INTRODUÇÃO
Os carcinomas da tiroide (CT) incluem um vasto espetro de lesões benignas e malignas. Mais de 95% são originários das células foliculares da tiroide, enquanto 2-3% surgem como carcinoma medular de tiroide (CMT), tendo origem nas células C produtoras de calcitonina (1).
Os CT podem ser divididos em bem diferenciados, que correspondem a 90% de todos os cancros da tiroide, CMT e os anaplásicos e mal diferenciados (7-8%). Os carcinomas bem diferenciados dividem-se histologicamente em carcinoma papilar da tiroide (80-85%), carcinoma folicular da tiroide (10-15%) e carcinoma de células de Hurtle (3-5%) (1). Os CMT são clinicamente classificados em cancros esporádicos ou familiares. Os esporádicos ocorrem como cancros localizados com rara afeção dos gânglios linfáticos e correspondem a 70% de todos os casos, enquanto os cancros familiares, os restantes 30%, geralmente, têm o diagnóstico quando a doença já é avançada (1) (2). Os CMT familiares associam-se à síndrome da neoplasia endócrina múltipla (MEN) tipo 2A e 2B e incluem os feocromocitomas e a hiperplasia paratiroide.
Embora os CT bem diferenciados, como os carcinomas papilar e folicular, se associem a um excelente prognóstico, com taxas de sobrevida superiores a 98%, uma parte destes doentes terá doença recorrente (1) (3). O CT é a neoplasia endócrina maligna mais comum. A morte por CT ultrapassa a soma das mortes por todos os outros cancros endócrinos (4) (5).
Vários fatores de risco para CT estão descritos. O fator ambiental mais bem definido, especialmente para o carcinoma bem diferenciado, é a exposição a radiação ionizante, que aumenta o risco de neoplasia maligna de 5 a 50% (6) (7). O aporte alimentar inadequado de iodo pode influenciar a incidência e prevalência de doenças da tiroide em geral e de CT em particular (8), sendo que a deficiência de iodo está associada a um aumento do risco de carcinoma folicular; contudo, por sua vez, a alta ingestão de iodo associa-se a um aumento do risco de carcinoma papilar (9). Uma dieta com excesso de hidratos de carbono e proteínas, assim como o excesso de peso, também se associam a aumento do risco de CT (10). Num estudo foi calculado um risco dez vezes maior de CT se existisse história familiar de neoplasia da tiroide (11). Outros fatores de risco possíveis, mas não totalmente comprovados, incluem a exposição ocupacional a radiação ionizante (12) (13); o trabalho por turnos (14); a hepatite crónica relacionada ao vírus da hepatite C (15) e o aumento da paridade e a idade avançada na primeira gravidez (16).
A incidência de CT foi de 14,6 por 100 000 indivíduos por ano, em séries de casos de 2015-2019 com ajuste à idade. O rácio feminino/masculino é de aproximadamente 2,8:1, com 21,3 casos por 100 000 indivíduos do sexo feminino. O diagnóstico é frequentemente realizado em indivíduos com 45 a 54 anos (17).
A apresentação clínica do CT é, por norma, um nódulo tiroideu detetado pelo doente, em exame de rotina ou de imagem. Uma adenopatia indolor na região frontal do pescoço, disfagia, dispneia, rouquidão ou alterações da voz são sintomas típicos (18). O diagnóstico, geralmente, é feito por biópsia aspirativa por agulha fina (18).
DESCRIÇÃO DO CASO
Trata-se de uma Enfermeira de 25 anos que exercia funções no internamento do serviço de cuidados paliativos num hospital terciário.
A profissional recorreu ao Serviço de Saúde Ocupacional do hospital com queixas de aumento de gânglios cervicais. Estas queixas iniciaram-se em momento coincidente com a toma da segunda dose da vacina da COVID-19 - Comirnaty®, que tinha realizado dois meses antes.
Da anamnese realizada não se encontraram antecedentes pessoais de destaque e, a nível familiar, apenas carcinoma renal num parente de primeiro grau. No decorrer do exame apresentou um estudo analítico prévio em que o hemograma e o estudo das hormonas tiroideias estava normal. Do exame físico realizado apresentava uma massa palpável na região tiroideia e supraclavicular direita. O seu índice de massa corporal era de 19.2 kg/m2. Para além disso, era evidente uma disfonia/rouquidão que teria iniciado cerca de seis a nove meses antes da consulta e que a funcionária teria desvalorizado, atribuindo a etiologia ao tabagismo. A nível laboral, realizava trabalho por turnos e não estava exposta a radiação ionizante ou a fármacos citotóxicos.
Foi requisitado estudo analítico e ecografia cervical. Os níveis de TSH, T3 e T4 livre encontravam-se normais, assim como os níveis de anti-tiroglobulina e de anti-peroxidase. A ecografia cervical apresentou vários focos ecogénicos com microcalcificações no lobo direito da tiroide, numa extensão máxima de 37 mm com áreas quísticas/necróticas no seu seio. Para além disso, as cadeias linfáticas cervicais direitas apresentavam uma adenopatia com 11 mm de eixo curto, de parênquima heterogéneo, com pequenos focos ecogénicos parenquimatosos, sugestivos de microcalcificações. Estes achados motivaram a realização de biópsia, na qual o estudo histológico confirmou tratar-se de carcinoma papilar da tiroide. A adenopatia apresentou o resultando de carcinoma papilar metastizado.
Estes achados motivaram a avaliação pela consulta de grupo de Patologia Endócrina, sendo decidida a realização de tiroidectomia total com esvaziamento ganglionar cervical dos compartimentos central e lateral direito. Na referida consulta, após realização do estadiamento tumoral, atendendo à possibilidade de existirem metástases ocultas, foi iniciado iodo radioativo, mantendo atualmente seguimento em consulta.
Em seguida foi avaliada no Serviço de Saúde Ocupacional, em exame ocasional, no qual foram ponderados os achados e a exposição laboral, resultado numa revisão da aptidão, ficando apta condicionada, com evicção de trabalho noturno.
DISCUSSÃO
O caso clínico descrito teve a apresentação clínica de um gânglio cervical detetado por exame de imagem (17), seguindo a remoção cirúrgica e tratamento com iodo radioativo, que segundo a literatura permite a cura de mais de 90% dos CT localizados e bem diferenciados (19).
No que diz respeito ao trabalho por turnos, embora não seja consensual, alguns estudos defendem que a disrupção do ciclo circadiano pode aumentar o risco de desenvolver nódulos tiroideus (20) e que este se associa a um aumento dos valores de TSH (21), estando mesmo proposta uma relação entre a disfunção do ciclo circadiano e CT (14). Contudo, os estudos centram-se apenas em indivíduos saudáveis e não medem os casos de recorrência de CT e trabalho noturno. Consequentemente, o seguimento a nível ocupacional deverá passar por uma comunicação periódica com os clínicos que fazem o acompanhamento da doença. Dessa forma e dada a possibilidade de metástases ocultas, é racional manter a restrição ao trabalho por turnos enquanto decorrer o tratamento com iodo radioativo. Dado o bom prognóstico da doença, não será justificável prolongar a isenção de trabalho noturno para lá da cura clínica e da alta da consulta de grupo de patologia endócrina. De destacar que o CT bem diferenciado com metástases distantes está associado a uma sobrevida a 10 anos de 90% se existir bom aporte de iodo e o tumor entrar em remissão após o tratamento. De contrário, a taxa de sobrevida é apenas de 10% (19).
Nesse sentido, a dificuldade em decidir a aptidão para o trabalho passa, sobretudo, pelo período compreendido entre o final do tratamento e a determinação da cura. A estratégia pensada e discutida pelo serviço consiste em, inicialmente, restringir o trabalho noturno para uma noite por semana. Embora, o Código do Trabalho português, no seu artigo 225.º, indique que a realização de trabalho noturno deva ter uma vigilância em saúde de periodicidade anual (22), neste caso específico e para o período em questão, é racional encurtar a vigilância de saúde da funcionária, de forma a fazer exames de seis em seis meses, seja encurtando a periodicidade dos exames periódicos, seja alternando com ocasionais. Contudo, não existe literatura, ao melhor conhecimento dos autores, que fundamente esta ou outra abordagem. Caso o tumor não entre em remissão pode fazer sentido prolongar a isenção de trabalho noturno de forma indefinida.
CONCLUSÃO
A pertinência do caso clínico surge com o objetivo de alertar para as vantagens de um serviço de Saúde Ocupacional e a sua capacidade de dar resposta atempada e célere a diversas patologias da população laboral, assim como participar no encaminhamento para outras entidades e departamentos, com o potencial curativo e de seguimento. Tal traduz-se em importantes ganhos em saúde e impacto no diagnóstico e orientação de diferentes patologias.
Este caso também oferece um raciocínio no que concerne à gestão da evicção do trabalho noturno no pós-diagnóstico de cancro da tiroide, exemplificando uma possível via de adaptação do trabalho por turnos e de quanto tempo se deve prolongar essa restrição, numa ótica de melhoria contínua de prevenção de doença, que ultrapassa a prevenção primária e secundária, e também com melhoria da saúde laboral.