INTRODUÇÃO
A Tuberculose (TB) é uma doença infeciosa causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis que se dissemina através de microgotículas expelidas para o ar, quando, por exemplo, uma pessoa infetada tosse, espirra ou vocaliza. É também disseminada através de secreções aerossolizadas ou através da manipulação laboratorial quando em contato com lesões na pele não íntegra. A transmissão geralmente requer um contato prolongado em ambiente confinado e depende do grau de contágio, proximidade e duração do contato (1).
É uma das principais causas de morte no mundo e até à pandemia do coronavírus (COVID-19), a TB era a principal causa de morte provocada por um só agente infecioso (2). Em Portugal os casos de TB têm vindo a diminuir, encontrando-se a incidência abaixo do limite definido como baixa incidência desde 2015 (20 casos por 100 mil habitantes por ano) (3). Apesar disto, ainda representa o país da Europa Ocidental com maior taxa de incidência, sendo que as Região de Lisboa e Vale do Tejo e a Região do Norte aquelas que apresentam mais casos (4).
Em 69.7% dos casos a localização mais frequente é a região pulmonar e as formas extrapulmonares mais frequentes são a forma pleural (7,4%), seguindo-se pela linfática extratorácica (7,3%) (4). Dentro das manifestações extrapulmonares, a manifestação ocular da TB é rara, mas pode levar a alterações visuais, sendo um desafio para o diagnóstico e terapêutica. Esta doença pode ter várias formas de apresentação, afetando diferentes áreas do tecido ocular, no entanto os critérios de diagnóstico ainda não estão bem estabelecidos, sendo muitas vezes um diagnóstico presumível, dado a dificuldade da biópsia do tecido ocular para recolher bacilos (5) (6) (7) (8). O diagnóstico presumível baseia-se na epidemiologia da TB, se é ou não uma região endémica, sinais oftalmológicos e história de contato com doentes infetados. Deve também ser realizado Teste Interferon Gamma Release Assay (IGRA), que se espera positivo, Prova Tuberculina cutânea positiva e uma resposta positiva ao tratamento com antibacilares (9).
A TB ocular pode-se manifestar de diversas formas, podendo afetar estruturas anteriores ou posteriores do olho, sendo que também deve ser considerada no diagnóstico diferencial das uveítes com achados clínicos sugestivos (10). A inflamação do trato uveal é a lesão associada a TB ocular mais amplamente conhecida, dada a sua elevada irrigação sanguínea e a preferência por tecidos altamente oxigenados (8). Relativamente à sua prevalência, podemos encontrar uveítes por TB desde os 0.4% nos EUA a valores acima dos 10% em países onde é endémica (11). Quanto ao tratamento com terapêutica antibacilar, com ou sem corticoterapia associada, este é eficaz no controlo da inflamação ocular e na prevenção de recorrências, permitindo um bom resultado na maioria dos casos (12).
A exposição ocupacional pode ter impacto na incidência da TB, pelo que determinadas profissões, nas quais incluem-se os Profissionais de Saúde (PS), apresentam prevalências mais elevadas, comparativamente à população geral, sendo os grupos profissionais dos Médicos e o dos Enfermeiros os mais afetados (13-16). A incidência da TB nos PS pode ser 5% superior ao da população geral nos países com baixa incidência, mas pode ser até dez vezes superior nos países com maior incidência de TB (17). Os PS estão expostos a doentes infetados, assim como produtos biológicos contaminados, podendo desenvolver TB infeção latente ou TB doença ativa (18). Segundo a Direção-Geral de Saúde, todas as Instituições de Saúde devem adotar medidas de deteção precoce dos casos de TB doença ativa e de infeção latente, no contexto da vigilância de saúde dos seus profissionais. Desta forma, compete aos Serviços de Medicina do Trabalho proceder à avaliação e gestão do risco relativamente a este agente infecioso (19). A TB enquanto Doença Profissional, está incluída na Lista de Doenças Profissionais, no capítulo 5 - Doenças Infeciosas e Parasitárias, onde se pressupõe um período mínimo de exposição profissional de seis meses a um ano, e na qual os PS estão incluídos como trabalhadores suscetíveis, quer pelo contato com portadores da doença, quer com roupas ou materiais contaminados (20).
Entre os fatores de risco para contrair TB entre os PS, encontram-se a idade, duração e tipo de trabalho, medidas de controlo da infeção; já fatores de risco como género, contato com caso ativo e tipo de local de trabalho, estão menos associados ao risco de infeção por TB em PS (21) (22). A falha ou atraso no diagnóstico, isolamento e tratamento dos doentes com TB, são os determinantes mais importantes na ocorrência de surtos nosocomiais e de infeção nos PS. Também a Direção Geral de Saúde considera que os casos de TB doença ativa em PS devem ser considerados como Doença Profissional, com provável origem no local de trabalho (19). Esta vigilância de saúde apropriada aos PS é da responsabilidade dos Serviços de Saúde Ocupacional, que tem um papel fundamental no controlo da disseminação da infeção, rastreio e vigilância de saúde.
DESCRIÇÃO DO CASO
Trata-se de uma Assistente Técnica de 57 anos, a desempenhar funções no serviço de Medicina Física e Reabilitação num serviço Hospitalar, desde há 17 anos. Tem como antecedentes Hipertensão Arterial, medicada com Losartan 100mg e uma história de Episclerites de repetição no olho esquerdo, tendo tido três episódios no espaço de um ano. Dirigiu-se ao Serviço de Medicina do Trabalho apresentando queixas de hiperémia difusa do olho esquerdo, desconforto ocular e dor ao toque. Dado estes sintomas, foi encaminhada para ser observada por Oftalmologia, onde foi medicada com Prednisolona oral e um colírio com Dexametasona, tendo sido encaminhada para a consulta externa de Medicina Interna, com o objetivo de excluir doença sistémica relacionada.
Negava queixas de artralgia, tosse, expetoração, dispneia, perda ponderal ou hipersudorese noturna. Referia apenas queixas esporádicas de cervicalgia que associava a má postura no local de trabalho, sendo uma dor de característica mecânica e sem outros antecedentes patológicos de relevo. Realizou estudo analítico para excluir doenças autoimunes e analiticamente apresentava leucocitose de 17.58x10^9/L, sem outras alterações. Realizou prova de Mantoux com resultado positivo, 8mm, enquanto estaria sob tratamento oral com corticóide há cerca de um mês. Foi também realizado Ecografia abdominal e pélvica, sem alterações, e realizou também uma Radiografia ao Tórax onde foi possível observar uma área de hipotransparência parahilar esquerda. Neste contexto foi pedida uma Tomografia Computadorizada do Tórax, sendo que esta não apresentou alterações de relevo, excluindo-se patologia pulmonar.
Foi também realizado Teste IGRA, tendo este sido positivo, pelo que iniciou tratamento para TB infeção latente que cumpriu por cerca de dois meses, no entanto, por não apresentar melhoria dos sintomas e ainda necessitar de tratamento com corticóide oral, o caso foi discutido e assumiu-se que se trataria de uma TB ocular, apesar de não ser uma apresentação típica da doença, mas que dado a recorrência e a necessidade de tratamento, iniciou-se terapêutica para TB infeção ativa com os anti bacilares: Isoniazida, Rifampicina, Pirazinamida e Etambutol, durante seis meses, juntamente com corticóide oral em altas doses. Logo após o início da terapêutica anti bacilar verificou-se uma melhoria significativa das queixas, mantendo o seguimento no Centro Diagnóstico Pneumológico. Teve alta da consulta de Oftalmologia e Medicina Interna, mantendo-se assintomática desde então.
Neste contexto, a trabalhadora foi observada várias vezes na consulta de Medicina do Trabalho, onde foi possível colaborar com as restantes especialidades e afastá-la do seu posto de trabalho enquanto mantinha queixas e realizava tratamento. Foi ainda estabelecido pela equipa de Medicina do Trabalho a possibilidade de se tratar de uma Doença Profissional pela exposição ao agente no local de trabalho, dado que como Assistente Técnica contactaria com vários tipos de doentes que frequentavam o serviço de Medicina Física e de Reabilitação, incluindo doentes dos serviços de internamento do Hospital, onde permaneceria com eles num espaço fechado que era a sala de espera, por vezes por períodos prolongados de tempo. Assim, este caso foi participado como suspeita de Doença Profissional ao Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais e aguarda avaliação.
DISCUSSÃO
A TB é uma das Doenças Ocupacionais mais importantes nos PS e é mais comumente transmitida pela inalação de partículas emitidas pelas pessoas infetadas doentes. Outras formas de transmissão, como o contato direto com secreções através das membranas mucosas e soluções de descontinuidade na pele são mais raramente descritas (23) (24). Enquanto manifestação extrapulmonar, a TB ocular é rara, mas pode ter fortes implicações na saúde do doente. A TB pode ser uma doença evitável, assim como atualmente tem um tratamento considerado eficaz. Contrariamente ao que se tem verificado com outras doenças infeciosas, a incidência de TB, como doença profissional, tem vindo a aumentar em alguns países, como por exemplo a Alemanha (25). Segundo a Organização Mundial de Saúde, existem mais benefícios individuais com o rastreio e tratamento da Infeção Latente, do que riscos, recomendando a sua realização sistemática nos países com baixa incidência de TB, nos grupos de maior risco (26). O Médico do Trabalho, ou qualquer outro profissional médico, se suspeitar que se trata de uma doença relacionada com o trabalho, pode e deve notificar e participar a TB como Doença Profissional, da mesma forma que o Médico do Trabalho deverá afastar o trabalhador do local de trabalho.
As manifestações clínicas da TB são frequentemente sistémicas e inespecíficas, pelo que, o diagnóstico precoce pode ser difícil. Adicionalmente, a TB extrapulmonar, pela diversidade de apresentação, constitui um desafio clínico considerável, não só porque os órgãos envolvidos condicionam múltiplos quadros clínicos, mas também pela sua raridade. A decisão de iniciar tratamento é, por vezes, baseada, num diagnóstico presumível, perante alterações clínicas ou imagiológicas sugestivas, mas sem confirmação laboratorial (3). A falha ou atraso no diagnóstico, isolamento e tratamento dos doentes com TB, são os determinantes mais importantes na ocorrência de surtos nosocomiais e de infeção nos PS (19), mostrando a importância da vigilância de saúde e acompanhamento pela Medicina do Trabalho, assim como a necessidade de afastar o trabalhador do seu posto de trabalho, de forma a evitar novos contágios. Foram também implementadas novas medidas de prevenção da transmissão da infeção, como reorganizar o posto de trabalho e colocação de divisor de acrílico na secretária, de forma a minimizar a projeção de partículas respiratórias.
Neste caso clínico o diagnóstico de TB ocular foi presumível, baseado na clínica e na apresentação da doença, não esquecendo o risco a que a profissional está exposta, exemplificando como os PS estão em especial risco de contágio de TB. Os princípios básicos do tratamento para a TB extrapulmonar são comuns à TB pulmonar (27). No entanto, o envolvimento de certos órgãos determina a necessidade de terapêuticas específicas, nomeadamente quanto à sua duração ou à necessidade de corticoterapia. O tratamento base para outras formas de TB extrapulmonar caracteriza-se por uma duração média de seis meses, com terapêutica Isoniazida, Rifampicina, Pirazinamida e Etambutol. O tratamento deverá ter em consideração que os PS estão incluídos no grupo de risco para tuberculose multirresistente (3). Neste caso houve uma resposta positiva à terapêutica, o que suportou o diagnóstico.
CONCLUSÃO
A TB ocular como apresentação de doença é um caso raro, principalmente tratando-se de uma apresentação atípica, mas que a clínica e a prova terapêutica suportaram o diagnóstico. No caso dos PS a TB trata-se de uma Doença Profissional, dado o risco a que estão expostos, sendo que a bibliografia suporta a necessidade de realizar rastreio, vigilância e monotorização do risco, realizado pelo Serviço de Saúde Ocupacional, onde a Medicina do Trabalho tem especial atenção.
O diagnóstico e tratamento precoce contribuíram para um bom desfecho, mas que nos alerta para o risco de possíveis repercussões a nível da visão, que uma Doença Profissional como a TB pode ter. A suspeita de Doença Profissional por parte da Medicina do Trabalho e participação, teve em conta o local de trabalho e os riscos a que a profissional esteve exposta. Por norma, os Assistentes Técnicos não prestam cuidados diretos a doentes, mas neste caso considera-se que esteve exposta ao risco biológico, quer pela permanência prolongada num espaço fechado e pequeno, quer pela particularidade de doentes, nomeadamente internados e muitos com patologia respiratória. Este caso serviu também para implementar novas medidas de proteção aos PS (sobretudo coletivas e também reforço das individuais) e mostra-nos a importância de analisar corretamente o local de trabalho assim como as condições a que o trabalhador está exposto, a importância de adotar medidas de rastreio, prevenção e controlo da infeção, apresentando assim a importância do serviço de Medicina do Trabalho para o estabelecimento desta relação e implementação de medidas.