INTRODUÇÃO
A radiação ionizante (RI) pode ter origem natural (radioatividade natural e radiação cósmica) ou artificial. A RI artificial, que inclui os raios-X e os radioisótopos produzidos nos reatores nucleares apresentam diversas aplicações, designadamente na Indústria, Investigação e Medicina, pelo que os profissionais de saúde são trabalhadores expostos (1). A Lei n. º102/2009 com alterações pela lei n. º42/2012 inclui como atividade de risco elevado, as “atividades que impliquem exposição a radiações ionizantes”. Apesar de todas as moléculas biológicas poderem ser modificadas pela RI, as lesões que ocorrem ao nível do ADN (ácido desoxirribonucleico) são as que representam consequências importantes para a célula. Os efeitos da radiação ionizante podem ocorrer pela ação física e/ou química através da rotura de ligações moleculares na cadeia de ADN (efeito direto) ou pela formação de radicais livres que reagem quimicamente (efeito indireto), podendo causar danos às células, aos tecidos e aos órgãos, assim como afetar o normal funcionamento do corpo (1).
Os efeitos das RI podem ser classificados em relação: ao período de latência em precoces (até cerca de seis meses) ou tardios; à capacidade de transmissão à descendência em somáticos ou hereditários e ainda pela natureza do dano em determinísticos ou estocásticos (1) (2). Entende-se por um efeito determinístico aquele que ocorre por lesões no ADN nas quais existe morte celular sem reparação. São efeitos somáticos os que surgem apenas quando o número de células afetadas atinge um determinado limiar (limiar de dose) que compromete o funcionamento do tecido/órgão e que surgem após exposição de elevadas doses de radiação (3). Este limiar depende dos diferentes tecidos e, uma vez ultrapassado, a gravidade do efeito determinístico é dose dependente (1) (2). É de salientar que devido à variabilidade interindividual, diferentes pessoas podem apresentar limiares distintos. No entanto, para efeitos determinísticos, existe um limiar na dose acima do qual todos os expostos apresentam o efeito adverso (1) (2) (3). Relativamente aos efeitos estocásticos, decorrem de lesões de ADN com falhas na reparação com o potencial para provocarem mutações em células que mantêm a sua capacidade de divisão, condicionando fenómenos de carcinogénese (quando se trata de células somáticas) ou de efeitos hereditários (caso as células afetadas sejam da linha germinativa). Para este tipo de efeito não é possível estabelecer um limite abaixo do qual possamos assegurar que o efeito não se manifesta (1). Uma vez que que a exposição dos profissionais de saúde se caracteriza por ser, essencialmente, uma exposição a baixas doses por um longo período de tempo (vários anos com RI), os efeitos estocásticos assumem extrema importância em meio profissional.
A exposição a elevadas doses de RI está relacionada com a indução, ainda que não exclusiva, de cancro. Essa relação dose-resposta está claramente evidenciada em sobreviventes da bomba atómica, em doentes submetidos a radioterapia e em indivíduos expostos a RI em acidentes nucleares (4), verificando-se uma relação linear entre o risco de cancro e a dose de exposição entre 100mSv e 2,5mSv (5). Existe uma maior dificuldade em definir o limiar de dose para o qual se verifica um aumento do risco de cancro para o Homem quando se trata de exposição a doses muitos baixas. Os dados epidemiológicos sugerem que, com doses superiores a 10 e 50mSv para exposições agudas e a 50mSv a 100mSv para exposições prolongadas, poderá existir um risco acrescido de cancro (1)(4). A International Commission on Radiological Protection (ICRP) estima que para baixas doses (<100 mSv) é cientificamente razoável supor que o aumento de cancro é diretamente proporcional ao aumento de dose (aproximação linear) (3). Assim, o cancro e as anomalias genéticas hereditárias são dois efeitos estocásticos que ocorrem a longo-prazo e que são normalmente considerados fenómenos sem limiar de dose (1)(2).
A dosimetria de área permite caraterizar a exposição a RI nos locais de trabalho, mas, uma vez que os profissionais de saúde ocupam vários locais de trabalho distintos onde são utilizados RI, é de uma forma geral necessário utilizar dosimetria individual (1). Todo o trabalhador exposto deve utilizar o dosímetro individual, de leitura periódica. O trabalhador pode ser classificado em duas categorias, A e B, consoante o risco de exposição à radiação seja superior ou inferior a 6 mSv/ano (2). Com base no Decreto-Lei n.º 222/2008, a periodicidade de leitura do dosímetro é mensal para categoria A e é trimestral para a categoria B.
Os sarcomas de tecidos moles são um grupo bastante heterogéneo de tumores que representa menos de 1% de todos os tumores malignos sólidos na população adulta. Os lipossarcomas são tumores malignos, derivados de células primitivas que sofrem diferenciação em tecido adiposo e representam cerca de 10% a 18% dos sarcomas de tecidos moles. Habitualmente apresentam-se como assintomáticos até atingirem dimensão suficiente para compressão dos órgãos adjacentes. O tratamento e o prognóstico dependem do estadio na altura do diagnóstico e a resseção cirúrgica completa permanece como o tratamento standard e a única opção curativa. Um doente com diagnóstico ou suspeita de sarcoma de tecidos moles deve ser avaliado num centro de referência e por uma equipa multidisciplinar (6) (7). Segundo a IARC (International Agency for Research on Cancer), a exposição a radiação ionizante está relacionada com um aumento de risco para sarcomas, carcinoma de células escamosas e adenocarcinoma. Inclusive, Mori et al., observou uma maior frequência de tumores da mama, assim como sarcomas, em camundongos expostos a radiação ionizante (8).
No que toca à vigilância médica dos trabalhadores expostos, esta é assegurada por médicos do trabalho. Este deve manter um contacto próximo com os seus trabalhadores de forma a efetuar um adequado plano de avaliação individual para funcionários expostos e estabelecer protocolos de forma a garantir uma vigilância da saúde eficaz permitindo detetar precocemente problemas de saúde relacionados com a exposição a RI, avaliar a aptidão para o trabalho, detetar trabalhadores suscetíveis e avaliar o trabalhador em situações especiais. As medidas de prevenção coletiva, individual e os protocolos de vigilância médica, permitem minimizar os potenciais danos na saúde do trabalhador que poderão conduzir à redução da esperança e qualidade de vida em virtude de efeitos estocásticos e/ou determinísticos causados pela exposição à radiação.
Este trabalho tem com objetivo relevar a abordagem aos profissionais expostos a RI, já que esta pode provocar efeitos adversos para a saúde com dano de diversos tecidos ou órgãos, pela indução de instabilidade elétrica nos componentes moleculares (ionização).
DESCRIÇÃO DO CASO
Descreve-se um caso de uma mulher, 61 anos que recorreu ao médico assistente por queixas de polaquiúria e sensação de peso pélvico. Relativamente a antecedentes pessoais, destaca-se hipertensão arterial e diabetes mellitus tipo II. Sem história de hábitos tabágicos, toxicófilos ou história familiar relevante. No que toca à história ocupacional, exercia funções como técnica superior de diagnóstico e terapêutica num serviço de radiologia de um hospital pediátrico desde a sua formação universitária, traduzindo-se numa exposição a radiação ionizante por cerca de quarenta anos. Na sequência da sintomatologia apresentada, foi excluída infeção do trato urinário e posteriormente solicitada ecografia pélvica por persistência dos sintomas. Esta revelou a existência de uma massa pélvica que foi melhor caracterizada por tomografia computadorizada e que revelou a nível da área renal direita, e preenchendo o espaço perirrenal apenas na sua vertente externa, uma coleção de densidade hídrica não pura/massa de partes moles com espessamento do fáscia pararrenal anterior. Esta área lesional estava em aparente continuidade com massa intraperitoneal com topografia sub-hepática com cerca de 13x10 cm. Encontrava-se bem delimitada e a estrutura interna apresentava densidade predominantemente lipomatosa com áreas de densificação e alguns septos. Condicionava efeito de massa com desvio esquerdo das ansas intestinais assim como desvio inferior do ângulo hepático do cólon. O conjunto das imagens referidas embora não permitissem precisar a natureza etiológica desta massa, eram a favor de lesão neoproliferativa tipo lipomatoso (figura I). O caso foi referenciado a um centro especializado e realizada tumorectomia, nefrectomia direita, suprarrenalectomia direita e histerectomia. Foi confirmado o diagnóstico de lipossarcoma retroperitoneal, sendo que a ressecção do tumor foi realizada com margens cirúrgicas negativas.
Relativamente às doses de exposição, a profissional estava classificada como categoria B, e desde que o controlo dosimétrico foi implementado, não existem registos que tenham sido ultrapassados os limites de dose estabelecidos.
A profissional foi observada na consulta de Medicina do Trabalho, de forma a garantir a adequação das condições de trabalho sendo que em termos de aptidão para o trabalho e ficou inapta para tarefas que impliquem exposição à radiação ionizante, em função da opinião do médico responsável. As principais doenças que se encontram associadas à exposição profissional a radiações ionizantes constam na Lista das Doenças Profissionais (Decreto Regulamentar nº 6/2001, de 5 de maio, alterado pelo Decreto-Regulamentar nº 76/2007, de 17 de julho). No entanto, qualquer lesão corporal, perturbação funcional ou doença não incluídas na lista são também indemnizáveis, desde que se prove serem consequência necessária e direta da atividade exercida e não representem normal desgaste do organismo (9), pelo que, foi participada a suspeita de Doença Profissional pelo Médico do Trabalho.
DISCUSSÃO
Dado que a radiação ionizante pode ser um precursor de cancro num indivíduo exposto profissionalmente, os trabalhadores que estiveram expostos à radiação ionizante em alguma fase da sua vida profissional e que, posteriormente, desenvolveram cancro devem ser objeto de uma cuidadosa avaliação de risco profissional que identifique o nexo de causalidade, podendo determinar, a qualquer momento, a participação de doença profissional (1). Fatores como o período de latência, o tempo desde a exposição e/ou a idade atingida no momento do diagnóstico, a idade durante a exposição e a influência de outras exposições ambientais, comportamentais ou sociais (como o tabagismo, no caso de cancro do pulmão) devem ser levados em consideração no estabelecimento do nexo de causalidade (3). No caso relatado, existe uma história de exposição a radiação ionizante prolongada (cerca de quarenta anos), sem qualquer outra exposição ambiental, comportamental ou social relevante. Salienta-se ainda que só em 1986, com a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), é que as diretivas e recomendações da Comunidade Europeia de Energia Atómica (EURATOM) começaram a ser adotadas. Este tratado prevê o estabelecimento de normas básicas de segurança relativas à proteção da saúde, dos trabalhadores e da população em geral, contra os perigos resultantes das radiações ionizantes. Em Portugal, atribuiu-se ao Ministério da Saúde a responsabilidade pelo desenvolvimento de ações na área de proteção contra radiações, cabendo à Direcção-Geral da Saúde a promoção e a coordenação das medidas destinadas a assegurar em todo o território nacional a proteção de pessoas e bens que, direta ou indiretamente, possam sofrer os efeitos da exposição a radiações. Estas matérias só foram contempladas no Decreto Regulamentar n.º 9/90, de 19 de abril, e no despacho da Ministra da Saúde n.º 7191/97 (2.a série), de 5 de setembro, dando execução ao Decreto-Lei n.º 348/89, de 12 de outubro, e tendo em conta as Diretivas (EURATOM), do Conselho, n.º 80/836, 84/466 e 84/467. Assim, só a partir desta altura é que foram estabelecidos os princípios e normas que devem reger-se as ações a desenvolver na área da proteção contra as radiações ionizantes, bem como as medidas fundamentais relativas à proteção radiológica. Salienta-se que no caso relatado, a história de exposição foi anterior a esta data e às respetivas alterações, em termos de proteção radiológica, traduzindo uma exposição inicialmente mais desprotegida e menos controlada.
Atualmente, as instalações hospitalares onde se utilizam RI obedecem a requisitos muito específicos de acordo com o tipo de procedimentos realizados, existindo um responsável pela proteção radiológica. É garantida a utilização de equipamentos de proteção individual como colares protetores da tiroide, óculos, luvas; assim como de equipamentos de proteção coletiva (biombos móveis, cortinas adaptadas às mesas de intervenção, vidros articulados, entre outros). A monitorização dosimétrica é essencial, tendo sido implementado um reforço da leitura com periodicidade mensal (para ambas as categorias).
É certo que a sensibilização e a formação dos trabalhadores em proteção radiológica são essenciais (sobretudo no aumento da perceção do risco associado à exposição), pelo que é garantido ações de formação em proteção radiológica a todos profissionais expostos assim como o seu envolvimento nas propostas e métodos a aplicar neste contexto.
Relativamente à vigilância médica, é indispensável que nos registos clínicos dos trabalhadores expostos conste, designadamente, a história de vida de exposição à radiação ionizante, a relação dose-resposta, o tipo de exposição (aguda ou prolongada) e o tipo de cancro, sempre que este ocorra. De realçar que após o trabalhador ter terminado a exposição a radiação ionizante, os registos relativos a esta exposição profissional são conservados durante, pelo menos, quarenta anos- artigo 46.o da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro e suas alterações.
CONCLUSÃO
Assume-se que qualquer dose incremental de radiação, não importa quão pequena seja, pode, teoricamente, produzir um aumento na probabilidade de um efeito estocástico, como o cancro. As radiações-X são amplamente utilizadas em ambientes hospitalares não só para o diagnóstico, como para guiar intervenções de natureza terapêutica. Neste sentido, a proteção da saúde e da segurança dos profissionais expostos a RI em ambiente hospitalar constitui um enorme desafio para os serviços de saúde ocupacional que devem organizar programas de proteção radiológica que visem minimizar a exposição profissional e os potenciais efeitos adversos que possam relacionar-se com essa exposição. Esses programas devem ser desenvolvidos em colaboração com os responsáveis pelas instalações radiológicas, com os respetivos serviços e com a Física Médica e deverão incluir várias ações, designadamente a formação em proteção radiológica; vigilância dosimétrica, vigilância médica periódica bem como o estudo e implementação de medidas de proteção coletiva e individual.