, suscetíveis de induzir necrose óssea (6), podendo estar implicadas noutras patologias vibrações (19), como é o caso das síndromes compressivas canalares ou da doença vibratória mão-braço (7).
CASO CLÍNICO
APMS, homem de 44 anos, sem antecedentes pessoais de relevo e sem medicação habitual, mecânico em oficina de automóveis, há dezoito anos. Recorreu ao médico assistente por dor no dorso da mão direita, com oito meses de evolução, sem traumatismos prévios do membro, tendo sido submetido a cirurgia eletiva do punho direito, em 2006 e iniciado utilização de luvas de proteção, não sabendo precisar se possuíam tecnologia anti vibratória. Refere agravamento progressivo da dor ao longo dos anos subsequentes, apresentando, em 2014, incapacidade para as atividades profissionais e da vida diária. Foi referenciado à consulta hospitalar de Medicina Física e de Reabilitação, referindo dor no punho direito em repouso, mas muito agravada na flexão-extensão, limitando as amplitudes articulares, manifestando também queixas na palpação do carpo. A ressonância magnética de junho 2015 revelou “...dismorfia, achatamento e esclerose do osso semilunar, sugerindo sequelas de doença de Kienböck, mais evidentes na sua vertente radial (...) ligeiro edema medular ósseo difuso na vertente ulnar (...) ligeiras alterações de osteonecrose no polo proximal do osso escafoide”. O trabalhador foi referenciado à consulta de Ortopedia com o diagnóstico de doença de Kienböck grau 3B da classificação de Lichtman (vide figura 1) em outubro do mesmo ano.
Foi efetuada artroplastia do semilunar, com tunelização do flexor radial do carpo (FRC), tendo sido reintervencionado, aos seis meses, com ligamentoplastia aberta e enxerto do longo extensor radial do carpo, por instabilidade escafolunar e limitação articular significativa (vide figura 2).
Apresentava amplitudes articulares ativas quase nulas, sendo muito limitadas à mobilização passiva: flexão palmar 0º e extensão 40º, inclinação radial nula e cubital 10º; prono-supinação sem limitação; força muscular grau 4, limitado pela dor, principalmente em carga. Apesar de fisioterapia contínua, prótese bem posicionada e preservação dos espaços interarticulares, verificou-se agravamento álgico e funcional progressivos com redução subsequente das amplitudes articulares e intolerância, por dor intensa, ao tratamento fisiátrico. Em setembro de 2017, foi submetido a exérese da prótese e da fileira proximal do carpo (vide figura 3).
No final de 2018, apesar do ligeiro ganho de força, o doente mantinha dor na face volar do punho e limitação muito acentuada da mobilidade, tendo sido proposta artrodese do punho, que recusou por considerar tolerável a dor. Atualmente, encontra-se em situação de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, após ter sido realizada a respetiva participação de suspeita de doença profissional ao Departamento de Proteção Contra Riscos Profissionais e decorrido o subsequente procedimento de reconversão profissional de acordo com a capacidade restante decidida em sede de Tribunal do Trabalho, mantendo atividade profissional como carteiro/responsável de expediente numa empresa de maiores dimensões onde não refere limitações.
DISCUSSÃO
No caso descrito, a doença seguiu o curso natural (15) com apresentação insidiosa e progressiva, evoluindo para incapacidade funcional após vários anos de sintomatologia dolorosa (5). Foi observado e intervencionado primeiramente noutro hospital, contudo, a clínica sugestiva de Kienböck foi confirmada por imagem de ressonância magnética (10).
Relativamente às causas para a doença, sendo a variância cubital praticamente neutra, infere-se que os outros fatores de risco, nomeadamente a exposição profissional a vibrações transmitidas ao membro superior, terão contribuído de forma decisiva para a história natural da doença (6) (7).
Inicialmente, cumprindo as melhores práticas na abordagem desta patologia, optou-se pelo tratamento conservador, dado que o trabalhador apresentava dor tolerável e pretendia manter a sua atividade profissional, contudo, houve necessidade, como aliás é frequente (5), de várias intervenções cirúrgicas e de prolongada terapêutica fisiátrica. A degradação estrutural do semilunar e, eventualmente, outras razões não explicitadas, como a vontade do trabalhador em preservar a mobilidade e força de preensão (17) ou a eventual preferência ou experiência do cirurgião, terão contribuído para a escolha da técnica (18). Se o doente tivesse sido intervencionado à luz dos conhecimentos atuais, poderia ter-lhe sido realizada inicialmente a artrodese do carpo, permitindo o alívio da dor, com manutenção de razoável mobilidade e força muscular, capacidades fundamentais para os mecânicos, bem como para outros trabalhadores manuais, realizarem plenamente as suas tarefas.
O trabalhador refere “maior atenção na utilização de luvas” após o diagnóstico, desconhecendo se seriam as adequadas para mitigar vibrações. Sabe-se que evoluiu desfavoravelmente, apresentando atualmente algia residual em repouso, muito agravada na mobilização da articulação do punho, a condicionar limitação funcional franca, com incapacidade para a realização da sua profissão habitual, bem como das tarefas da vida diária da qual é exemplo a incapacidade para a condução. O desfecho poderia ser mais favorável se o trabalhador tivesse sido condicionado nas tarefas que implicassem exposição a vibrações e/ou movimentos repetidos em carga, ou mobilizado dentro da empresa para uma área onde não estivesse exposto a esses perigos, contudo desconhece-se o seguimento dado pelo Médico do Trabalho em causa, sabendo ainda (sem isentar responsabilidades) da dificuldade de gestão destas situações em empresas familiares.
CONCLUSÃO
Os autores pretendem alertar para a potencial gravidade das lesões músculo-esqueléticas (de que é exemplo a artrose grave na doença de Kienböck), decorrentes de atividades profissionais com risco elevado de natureza física e/ou mecânica, com elevado impacto na saúde e qualidade de vida dos trabalhadores. Sendo as doenças profissionais potencialmente evitáveis, é crucial investir na prevenção da exposição aos perigos mecânicos associados a patologias com longo período de evolução. Contudo, confirmando-se a impraticabilidade da eliminação destes perigos na origem, o seu indispensável controlo deverá contemplar a adequada utilização de equipamentos de proteção individual e a escolha de equipamentos de trabalho mais sofisticados, com mecanismos para atenuação de vibrações incorporados.
No exame de aptidão de trabalhadores expostos a estes fatores de risco, o Médico do Trabalho dever procurar ativamente sinais, ainda que subtis, de patologia das estruturas potencialmente afetadas (mão e/ou punho), que devem motivar investigação clínica com exames de imagem. Quanto mais precoce o diagnóstico maior a probabilidade de sucesso do tratamento, sendo a suspeita diagnóstica fundamental para a instituição de condicionantes laborais e/ou adaptações do posto de trabalho, evitando diagnósticos tardios, permitindo a preservação funcional. Apesar dos entraves económicos e logísticos à sua realização sistemática, a ressonância magnética do punho é o exame com maior sensibilidade em estádios iniciais, pelo que deverá ser realizada nos trabalhadores com suspeita de doença de Kienböck.
Esta abordagem preventiva permite minimizar a ocorrência de lesões com profunda implicação na funcionalidade e capacidade de trabalho, evitando desfechos menos favoráveis, que condicionam ausências laborais prolongadas e, eventualmente, incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual. Os autores destacam ainda a importância da informação aos profissionais sobre os riscos a que estão expostos, bem como da formação para as adequadas medidas preventivas e correta utilização do equipamento de proteção individual, como meio de consciencialização dos trabalhadores para serem os próprios agentes de Saúde Laboral.