INTRODUÇÃO
A Síndrome Metabólica (SM) é umclusterde alterações, consequência de um continuum de resistência à insulina (RI) e inflamação crónica. Apesar das definições variarem ligeiramente (Quadro 1), inclui critérios como uma alteração do metabolismo da glicose (hiperglicemia, hiperinsulinemia ou RI); obesidade abdominal ou índice de massa corporal (IMC) superior a 30 kg/m2; alteração do perfil lipídico através de um aumento dos triglicerídeos e redução de colesterol HDL e hipertensão arterial. A SM representa uma condição progressiva, iniciando com fatores limite e/ou isolados, que eventualmente progridem para fatores de risco agrupados. De facto, todos os critérios de SM definidos representam fatores de risco independentes, associados a disfunção endotelial, aterosclerose e hipercoagulabilidade, resultando num aumento do risco de várias patologias, nomeadamente esteatose hepática não alcoólica, doenças cardiovasculares (DCV) e metabólicas: como exemplo, alguns estudos referem que cerca de metade dos indivíduos com SM evoluem para Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) num período de oito anos (1, 2). Em Portugal, estima-se que a prevalência de SM afete de 33% (3) a 49.6% (4) dos indivíduos, em função da definição utilizada. Tendo em vista que a RI se estabelece previamente ao surgimento destas patologias associadas, a sua identificação precoce pode exercer um papel preventivo primário ideal. Aplica-se atualmente, em contexto de Cuidados de Saúde Primários e/ou Cuidados na Comunidade, um questionário de rastreio de DM2 (Finnish Diabetes Risk Score) (5).
O questionário para SM objetiva igualmente um foco na Prevenção, uma vez que esta pode representar, na maioria das vezes, um estadio prévio à DM2 propriamente dita, bem como de outras patologias. Esta ferramenta pode ser uma mais-valia nos serviços de Saúde Ocupacional, que se encontram na vanguarda do acompanhamento de adultos, e cujo curso da doença poderá ser controlado (ou mesmo revertido), com diagnóstico e intervenção precoces. Reitera-se que a maior parte do tempo de vida de um indivíduo é passado no trabalho, e este deve ser abordado em toda a sua definição de saúde (mais do que apenas fatores de risco ergonómicos, biológicos, químicos e/ou físicos, mas incluindo também os fatores de risco derivados da exposição a estilos de vida desadequados), atuando em sinergia com os Cuidados de Saúde Primários, e influenciando positivamente a produtividade das empresas (ao prevenir baixas médicas por doença, ou até mesmo ao reduzir acidentes de trabalho). A obesidade, um dos componentes da SM, representa, em Portugal, um fator de risco independente para o absentismo, influenciando a produtividade: indivíduos obesos perdem em média quatro dias de trabalho por ano, sendo este valor superior em mulheres, com cinco. Extrapolando para a população trabalhadora, o absenteísmo por obesidade tem um custo estimado de 236 milhões de euros por ano, originando uma carga social elevada (6).
Devido aos desafios inerentes à organização de rastreios a grandes populações, e de nem sempre existirem parâmetros bioquímicos recentes disponíveis, verifica-se uma tendência para o recurso a técnicas simples e custo-efetivas, como exemplo dos questionários de aplicação rápida. As vantagens prendem-se com a facilidade de administração, o tempo relativamente curto na aplicação do mesmo, a dispensa de colheitas de sangue e menores custos associados. Apesar de não se encontrarem ainda validados para Portugal, existem alguns instrumentos para o rastreio de SM, sendo que, na sua maioria, demonstram uma boa capacidade de deteção, dependendo do contexto:
- O questionário Japanese Metabolic Syndrome Risk Score (JAMRISC) apresentou uma sensibilidade de 100% (para SM), 90% (para pré-SM), 83.3% (para DM2), 92.3% (para pré-DM2), e uma Especificidade de 72.3% (SM), 63.0% (para pré-SM), 59.7% (para DM2), 65.7% (para pré-DM2), indicando uma taxa de deteção de 98.8% de pré-SM, 94.2% de SM, 85.1% pré-DM2 e 94.9% DM2. Segundo este questionário, a média de HOMA-IR era 1.15 para pontuações < 20, 1.67 para pontuações entre 20-49, 1.66 para pontuações entre 50-89, e 2.25 para pontuações entre 90-100, indicando resistência à insulina elevada. No entanto, este questionário não é aplicável a populações não asiáticas, por incluir algumas questões adaptadas à cultura, como o consumo de sake (2).
- O questionário Blood Stasis Questionnaires on Metabolic Syndrome (BSQ-MS) , apresentou uma sensibilidade de 82.9% e especificidade de 49.7% em 2156 utentes internados, e a sensibilidade e especificidade em prever, por regressão logística, foi de 72.2% e 71.6%, respetivamente (critérios da ATP III), com um ponto de corte de 9 (7);
- Em 2019, foi desenvolvido e validado o questionário “Questionnaire for the Identification of Metabolically Compromised Subjects in Phase-I” (ESF-1) (2), para identificação de SM na população mexicana (contendo 15 questões, sendo que cada resposta positiva é contabilizada com um ponto, considerando-se o ponto de corte para SM o valor de 7). O questionário foca em medidas antropométricas e dados clínicos, incluindo disfunção erétil, história de macrossomia, presença de Acantosis Nigricans, hipertensão, idade, história familiar de DM2, visão turva, polidipsia, poliúria, polifagia e ingestão alimentar, comparando com os critérios de Harmonização, ATPIII e IDF. A sensibilidade e especificidade variaram conforme a classificação, sendo de, respetivamente, para a Harmonização (72.8% e 83.2%), ATPIII (67.4% e 84.6%), e IDF (69.2% e 81.4%) e uma forte concordância entre a classificação do ESF-1 e qualquer das definições utilizadas:
Tendo em conta uma boa aplicabilidade da ferramenta “Encuesta de Identificación de Sujetos Metabólicamente Comprometidos en Fase-I (ESF-I)” e a sua possível adaptação ao contexto português, foram objetivos deste trabalho produzir uma tradução para a língua portuguesa da versão original do ESF-1, à luz das recomendações da Patient-Reported Outcome Consortium (8). Pretende-se também assegurar a equivalência linguística e cultural da tradução efetuada, avaliar o grau de dificuldade de preenchimento e a compreensão e a aplicabilidade do instrumento.
METODOLOGIA
A tradução da versão original foi conduzida segundo as normas do Patient-Reported Outcome Consortium (8), seguindo os passos: 1. Preparação; 2. Tradução; 3. Reconciliação 4. Retrotradução; 5. Revisão da retrotradução: 6. Harmonização; 7. Revisão; 8. Entrevista cognitiva; 9. Revisão/análise; 10. Revisão final e Documentação. Em seguida, encontra-se a descrição em detalhe de cada etapa.
1. Preparação. Numa fase inicial, os principais autores correspondentes da ferramenta ESF-1, foram contactados e concederam a permissão para que fosse realizada a tradução do questionário para a língua portuguesa, tendo enviado à autora o questionário original em língua inglesa.
2. Tradução. Dois indivíduos nativos de língua portuguesa e fluentes em inglês, desenvolveram, isoladamente, uma tradução individual do questionário ESF-1, da língua inglesa para português. Foram conciliadas as informações num único questionário, que foi enviado à autora deste artigo.
3. Reconciliação. Para se identificar e resolver discrepâncias ou conceitos inadequados na tradução, formou-se um painel constituído pela autora e profissionais com experiência na área de rastreios, analisando-se a tradução. Para cada questão tentou-se uma maior aproximação da versão original, tendo em consideração uma adequação à população portuguesa. Desta forma, analisou-se o questionário, integrando os pontos fortes e considerações mais pertinentes:
- O valor de perímetro de cintura do questionário traduzido (90 cm para homens e 80 cm para mulheres), foi alterado para 94 cm em homens, uma vez que representa o valor sugerido pela Orientação nº 017/2013 da Direção Geral da Saúde (DGS), que define procedimentos para antropometria em adultos (9). De facto, de acordo com as classificações de SM da IDF e do NCEP-ATPIII, a principal diferença entre estes era o valor limite obrigatório do perímetro da cintura aumentado, sendo que essa obrigatoriedade já não persiste, sendo possível utilizar valores regionais ou nacionais (10);
- Pelo mesmo referencial, foram ajustados os valores do rácio cintura:anca, 0.85 e 0.90, respetivamente, como pontos de corte para mulheres e homens;
- Foram ajustadas pequenas frases de forma a tornar mais fácil a compreensão. O resultado deste processo produziu uma versão completa traduzida no ESF-1.
4. Retrotradução. A versão traduzida foi enviada a um tradutor independente dos anteriores, nativo em língua inglesa, com formação de ensino superior, que também fosse fluente em português, sem conhecimento da versão original da ferramenta. Deste modo, procedeu-se à tradução da versão portuguesa, novamente para o idioma original (inglês). O objetivo nesta fase era mais que uma tradução simples, mas procurando uma equivalência semântica, conceitual e cultural.
5. Revisão da Retrotradução. Após retrotradução, a autora comparou a tradução gerada com a versão original. Ocorreu uma pequena discrepância de tradução que não traduzia o foco original do artigo e poderia levar a uma interpretação desadequada, relativamente à questão 13, cuja versão traduzida para português era “Acorda (ou tem constantemente) a visão desfocada ou turva?” “tendo sido retrotraduzida para “Do you regularly wake up in the middle of the night? Do you constantly have blurry vision?”, apresentando uma conotação diferente, que poderia funcionar como confundidor na resposta, visto que o facto de acordar várias vezes ao longo da noite poderia representar outras causas. Desta forma, foi mantida a versão “Acorda com a visão desfocada ou turva (ou tem constantemente essa sensação)?”. As restantes diferenças não foram valorizadas, uma vez que não induziam discrepância conceitual para a compreensão do questionário.
6. Harmonização. Após resolver as pequenas discrepâncias, a autora verificou a equivalência entre a versão original e a portuguesa, procedendo às alterações necessárias. Terminado o consenso, criou-se uma versão pré-final do questionário.
7. Revisão. A autora enviou a versão pré-final aos restantes profissionais com experiência na área de rastreios, de nacionalidade portuguesa, para que fosse verificada a coerência e aplicabilidade do instrumento. Analisaram-se as sugestões individuais. Uma vez que na reconciliação já se tinham denotado alterações e ajustes, nesta fase, pelo mesmo painel, não foram verificadas incongruências nem foram necessárias alterações.
8. Entrevista Cognitiva. Realizou-se a aplicação da versão pré-final do questionário, que objetivava verificar o grau de dificuldade de preenchimento, a facilidade de compreensão e a aplicabilidade da tradução. O questionário foi aplicado a uma amostra de conveniência constituída por cinco indivíduos, correspondentes à população-alvo, com idades compreendidas entre os 18 e os 66 anos, que consentissem colaborar. O tempo de aplicação do questionário foi inferior a 10 minutos.
9. Análise. Terminada a aplicação do pré-teste, foram recolhidas sugestões de melhoria, identificadas expressões dúbias, assim como analisados os seus pontos fortes e fracos, num relatório anonimizado. O questionário obteve, na generalidade, uma boa aceitabilidade e aplicabilidade. À semelhança do ocorrido no artigo original (2), as questões que provocaram maior dificuldade de compreensão:
A questão sobre um consumo superior a 300g de hidratos de carbono diário. Presencialmente e após uma breve explicação seria fácil de compreender, mas levantou-se a dúvida em caso de o questionário ser aplicado em formato online, exigindo uma quantificação ou demonstração para esclarecimento. Encontra-se descrito na análise crítica a forma de ultrapassar esta dificuldade, para facilitar os profissionais que pretendam aplicar o questionário.
A presença do sinal corporal designado Acantosis nigricans, sendo necessário esclarecer com um suporte de imagem o que tal significa.
Quanto às questões que envolvem cálculos de rácios, a melhor sugestão foi questionar apenas o valor propriamente dito das medições (perímetro da cintura, perímetro da anca, altura e peso corporal), e o investigador ou sistema informático onde sejam inseridos os valores calcular os rácios- por um lado, facilitaria o preenchimento e minimizaria erros de compreensão das questões, por serem mais trabalhosas e exigirem mais cálculos mentais.
10. Revisão Final e Documentação. O questionário foi revisto para identificar erros ortográficos, sintaxe e formatação final. Considerou-se finalizado o processo de tradução apresentando a versão portuguesa em Anexo 2.
ANÁLISE CRÍTICA
Através do presente trabalho, foi desenvolvida a versão portuguesa do questionário “Encuesta de Identificación de Sujetos Metabólicamente Comprometidos en Fase-I (ESF-I)”. A utilização das normas do PRO Consortium permitiu criar uma versão válida e adaptada à língua portuguesa, mantendo o conceito da original. De modo a estudar a validade da ferramenta, esta foi aplicada a uma amostra de conveniência de cinco indivíduos, demonstrando uma boa aplicabilidade, compreensão e aceitação. Este instrumento mostrou ser de fácil e rápida aplicação na população adulta, uma vez que o tempo de aplicação correspondia a cerca de 10 minutos e as dúvidas apresentadas foram de célere resolução.
A abordagem adotada para a tradução correspondeu aos princípios preconizados pelo Patient-Reported Outcome Consortium, apesar de existirem outras abordagens, como a da Organização Mundial da Saúde (OMS). O motivo que baseou a decisão prendeu-se pela possibilidade inicial de traduzir esta ferramenta para possível aplicação em rastreios online de autorrelato, e não apenas que fosse aplicado por profissionais de saúde em campanhas de rastreio presencial. Admitindo que alguns parâmetros sejam idealmente mais fidedignos se preenchidos por profissionais de saúde, tal, mediante a população-alvo e formação adequada, poderá também ser preenchido pela população geral. Por outro lado, ambas as metodologias de tradução se baseiam nos mesmos princípios, pelo que o resultado seria muito semelhante. Deste modo, o questionário pode ser aplicado em formato presencial ou online, representando, no entanto, a necessidade de ajustes:
- Em ambos os formatos (presencial ou online), é necessário que o investigador se faça munir de recursos visuais para clarificar o significado da ingestão de 300g de hidratos de carbono. Podem ser fornecidos os equivalentes em termos de dia alimentar em termos de medidas caseiras, requerido um dia alimentar comum, ou um diário alimentar de três dias aleatórios, para cálculo posterior, dependendo se o profissional for da área da Nutrição, ou não, tornando o resultado da questão mais fidedigno. Relativamente ao artigo original, os autores originais foram questionados sobre a metodologia utilizada, tendo referido que utilizaram um diário alimentar de três dias. No caso de não ser profissional na área da Nutrição, deve reconhecer-se previamente que de acordo com o último inquérito alimentar nacional e de atividade física (IAN-AF) (11), a população adulta portuguesa ingeria, em média, 1910 kcal por dia (1635 kcal/dia nas mulheres e 2228 kcal/dia nos homens), sendo a equivalência em hidratos de carbono correspondente a aproximadamente 50%, o que se traduz numa ingestão de aproximadamente 240g em hidratos de carbono. A ingestão média nacional de açúcares simples (mono e dissacarídeos) correspondia a 84 g/dia. Desta forma, a adição de um refrigerante típico (com uma média de 8-10g hidratos de carbono por cada 100ml) e um produto de pastelaria (tendo estes, em média, entre 40-60g de hidratos de carbono) (12), compreende-se que a inclusão de dois destes produtos de forma diária podem fazer ultrapassar uma ingestão de 300g de hidratos de carbono, bem como a adição de snacks de conteúdo açucarado (bolachas, chocolates, incluindo o açúcar de adição em alguns laticínios).
- Em relação à presença de Acantosis Nigricans, em ambos os formatos podem e devem ser apresentados recursos visuais de suporte, sendo que o rastreio no formato presencial apresenta a vantagem de poder ser visualizada diretamente pelo próprio profissional de saúde.
- De forma a maximizar o carácter fidedigno das informações e minimizar o risco do viés da memória, os valores das medições antropométricas e de tensões arteriais deveriam ser executados segundo procedimentos validados das recomendações nacionais da DGS. Deste modo, a aplicação desta ferramenta em formato presencial torna mais válidas as informações (viabilizando a aplicação em contexto de rastreios na comunidade/consultas, realizada por profissionais de saúde experientes). Tal facto não invalida a aplicação online, por um lado em situações em que a população-alvo possua esses dados em processo clínico, ou recebendo formação sobre como realizar medições de acordo com as normas vigentes.
A aplicação do questionário ESF-1 tem em conta uma população mexicana, representando uma mistura de europeus e indígenas, sendo que o ponto de corte de 7 definido poderá ser ligeiramente diferente em europeus, deste modo sugere-se a aplicação/validação da ferramenta em contexto da população portuguesa.
CONCLUSÃO
A presente versão portuguesa, traduzida do questionário “Encuesta de Identificación de Sujetos Metabólicamente Comprometidos en Fase-I (ESF-I) pode ser relevante em várias áreas, como consultas de saúde ocupacional, cuidados de saúde primários ou outros rastreios na comunidade, quando se procura maximizar recursos, tendo em vista a diminuição dos gastos, em linha com encaminhamento e tratamento precoces. Tendo em consideração que a síndrome metabólica é o principal precursor de várias doenças crónicas não transmissíveis, aumentando o risco das grandes causas de mortalidade e morbilidade em Portugal, espera-se que este instrumento permita uma identificação precoce de uma população em risco, e uma intervenção atempada e otimizada, de forma a minimizar a evolução e/ou deterioração do quadro clínico. Aguarda-se a sua validação ao contexto português. A replicação desta ferramenta permitirá atuar em contextos diferentes e, quando o número de trabalhos assim o permitir, definir estratégias de âmbito mais alargado. Deste modo, este trabalho surge também como incentivo a novas investigações.