INTRODUÇÃO
A psitacose, também conhecida como febre dos papagaios ou ornitose, é uma zoonose causada sobretudo pelo microrganismo Chlamydia psittaci, uma bactéria de reduzidas dimensões cujos portadores incluem mais de 467 espécies de aves (1) (2). A maioria dos casos de infeção em humanos devem-se a animais das ordens Psittaciformes, que abrange os periquitos e papagaios, bem como Galliformes, que inclui galinhas e perus. Outras aves, como pombas ou patos, podem também contribuir para a transmissão da zoonose (3). Em Portugal, está incluída na lista de doenças de declaração obrigatória da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) (4).
Desde infeção assintomática até uma pneumonia potencialmente ameaçadora de vida, se não for corretamente tratada, a psitacose, quando clinicamente evidente, manifesta- se por sintomas típicos de uma pneumonia adquirida na comunidade, que podem incluir febre, astenia, tosse não produtiva, dispneia ou toracalgia (5).
A transmissão pode ocorrer por inalação de poeiras das penas, secreções nasais ou fezes das aves contaminadas (6), mas também através do contato direto seja por boca-bico, manipulação da plumagem, eliminação inapropriada de carcaças, produtos de abortamento ou placentas, ou picadas dos animais (7).
A doença surge através do contacto com animais domésticos, mas também mediante exposição ocupacional. Entre os grupos com maior risco de transmissão incluem-se veterinários, funcionários de lojas de animais e trabalhadores da indústria aviária (5).
Encontram-se descritos surtos de psitacose, com quadros pneumónicos graves associados, por exposição ocupacional (8), sendo reconhecida como doença ocupacional oficial (9), também em Portugal (10).
Apesar das infeções serem frequentemente assintomáticas e os surtos esporádicos, a psitacose pode condicionar morbilidade importante, não devendo ser negligenciada no ambiente laboral. Neste sentido, a Saúde Ocupacional assume um papel preponderante, seja pela avaliação do risco de exposição como a implementação de medidas coletivas e pessoais para o diminuir, concretamente, desinfeção dos locais de trabalho, higiene das mãos, isolamento dos animais e profissionais que pareçam infetados, vigilância médica adequada e formação; bem como equipamentos de proteção individual (EPI), como luvas, bata/avental/fato/macacão, manguitos e máscaras respiratórias/viseiras, descritas abaixo (9).
Pretende-se com este trabalho, resumir as principais características da psitacose e expor a preponderância desta patologia para a Saúde Ocupacional.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
-P (population): trabalhadores com tarefas que impliquem risco de contrair psitacose.
-I (interest): resumir informação relevante sobre as consequências da patologia e a melhor forma de diminuir o risco de transmissão ocupacional.
-C (context): saúde ocupacional nas empresas com postos de trabalho com risco de exposição a agentes patogénicos causadores de psitacose.
Assim, a pergunta protocolar será: Quais as implicações da psitacose na Saúde Ocupacional e que medidas de proteção poderão ser tomadas para reduzir o risco transmissão?
Foi realizada uma revisão da literatura, realizada em junho de 2022, através da pesquisa bibliográfica de artigos originais publicados em português, inglês ou espanhol, nas bases de dados PubMed e Cochrane Library, utilizando as palavras-chave “Psittacosis”, “Occupational exposure” e “Occupational health”. Incluíram-se ainda três artigos, não abrangidos pela pesquisa, relevantes para este trabalho, por espelharem a realidade portuguesa.
CONTEÚDO
Etiologia e Fisiopatologia
A psitacose é uma zoonose causada sobretudo pela bactéria Chlamydia psittaci, um microrganismo gram-negativo, intracelular obrigatório (11), que infecta principalmente aves, mas que pode ser transmitida ao ser humano através da inalação de aerossóis e poeiras, contaminados com origem na urina, fezes ou outras secreções dos animais (12).
O ciclo de vida da C. psittaci tem a particularidade de envolver duas formações clamidiais diferentes, o corpo elementar e o corpo reticular. O primeiro, uma partícula de 0,2 a 0,3 µg, medeia a infeção de células suscetíveis, enquanto o último, com 0,5 a 1,3 µg, é responsável pela multiplicação da bactéria dentro da célula do hospedeiro. De forma breve, o corpo elementar liga-se à membrana citoplasmática da célula do hospedeiro, induzindo a sua internalização através de um vacúolo, contornando a sua eliminação por fusão fagossomo-lisossomal. Uma vez internalizados, o corpo elementar converte-se no corpo reticular. Estes originam projeções na membrana da bactéria que facilitam a obtenção de nutrientes (11).
Esta tem também a particularidade de causar dano celular mínimo ao hospedeiro, podendo permanecer indetetável enquanto se multiplica. Para tal, usa os organelos presentes nas células do hospedeiro para sintetizar o seu próprio material celular bacteriano. Eventualmente, o corpo reticular volta a converter-se em elementar, originando uma libertação de partículas que permitem a propagação da infeção a outras células (11).
Adicionalmente existem outros componentes da membrana celular importantes para o ciclo de vida do microrganismo: os lipopolissacarídeos, que perturbam o reconhecimento e citólise imunomediados, as proteínas de choque térmico, que modificam o ambiente intracelular do hospedeiro para o tornar mais propício ao desenvolvimento das células bacterianas e as diversas proteínas ricas em cisteína, que têm função de porinas, adesinas e proteínas estruturais facilitando a adesão e entrada nas células do hospedeiro (11).
Fatores de risco
A exposição ocupacional a aves é o principal fator de risco para o desenvolvimento da doença. Trabalhadores com ocupações que envolvam contato com aves vivas ou carcaças de aves, como veterinários, criadores ou manipuladores de aves e trabalhadores de lojas de animais, são mais suscetíveis a serem infetados (12). Associadamente, a exposição recreativa, como nas exposições na columbofilia, também acarreta risco. A exposição a aves domésticas, de estimação ou em zonas com alta densidade de aves selvagens também pode potenciar o desenvolvimento de psitacose (3) (13). De facto, foram descritos surtos na década de 30, intimamente relacionados com a importação de aves da América do Sul. Por outro lado, décadas mais tarde, começaram a ser identificados surtos nas explorações aviárias tanto na Europa como nos Estados Unidos da América (14).
A transmissão do patogénio aos seres humanos pode ser realizada através da inalação de excrementos secos ou secreções de aves infetadas (6) (13) (15), bem como pelo contato direto com penas, tecidos, ou por contato boca-bico (7) (16). Adicionalmente, certas atividades como a jardinagem ou relacionadas com a agricultura, pela manipulação de solos eventualmente contaminados, podem expor o indivíduo ao agente infecioso (14). A transmissão de humano para humano, por outro lado, apesar de já descrita na literatura, é francamente rara, sendo um dos casos mais citado, o de um doente com psitacose severa que infetou outros dez indivíduos (17).
Apresentação clínica
Tal como as diferentes formas e contextos de contágio, que podem variar desde o caso esporádico de um dono de aves de estimação, até um surto que afeta inúmeros animais numa indústria aviária e consequentemente vários trabalhadores, a apresentação da doença é também muito variável (3).
A psitacose pode ser assintomática ou manifestar-se, geralmente entre cinco a 14 dias após a exposição, tendo sido reportados períodos até um mês. Apesar de frequentemente benigna, pode nalguns casos conduzir à morte do indivíduo, se não for corretamente tratada (14) (18). Apesar de não ser esse o papel direto do clínico na Saúde Ocupacional, importa referir as manifestações sintomáticas nos animais, uma vez que podem auxiliar ao diagnóstico pelo questionário epidemiológico. À semelhança dos humanos, os animais podem também não revelar sintomas, apesar de terem altas taxas de incidência numa determinada população (19). Quando sintomáticos, sobretudo as aves de estimação, podem-se apresentar com letargia, anorexia, desgaste das penas, corrimento ocular/nasal ou diarreia. De forma geral, nos quadros agudos predominam os sintomas do trato respiratório superior, a letargia e a diarreia, e com o desenvolvimento da doença, a ave torna-se emagrecida e com aspeto doente (7).
Relativamente aos humanos, quando a infeção acarreta sintomatologia, cursa com febres altas (até aos 40.5ºC), acompanhadas por tosse não produtiva, dispneia e cefaleias intensas (14). Este último sintoma, pode ser de tal maneira exuberante, que leva, muitas vezes, a suspeitar-se da possibilidade de infeção do sistema nervoso central (3). Raramente, pode cursar com hemoptises ou outros sintomas inespecíficos, como alterações cutâneas ou gastrointestinais, como vómitos, abdominalgia ou diarreia. Na forma mais rara, complicações como miocardites, endocardites, encefalites, icterícia, síndrome de dificuldade respiratória aguda e falência multiorgânica podem também ocorrer (3) (14). Nas grávidas o quadro de pneumonia atípica pode-se acompanhar de hepatite, insuficiência renal, sépsis, parto prematuro ou morte fetal (14).
Diagnóstico
Ao exame físico podemos encontrar alterações à auscultação pulmonar, com crepitações, bem como alteração do estado de consciência, rigidez cervical, fotofobia ou hepatoesplenomegalia (3).
Laboratorialmente, a contagem de leucócitos está geralmente entre normal a ligeiramente diminuída durante a fase aguda da doença, evoluindo para leucopenia em cerca de 25% dos casos (14). Parâmetros sanguíneos, como PCR e enzimas hepáticas aumentadas, parecem estar relacionados com a gravidade da infeção. Nos doentes hospitalizados, as radiografias de tórax são anormais em até 90% dos casos. Nos restantes, mais comumente, é visível uma condensação unilateral, densa no lobo inferior (3) (18), mas infiltrados bilaterais, nodulares, miliares ou intersticiais podem, também, estar presentes (20). O diagnóstico baseia-se na clínica, no contexto epidemiológico, no estudo serológico e na pesquisa por Polymerase Chain Reaction- PCR (urina, secreções orofaríngeas e sangue) (6).
O ciclo de vida intracelular da C. psittaci tem implicações consideráveis no seu diagnóstico, já que necessita de culturas celulares para isolamento. É possível, também, o seu isolamento diretamente nas fezes ou zaragatoa nasal, faríngea ou de exsudado conjuntival de aves infetadas. De qualquer das formas o exame cultural é pouco frequente dado o risco de aerossolização das partículas, exigindo condições de segurança elevadas (6) (7). Atualmente os métodos mais recomendados para o diagnóstico de psitacose são PCR, serologia por ELISA, imunofixação direta ou indireta ou aglutinação dos corpos elementares. É também possível a coloração por imunofluorescência e imunohistoquímica em esfregaços, disponíveis em kits comerciais (7).
Tratamento
O tratamento empírico de pneumonia adquirida na comunidade nem sempre abrange C. psittaci, principalmente quando são administrados antibióticos de primeira linha, como os beta-lactâmicos. O patogénio supracitado é sensível a macrólidos e tetraciclinas, mas estes últimos são o fármaco de eleição (15). No entanto, são contraindicadas em mulheres grávidas e crianças pequenas.
Efetivamente, a doxiciclina é o antibiótico recomendado (3) (14). De acordo com estudos in vitro, os macrólidos são a alternativa mais comum, podendo, inclusivamente, ser utilizados em grávidas e crianças até aos oito anos (15). A velocidade de desenvolvimento de resistência à azitromicina é muito rápida e, portanto, deve ser utilizada com precaução (5) (6).
Relativamente às fluoroquinolonas, existem ainda poucos estudos desenvolvidos pelo que não devem ser utilizadas como tratamento de primeira linha (3).
Com tratamento antibiótico adequado, a percentagem de morte é inferior a 1%. Sem tratamento com antibióticos, a percentagem pode passar para 10 a 20%. A resposta terapêutica pode ser conseguida no espaço de 24-48h, no entanto o fármaco deve ser continuado por, pelo menos, 14 dias. Doentes hospitalizados com pneumonia grave, por C. psittaci, podem necessitar tratamento intravenoso, combinado com tetraciclinas e quinolonas (5).
Prevenção
As medidas de prevenção, de prática diária, baseiam-se principalmente na prevenção do contacto entre aves infetadas e seres humanos, tanto quanto possível. Existem duas formas de prevenção: coletiva e pessoal. As medidas de proteção coletiva relacionam-se com:
- Ventilação dos espaços de trabalho: naturais como portas, janelas e sistemas ventilação; artificiais como filtros de ar com alta eficiência na separação de partículas; ventilação adicional nos espaços de trabalho de maior risco de contágio;
- Limpeza: deve ser diária, seguindo protocolos rigorosos, utilizando medidas de proteção e elaboração de um plano de limpeza, com recurso a trabalhadores especializados;
- Equipamento: inspecionar e limpar os sistemas de ventilação; auditorias regulares dos equipamentos de proteção individual (EPI) e proteção respiratória (EPR);
- Resíduos: condições regulamentadas de armazenamento e eliminação, em áreas com acesso restrito, com regras próprias no manuseio;
- Organização: avisos de segurança e perigo, visíveis e percetíveis; medidas de controlo de pragas; atualizações regulares dos protocolos de segurança, procedimentos de acesso e monitorização da exposição aos resíduos;
Por outro lado, de forma mais individualizada, podem ser adotadas as seguintes medidas de proteção individual:
- Higiene: lavagem das mãos regular e meticulosa; instalação sanitárias adequadas e suficientes;
- Equipamento de proteção individual (EPI): luvas, botas de borracha/sapatos descartáveis, óculos, touca, aventais de plástico descartáveis, com certificação europeia e regularmente trocados, sobretudo após contaminação e antes dos intervalos;
- Equipamentos de proteção respiratória: utilizar máscaras N95 ou FFP2, idealmente, FFP3 e N99. As máscaras cirúrgicas não são eficazes. Todo o equipamento deve ter certificação europeia e a sua eliminação e reutilização deve respeitar um protocolo pré-estabelecido.
- Outras: não fumar, não usar maquilhagem, não manusear lentes de contacto, não armazenar comida nem mascar pastilha elástica. Condições de armazenamento e revisão periódica dos EPIs.
É também muito importante uma intervenção dinâmica e didática por parte da equipa de Saúde Ocupacional, que promova a consciencialização da patologia e sobretudo dos fatores de risco e medidas preventivas da mesma, para que estas últimas sejam mais facilmente aceites e perpetuadas pelos trabalhadores (9).
No caso de um pássaro mantido como animal de estimação, é aconselhável ser testado por um veterinário se o comerciante de aves não o fizer primariamente. O veterinário é também a pessoa designada para avaliar e possivelmente tratar aves suspeitas e doentes, nomeadamente através de antibioterapia dirigida (3) (5).
C. psittaci é suscetível a muitos desinfetantes e detergentes, bem como ao calor, mas é resistente a soluções ácidas e alcalinas. Desinfetantes eficazes incluem compostos de amónio quaternário, aldeídos (por exemplo, formaldeído, glutaraldeído), álcool isopropílico a 70%, hidróxido de sódio (incluindo uma preparação 1:32 de lixívia doméstica) e clorofenóis (5).
A prevenção pode ser um desafio, pois as aves infetadas podem ser assintomáticas ou apresentarem poucos sinais de doença (15). Fatores de stress, como transporte, realocação, aglomeração, lesões e doenças podem exacerbar as excreções de aves infetadas (20). Adicionalmente, trabalhadores que desenvolvem psitacose podem permanecer sem diagnóstico, porque os sintomas geralmente são leves e inespecíficos e os pacientes podem não procurar atendimento médico (5). Além do mais, o baixo nível de suspeição clínica desta patologia, aliada à deficiente marcha diagnóstica contribuem para o baixo número de casos reportados, por provável subdiagnóstico (21). Atualmente, não existem vacinas disponíveis para uso em humanos ou em animais, no entanto, a vacinação com um plasmídeo recombinante de DNA contendo o gene C. psitacci ompA forneceu proteção significativa (parcial) em perus e periquitos, livres de patógenios, infetados experimentalmente (5).
O médico do trabalho desempenha um papel central e abrangente, ora como investigador na avaliação da exposição, na elaboração das medidas de controlo dessa exposição, na formação e consciencialização do pessoal, na verificação da correta implementação e uso das medidas de proteção, no exame médico anual e a identificação de funcionários de alto risco, bem como elo de comunicação entre empregador, funcionários, representantes locais de saúde (9).
CONCLUSÃO
A psitacose é uma zoonose cujos reservatórios do patogénio são frequentemente as aves. Apesar do número reduzido de casos, o impacto da doença é, muito provavelmente, subestimado. Por um lado, torna-se necessário um aumento da consciencialização desta patologia tanto para os clínicos de Medicina do Trabalho como, inclusivamente, para empregadores e trabalhadores. Por outro lado, é necessária uma abordagem de saúde unitária, que englobe a estreita colaboração entre agências de saúde humana e animal, laboratórios de diagnóstico médico e veterinário, hospitais, médicos e veterinários, para vigilância de C. psittaci, notificação imediata e tratamento correto da fonte de infeção. Assim, é de extrema importância tanto a anamnese como o reconhecimento precoce do contexto epidemiológico, tendo em vista o diagnóstico atempado e a instituição da terapêutica adequada. Associadamente, devem ser considerados os fatores de risco ocupacional e controlo das exposições entre os trabalhadores, de forma a prevenir a transmissão de doenças no local de trabalho.