INTRODUÇÃO
A Brucelose é uma zoonose provocada por bactérias cocobacilos gram-negativos pertencentes ao género Brucella. São conhecidas seis espécies, no entanto, apenas quatro são patogénicas para o homem. Cada uma é associada a um animal hospedeiro- B. abortus ao gado bovino, B. suis aos suínos, B. canis aos caninos e B. melitensis ao gado ovino e caprino, sendo esta última responsável pela maioria dos casos (1).
As vias de transmissão humana incluem o contacto direto com animais ou com as suas secreções através de soluções de continuidade cutâneas, aerossóis contaminados, inoculação no saco conjuntival ou ingestão de produtos não pasteurizados. Consequentemente, a Brucelose tornou-se uma doença profissional para agricultores, veterinários, trabalhadores dos centros de abate e técnicos de laboratório (1) (2).
Apesar de ser uma doença endémica em muitos países subdesenvolvidos, continua subdiagnosticada e sub-reportada (3). Portugal é o segundo país da Europa com mais casos de Brucelose (4) (5). Segundo dados de 2020, a taxa de incidência de casos notificados por 100.000 habitantes foi de 0.09, com 9 diagnósticos de Brucelose reportados em Portugal (5).
A doença é sistémica, com início agudo ou subagudo e com um período de incubação de duas a quatro semanas. A sintomatologia é inespecífica, mas apresenta-se tipicamente através de febre, suores noturnos, artralgias ou astenia. Outros sintomas podem incluir perda de peso, cefaleias, anorexia, dor abdominal, tosse ou depressão. Hepatomegalia, esplenomegalia e/ou linfadenopatias podem estar presentes no exame físico (1) (6) (7). As complicações da doença incluem focalização da infeção num ou em vários locais, havendo cerca de 30% de probabilidade de focalização, sendo o atingimento osteoarticular o mais comum (7). Na Europa, a maioria (64.5%) dos casos de Brucelose necessitou de hospitalização, traduzindo-se numa taxa de mortalidade de 3.5% (5).
Em termos de exames laboratoriais, o teste de sero-aglutinação de Wright assume-se como o meio de diagnóstico serológico mais precoce, na forma aguda, sendo o método tipo Enzyme-Linked Immunosorbent Assay (ELISA) o teste de escolha para a neurobrucelose, brucelose crónica e para seguimento da doença activa (8). Segundo a Direcção-Geral da Saúde, é necessário pelo menos um dos critérios seguintes para um diagnóstico laboratorial: isolamento de Brucella spp. a partir de uma amostra biológica; resposta imunitária específica à Brucella spp. (teste de aglutinação normalizado, fixação de complemento, ELISA); ou deteção de ácidos nucleicos de Brucella spp. numa amostra biológica (9).
O tratamento da Brucelose inclui o uso prolongado de antibióticos com atividade em ambientes intracelulares ácidos e, frequentemente, o uso de terapêuticas combinadas (dadas as altas taxas de recaída com monoterapia). Um dos esquemas de primeira linha inclui doxiciclina 100mg, oral, bidiária e rifampicina 600 a 900mg, oral, uma vez por dia, por seis semanas (10) (11).
Até ao presente, não foi encontrada qualquer vacina eficaz e segura para o Homem, mas os estudos prosseguem no sentido de perceber melhor a patogénese da doença, de forma a identificar alvos vacinais (8).
DESCRIÇÃO DO CASO
Utente do sexo masculino, de 28 anos de idade, solteiro e a residir com dois cães. Trabalha como auxiliar de veterinário. Tem história pessoal de rinite alérgica, asma intermitente e alergia a ácaros e pólens, com seguimento em consulta de Imunoalergologia. Encontra-se sob imunoterapia e medicado com bilastina, em SOS. Sem outros antecedentes médicos ou cirúrgicos de relevo.
A 18 de dezembro de 2020, o utente recorre à urgência de hospital privado por dor no testículo direito, sem outra sintomatologia associada, sendo medicado com ceftriaxone e doxiciclina, com diagnóstico presumido de epididimite. Seis dias depois, retoma ao mesmo Serviço de Urgência (SU) por persistência da dor, sendo avaliado por Urologia, que medicou com levofloxacina e anti-inflamatório não esteróide (AINE). No início de janeiro de 2021, por queixas de edema, calor e rubor testicular direito e febre alta (pico máximo de 39,5ºC), foi observado em Consulta Aberta e orientado novamente para o SU para observação por Urologia. Neste episódio foi realizada ecografia testicular que mostrava um microabcesso do testículo direito, sendo medicado com cefixima 14 dias e AINE, com indicação para reavaliação pelo Médico de Família.
Após esta última intercorrência, o doente foi observado pela Médica de Família onde, apesar de apirético, mantinha sintomas constitucionais, como hipersudorese vespertina e noturna, anorexia, astenia e referindo dorso-lombalgia e dor abdominal à direita com irradiação testicular. Perante a persistência de sintomas, procedeu-se a anamnese detalhada, identificando-se designadamente a profissão e contexto em que exercia a sua atividade laboral. O utente trabalhava como auxiliar de veterinário com contacto próximo e frequente com gado bovino, ovino e caprino. Desconhece ter alguma vez realizado exame de aptidão para o trabalho, pelo que não foi possível aferir a aptidão previa. Refere utilizar como equipamento de proteção individual (EPI) apenas luvas e avental de borracha, dependendo da atividade a realizar. Trabalha com a própria roupa, sendo a higiene realizada no domicílio. Nega a utilização de máscara ou viseira.
Nesse sentido, foi pedido estudo analítico: serologia (ELISA) de Brucelose IgG bordeline 19.5 (cutoff >19.5) e uma IgM negativa, PCR 37mg/dl, urina tipo II normal, sem outras alterações. O utente apresentava ainda um Raio-X (Rx) da coluna e bacia sem alterações. Assim, perante epidemiologia e clínica sugestivas (febre, sintomas constitucionais, focalização genital) e a suspeita analítica de uma zoonose (IgG+ Brucelose, apesar de não se ter realizado estudo de aglutinação), a Médica de Família notificou o utente no Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e referenciou-o para o SU do hospital de referência, com presumido diagnóstico de Brucelose com orquiepididimite. Foi medicado com doxiciclina e rifampicina, com início a 12 de fevereiro de 2021, com melhoria dos sintomas constitucionais e sem sintomatologia focalizadora. Foi realizado pedido interno para consulta de Urologia e Infeciologia, no Hospital de referência.
No início de março o utente foi submetido a cirurgia de excisão do testículo direito, tendo a peça cirúrgica sido enviada para estudo. A histologia mostrou abcessos e necrose caseosa com células epitelióides e histiócitos em paliçada e células gigantes multinucleadas. O resultado da pesquisa da PCR no bloco parafinado da peça cirúrgica foi positivo para Brucella spp., confirmando-se o diagnóstico de Brucelose com orquiepididimite. A 26 de março de 2021, o utente terminou o tratamento com doxiciclina e rifampicina, com melhoria clínica significativa, bom estado geral e assintomático. O utente manteve seguimento em consultas de Infeciologia e Urologia e em setembro de 2021, por vontade do utente, foi inscrito para colocação de prótese testicular.
Atualmente, o utente teve alta de Urologia, mantendo seguimento em consulta de Infeciologia e com o Médico de Família. Mantém bom estado geral e ausência de queixas objetiváveis, inclusive sem intercorrências na atividade sexual. Foi alertado para cuidados a ter na sua atividade laboral para evitar possíveis futuras infeções, mantendo vigilância, e foi realizada a participação de Doença Profissional.
DISCUSSÃO
Apesar da tentativa global de erradicação da Brucelose, existem anualmente mais de 500 mil infecções humanas, com uma letalidade de 1-6% nas não tratadas (12). A apresentação inespecífica atrasa o diagnóstico, aumentando o risco de complicações e de disseminação da infeção, pelo que a formação e alerta dos profissionais de saúde para esta doença é fundamental.
Apesar dos casos de Brucelose em Portugal serem maioritariamente associados ao consumo de comida contaminada (4), a exposição ocupacional é relevante e deve ser controlada. A melhoria nas medidas higienosanitárias, fortemente regulamentadas na indústria alimentar na Europa, terá influência na menor taxa de brucelose, comparativamente com países subdesenvolvidos. Contudo, os veterinários e ajudantes de veterinários de animais de grande porte são dos grupos profissionais de maior risco (1) (3), estando altamente expostos à bactéria através da potencial inalação de bioaerossóis contaminados ou pelo contacto de material biológico (carcaças, vísceras ou fluídos orgânicos) com pele não íntegra. A baixa adesão à utilização de EPI, bem como, por vezes, a sua indisponibilidade, são fatores que agravam o risco ocupacional, mas que são potencialmente modificáveis, podendo assim contribuir como ponto de viragem na prevalência da doença enquanto patologia profissional. Além disso, o controlo da infeção nos próprios animais terá influência tanto na diminuição da incidência enquanto doença profissional, como não profissional (8). O baixo nível educacional de alguns trabalhadores de gado, a falta de formação para o risco e, consequentemente, o desconhecimento do risco profissional e das medidas de proteção adequadas, poderão ser fatores explicativos para a perpetuação de metodologias de trabalho desadequadas e menos seguras, bem como para a manutenção da infeção.
Neste caso, a não utilização da máscara aquando da exposição a bioaerossóis, e a utilização da roupa própria, exposta a fluidos orgânicos e com higienização realizada no domicílio, demonstra comportamentos de risco na exposição de zoonoses. Além do EPI que deverá proteger a pele, a via aérea e os olhos, para evitar exposição mucocutânea e por inalação, é fundamental garantir as medidas de proteção coletivas. Estas passam por aspetos organizacionais e metodologias de trabalho protocoladas segundo as regras de boas práticas no setor, que devem ser implementadas na política interna da empresa, como forma de proteção da saúde pública.
É essencial que seja facilitado o acesso ao médico do trabalho, assim como aos relatórios de avaliação de risco, de modo a garantir a vigilância da saúde destes trabalhadores. Sendo a não utilização de EPI um fator de risco para a infeção, a formação dos trabalhadores neste sentido é outro ponto fulcral a garantir, uma vez que potencialmente aumentará a receptividade à utilização do mesmo.
CONCLUSÃO
A Brucelose é uma doença zoonótica altamente negligenciada a nível global, apesar de ser uma das três zoonoses mais frequente em Portugal. O caso clínico apresentado revela-se extremamente pertinente, alertando para a necessidade da colheita de uma anamnese detalhada, particularmente do contexto laboral, bem como para a eventualidade de daí poderem surgir patologias menos frequentemente observadas. Apesar da sua apresentação clínica inespecífica, na presença de fatores de risco ocupacionais para brucelose, esta deve ser contemplada como forte hipótese diagnóstica. O estabelecimento do nexo de causalidade é essencial à caracterização de doença profissional pelo que, na suspeita de brucelose profissional, é necessário comprovar o diagnóstico por exame cultural e serológico, podendo ser necessário recorrer à imagiologia para identificar eventuais complicações da infeção. O tratamento é feito com recurso a terapêutica antibiótica sendo, por vezes, necessário recorrer a cirurgia, salientando-se a importância das equipas multidisciplinares, onde se incluem o médico do trabalho, o médico de família e de outras especialidades, conforme necessidade. Além da equipa clínica, o controlo da infeção passa por uma correta avaliação do risco profissional e sugestão de medidas de proteção, sendo necessária a avaliação das condições de trabalho por um técnico de segurança qualificado.
Com este caso, os autores pretendem alertar os profissionais de saúde para patologias relacionadas com a atividade laboral, particularmente as zoonoses, que são, muitas vezes, subdiagnosticadas. Salienta-se, também, a necessidade destes trabalhadores serem avaliados periodicamente pelo médico do trabalho. Por fim, reitera-se o carácter preventivo inerente às equipas de Saúde Ocupacional, que também têm como objetivo prevenir e diminuir número de doenças profissionais e acidentes de trabalho, através de políticas de promoção da saúde, implementação de medidas preventivas coletivas e individuais e diagnóstico precoce de doenças profissionais, diminuindo assim a sua morbimortalidade (13).