INTRODUÇÃO
Segundo a legislação portuguesa, uma doença profissional é uma lesão corporal, perturbação funcional ou patologia que é consequência necessária e direta da exposição a riscos laborais e das condições de trabalho da atividade profissional exercida e não resulta do normal desgaste do organismo (1). Quando existe a suspeita de uma doença relacionada com o trabalho, a sua participação é obrigatória e reveste-se de grande importância na proteção e promoção da saúde dos trabalhadores, devendo desencadear medidas preventivas e corretivas no local de trabalho (2).
As doenças profissionais são responsáveis por aproximadamente 2,02 milhões de mortes anuais (3) (4), sendo que em Portugal estima-se que ocorram quatro a cinco mortes diárias por doença profissional, o que realça a importância desta temática (5). Segundo estudos epidemiológicos, a incidência de doenças relacionadas com o trabalho, aumenta com a idade, sendo, de forma geral, mais diagnosticada no sexo feminino (6) (7).
Em Portugal, apesar de se estimar que apenas uma pequena parte das doenças laborais seja participada (2), segundo dados do Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais (DPRP), a notificação de doenças profissionais tem vindo a crescer desde 2011 até 2020, aumentando de 6004 doenças notificadas em 2011, para um total de 18589 doenças laborais notificadas em 2020, segundo exposição do Dr. Nuno Esguelha no “Seminário de Medicina do Trabalho sobre Doenças Profissionais”, da Faculdade de Medicina do Porto, que teve lugar a 24 de setembro de 2022.
No que se refere às doenças profissionais notificadas, as lesões musculosqueléticas como a periartrite escápulo-humeral, a epicondilite e a tendinite ou as paralisias, como a síndrome do túnel cárpico, são o tipo de lesões mais frequentemente reconhecidas como doenças relacionadas com o trabalho (7) (8) (9). Relativamente aos setores mais predominantes, a incidência é maior nos setores da indústria, seguido da construção e saúde (7) (10).
Os profissionais de saúde, atendendo à sua exposição a riscos ergonómicos, físicos, biológicos e químicos, derivado das suas atividades laborais, têm uma elevada propensão para sofrerem de doenças relacionadas com o trabalho, das quais se destacam as lesões musculosqueléticas, patologias infeciosas e perturbações psicológicas (11) (12).
No que diz respeito às doenças laborais resultantes de lesões músculo-esqueléticas, estas são particularmente frequentes nos profissionais de saúde, provavelmente pela exigência das suas funções quotidianas, das quais se destaca a mobilização frequente de doentes dependentes, os movimentos repetitivos em colheitas de sangue ou em técnicas e no transporte de cargas, com consequente afeção particularmente elevada da região cervical, lombar e membros superiores (13). Nesse sentido, torna-se de particular relevância caracterizar o perfil das doenças profissionais notificadas num hospital terciário português e a evolução da sua notificação tendo objeto de estudo esta instituição.
OBJETIVOS
Este trabalho tem como objetivo principal caracterizar o perfil das doenças laborais notificadas num hospital terciário português, avaliando a sua distribuição temporal, predomínio por categoria profissional e posto de trabalho, bem como o tipo de lesão e região corporal mais frequentemente afetadas. Pretende-se ainda, após análise estatística dos resultados obtidos, fazer uma discussão e comparação com os dados retirados da literatura.
MATERIAL E MÉTODOS
Efetuou-se uma pesquisa sobre doenças profissionais usando artigos científicos e revisões sistemáticas, bem como o recurso a decretos de lei nacional e internacional sobre doenças relacionadas com o trabalho.
Realizou-se um estudo observacional retrospetivo do tipo transversal e analítico recorrendo à análise das doenças laborais notificadas num hospital terciário português de janeiro de 2012 a dezembro de 2021. Estes dados foram extraídos das bases de dados de registo, preenchidos pelo Serviço de Saúde Ocupacional da instituição. Nas informações disponibilizadas pelos registos, os seguintes dados foram recolhidos: frequência de doenças profissionais notificadas, idade e sexo dos colaboradores afetados, data da notificação, categoria profissional e local de trabalho do colaborador, tipo de doença laboral (lesão músculo-esquelética, nervosa, infeciosa ou outras) e qual o diagnóstico clínico considerado.
A caracterização da amostra e análise estatística, foram realizadas recorrendo ao software SPSS versão 27.0-PASW, bem como à estatística descritiva deste programa.
RESULTADOS
No período de janeiro de 2012 a dezembro de 2021 foram notificadas um total de 610 doenças profissionais, 431 casos de infeção por SARS-CoV-2 e um total de 179 casos referentes a outras patologias.
Do total de doenças notificadas, 476 casos (78,0%) eram de indivíduos do sexo feminino. Quando comparado o número total de doenças relacionadas com o trabalho, com a média do número total de funcionários do hospital, podemos verificar que a proporção de indivíduos afetados do sexo feminino (9,5%), continua a ser maior que a proporção de indivíduos do sexo masculino (tabela 1).
Sexo | Número de doenças profissionais notificadas | Total Funcionários | Proporção tendo em conta o sexo |
---|---|---|---|
Feminino | 472 | 4970 | 9,50% |
Masculino | 135 | 1804 | 7,48% |
Total | 610 | 6774 | 9,01% |
A idade média e o desvio padrão dos colaboradores com doenças laborais notificadas foram de 46,93 ± 9,52 anos.
No que se refere à categoria profissional, a mais afetada foi a dos enfermeiros com 249 notificações (40,8%), seguidos pelos assistentes operacionais com 174 (28,5%) e pelos médicos com 99 (16,2%). Os técnicos superiores foram a categoria profissional menos afetada, com 23 casos (3,8%). Atendendo ao número total de funcionário do hospital em estudo, 6774 colaboradores, podemos verificar que proporcionalmente a categoria profissional mais afetada continua a ser a enfermagem (12,14%) seguida dos assistentes operacionais (12,02%) e dos assistentes técnicos (8,47%) (tabela 2).
Categoria Profissional | Número de doenças profissionais notificadas | Total Funcionários | Proporção tendo em conta o número total de funcionários de cada categoria profissional |
---|---|---|---|
Médicos | 99 | 1878 | 5,27% |
Enfermeiros | 249 | 2051 | 12,14% |
Assistentes Operacionais | 174 | 1447 | 12,02% |
Assistente Técnico | 35 | 413 | 8,47% |
T. Diagnóstico Tratamento | 30 | 585 | 5,13% |
Técnico Superior | 23 | 400 | 5,75% |
Total | 610 | 6774 | 9,01% |
No que diz respeito ao ano das notificações, verifica-se que 2021 foi o ano com maior número de participações, com 53,9% dos casos, associado ao elevado número de casos de infeção por SARS-Cov-2. Pelo contrário, o ano de 2014 teve menos notificações, com 0,7% do total, tendo-se, no entanto, verificado um aumento gradual e global do número de casos de doenças profissionais notificadas desde o ano de 2012 até ao ano de 2021 (gráfico 1). No período em estudo, excluindo as participações associadas à infeção por SARS-CoV-2, o ano com mais doenças laborais notificadas foi em 2019 com 22,9%, seguido do ano 2021 com 14,0% e do ano de 2020 com 11,7% dos casos (gráfico 2).
Neste período de dez anos de análise, mesmo excluindo os casos associados à pandemia, tem-se verificado um aumento gradual da participação das doenças relacionadas com o trabalho.
Relativamente ao local de trabalho no qual os colaboradores estavam alocados aquando da notificação da sua doença profissional, verifica-se que os serviços das áreas cirúrgicas totalizaram 45,2% dos casos de participações, seguidos dos serviços das áreas médicas com 41,8% e pelo apoio administrativo com 6,7%.
Globalmente, numa análise sobre o tipo de doença laboral notificada, a infeção por SARS-CoV-2 destaca-se como a patologia mais declarada como doença profissional no período considerado, com 70,7% do total de casos, seguido das tendinopatias da articulação do ombro com 11,6 % e das epicondilites com 7,0% (gráfico 3). Na análise em que é excluída a infeção por SARS-CoV-2, pode verificar-se que as lesões musculosqueléticas apresentam-se como o tipo de lesão mais frequente, com 153 casos notificados (85,5%), seguido de outras patologias infeciosas, como a tuberculose, com 14 casos (7,8%). Dentro das lesões musculosqueléticas, destacam-se as tendinopatias da articulação do ombro e as epicondilites como as doenças laborais mais notificadas com 39,7% e 24,0% respetivamente, seguidas das tenosinovites da mão/punho (14,5%) (gráfico 4).
DISCUSSÃO
As doenças profissionais são de elevada prevalência na prática hospitalar e responsáveis por elevados custos e perda de produtividade (2). A implementação de medidas de prevenção e proteção de doenças, assim como de promoção de saúde e bem-estar dos trabalhadores, aliadas a medidas interventivas no posto de trabalho, podem ajudar na identificação e diminuição da frequência e da morbilidade destas doenças laborais (14). Estas abordagens devem ser encaradas numa perspectiva holística, a nível da prevenção, reparação, reabilitação e reintegração profissional do colaborador (2). A prevenção incluiu um conjunto de medidas que visem eliminar ou diminuir os riscos profissionais a que estão potencialmente expostos os trabalhadores, a reparação refere-se ao direito a que o trabalhador tem em ser ressarcido pelos danos decorrentes da doença relacionada com o trabalho, seja esta em espécie ou em dinheiro e por fim a reabilitação e reintegração do colaborador abrange o conjunto de iniciativas necessárias para assegurar a adaptação do posto de trabalho às limitações do colaborador (16).
Ao longo do período considerado no estudo, de uma forma global, verifica-se uma tendência crescente no número de doenças profissionais notificadas, em linha com o verificado a nível nacional, segundo dados do DPRP. Tal facto pode ser explicado pela situação pandémica vivida nos anos de 2020 e 2021, com um elevado número de notificações de infeções por SARS-CoV-2. Contudo, é expectável que uma maior consciencialização por parte dos colaboradores e do serviço de segurança e saúde ocupacional, para a necessidade de reporte, de seguimento e das vantagens em assumir um papel ativo na gestão da doença laboral, possa explicar a tendência crescente deste número de participações.
A infeção por SARS-CoV-2 veio modificar o perfil das doenças profissionais notificadas, com um grande volume de doenças associadas a esta patologia, contudo a análise das restantes doenças veio corroborar que as lesões musculosqueléticas continuam a ser as mais relevantes, em linha com o descrito na literatura (7), muito provavelmente associadas aos riscos físicos a que os profissionais de saúde estão expostos.
O facto das doenças laborais certificadas em situação pré-pandémica serem maioritariamente perturbações musculosqueléticas, nomeadamente a síndrome do túnel cárpico, entidades nosológicas mais comuns no sexo feminino, pode explicar a diferença estatística encontrada entre os sexos, em concordância com outros estudos a nível nacional e internacional (7,15), tal como o facto de serem mais comuns na classe profissional dos enfermeiros, seguida dos assistentes operacionais (15).
As limitações inerentes a este estudo prendem-se com o facto de terem sido recolhidos dados numa altura de pandemia, o que por um lado aumentou muito os casos de notificações associadas à infeção vírica em causa, mas por outro lado pode ter subdiagnosticado outras doenças profissionais, associadas a um aumento do absentismo dos profissionais de saúde. O facto de o estudo visar sobre as doenças laborais notificadas e não as posteriormente reconhecidas é também uma limitação. Para o cálculo das proporções de funcionários afetados consoante o sexo ou a categoria profissional, foi considerado o valor do total de funcionários atuais, o que não incluiu possíveis mudanças das categorias laborais ao longo do tempo. Outra limitação que deve ser realçada é o facto de os dados terem sido recolhidos por diferentes pessoas, com variações entre observadores o que pode levar a uma alteração na categorização dos dados.
CONCLUSÃO
Com este estudo pode concluir-se que, para além do impacto da infeção por SARS-Cov-2, as lesões musculosqueléticas destacam-se como o tipo de lesão mais frequentemente notificada, resultado da exposição aos riscos associados às profissões do setor da saúde.
O diagnóstico e reconhecimento das doenças profissionais são de grande importância pois permite prevenir problemas, alterar métodos de trabalho, efetuar vigilância de saúde mais próxima do trabalhador e melhorar a saúde do trabalho com um claro potencial de gerar mais saúde, qualidade de vida e produtividade.