INTRODUÇÃO
A COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus- síndrome respiratória aguda-grave 2 (SARS-CoV-2), foi identificada pela primeira vez na China, em dezembro de 2019. Em Portugal, os dois primeiros casos foram reportados no dia 2 de março de 2020 e foi reconhecida pela Organização Mundial de Saúde no dia 11 de março de 2020, como pandemia (1). Trata-se de uma doença infeciosa respiratória, transmitida de pessoa a pessoa, por contacto direto com gotículas ou secreções respiratórias infetadas. O período de incubação da doença é em média 1 a 14 dias, sendo que a presença do vírus nas vias aéreas pode preceder o início da sintomatologia em alguns dias. Salienta-se que indivíduos totalmente assintomáticos podem apresentar cargas virais semelhantes a indivíduos sintomáticos (2). Este microrganismo integra a lista de agentes biológicos reconhecidamente infeciosos para os seres humanos e está classificado como agente biológico do grupo 3 (Decreto-Lei n.º 102-A/2020, de 9 de dezembro, que altera o Decreto-Lei n.º 84/97, de 16 de abril). Os profissionais de saúde podem potenciar as vias de transmissão/propagação de agentes infeciosos, facto que deve ser valorizado no controlo da infeção associada à prestação de cuidados de saúde (3).
A emergência e a rápida disseminação internacional do novo coronavírus colocaram desafios inesperados a todas as entidades nos mais diversos setores. Nenhum país, sistema de saúde ou instituição estava preparado para uma pandemia com a dimensão e com a repercussão que se observam, mas sobretudo porque continua a constituir efeitos (diretos ou indiretos) por um período que se estima longo, constituindo uma prova para todos os países e setores, a nível global. A pandemia alterou a forma como a população e os decisores valorizam a saúde e o acesso aos cuidados de saúde. Destacou também a relevância de uma adequada prevenção e controlo da infeção nos locais de trabalho, reforçando a importância dos Serviços de Saúde Ocupacional, que garantem a proteção e promoção da saúde e bem-estar dos trabalhadores e que neste caso em particular, permitiu limitar o impacto negativo da COVID-19 a todos os níveis (4).
Durante o ano de 2020, a equipa multidisciplinar do Serviço Saúde Ocupacional de um Hospital Central garantiu a monitorização dos casos de infeção por SARS-CoV-2 entre os profissionais de saúde: a equipa garantiu a gestão dos sinais e sintomas compatíveis com o diagnóstico de COVID-19 e coordenou os rastreios de contactos, na sequência de cada caso confirmado para a doença, com o propósito de identificar rapidamente potenciais novos casos e assim interromper a cadeia de transmissão da infeção. Estas tarefas implicaram a identificação imediata de todos os contactos decorrentes de cada caso confirmado (tendo em conta o período de infeciosidade, inquérito epidemiológico, avaliação e estratificação de risco dos contactos identificados) e a avaliação dos sinais e/ou sintomas sugestivos de COVID-19. Tratando-se de uma doença de notificação obrigatória, todos os casos confirmados foram notificados na plataforma Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e também registados numa base de dados interna ao Serviço de Saúde Ocupacional, criada para o registo das infeções no Centro Hospitalar em questão.
Este trabalho caracteriza os casos confirmados num Hospital Central contribuindo para a criação de medidas de prevenção mais eficientes.
METODOLOGIA
Realizou-se um estudo observacional onde a população-alvo foi constituída pelos profissionais de saúde de um Hospital Central. Destes, selecionaram-se os profissionais que, no período entre o dia 2 de março e o dia 31 de dezembro de 2020, constituíram casos confirmados para COVID-19, através da deteção de ácido nucleicos (RNA) de SARS-CoV-2 por teste molecular de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) ou por teste rápido de antigénio de uso profissional (TRAg), para SARS-CoV-2. A amostra foi composta por 723 elementos. Neste estudo consideraram-se como unidades de base da investigação o registo dos casos confirmados para a doença pelo Serviço de Saúde Ocupacional do Hospital Central, relacionando as variáveis: género, idade, categoria profissional, local de trabalho (serviço hospitalar), presença de sintomatologia e gravidade da doença. Relativamente aos critérios de inclusão considerou-se ser profissional de saúde, exercer funções no Hospital Central em questão e testar positivo para a COVID-19; como critérios de exclusão considerou-se pertencer ao grupo dos profissionais de saúde das empresas prestadoras de serviços.
Os dados obtidos foram analisados com recurso ao programa estatísticoMicrosoft Excel, apresentados através de tabelas e gráficos.
RESULTADOS
A 30 de dezembro de 2020, contabilizavam-se um total de 8979 funcionários ativos no Centro Hospitalar em questão, sendo a sua maioria do género feminino (n= 6601, 74%), da categoria profissional de enfermagem e da faixa etária entre os 46-60 anos de idade. Desde o dia 2 de março até ao dia 31 de dezembro de 2020, contabilizaram-se 723 profissionais infetados (prevalência de 8%). Em termos cronológicos, observou-se um pico de casos no mês de março e outro em dezembro de 2020- gráfico 1.
As infeções foram mais frequentes no género feminino (76%) (tabela 1), em profissionais até aos 45 anos (tabela 2) e da categoria de enfermagem (tabela 3). Para uma melhor visualização da distribuição dos casos por local de trabalho (serviço hospitalar), representaram-se apenas os serviços que contabilizaram cinco ou mais casos sendo os restantes serviços hospitalares incluídos na categoria “outros”. Os serviços de medicina interna, serviço de urgência, infeciologia e cirurgia registaram o maior número de infeções, como representado no gráfico 2. Em relação à apresentação da sintomatologia, verificou-se que à data do diagnóstico, 68% (n=489) dos infetados apresentava-se sintomático.
POPULAÇÃO (n) | FREQUÊNCIA (n) | FREQÛENCIA RELATIVA (%) | |
---|---|---|---|
Feminino | 6601 | 548 | 8% |
Masculino | 2378 | 175 | 7% |
Total | 8979 | 723 | N.A. |
POPULAÇÃO (n) | FREQUÊNCIA (n) | FREQUÊNCIA RELATIVA (%) | |
---|---|---|---|
0-29 | 1707 | 176 | 10,0% |
30-45 | 2462 | 293 | 9,7% |
46-60 | 3916 | 198 | 5,1% |
60 | 894 | 56 | 6,3% |
Total | 8979 | 723 | N.A. |
População (n) | Frequência (n) | Frequência relativa (%) | |
---|---|---|---|
Assistente operacional | 2091 | 177 | 9% |
Assistente Técnico | 769 | 56 | 7% |
Enfermeiro | 2926 | 285 | 10% |
Médico | 2255 | 158 | 7% |
Técnico Superior | 211 | 10 | 5% |
Técnico Superior Diagnóstico e Terapêutica | 727 | 36 | 5% |
Total | 8979 | 722 | N.A. |
Relativamente à gravidade da doença, da amostra total de infetados, cinco profissionais tiveram necessidade de internamento, sendo que um profissional acabou por falecer devido a complicações relacionadas com a COVID-19. Descreve-se que destes casos quatro pertenciam ao género masculino; a idade mínima foi de 23 anos e a máxima de 68; um caso ocorreu na categoria médica, dois em enfermeiros e dois em assistentes operacionais. Estes profissionais pertenciam aos Serviços de Urgência, Cuidados Intensivos, Medicina interna, Pediatria Médica e Gastroenterologia. Cronologicamente, quatro ocorreram em março e um em maio.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONCLUSÕES
Salienta-se que os dados descritos dizem respeito ao período inicial da pandemia onde o conhecimento científico era bastante limitado, os Equipamento de Proteção Individual (EPI) não estavam amplamente disponíveis e as vacinas ainda não estavam a ser distribuídas.
Cronologicamente, o maior número de casos ocorreu em março e em dezembro de 2020, em relação com as vagas pandémicas observadas em Portugal no ano a que este trabalho se refere. No que toca às variáveis demográficas, não se verificou diferença significativa em termos de género, estando de acordo com a epidemiologia da doença. No entanto, apesar de ambos os géneros apresentarem a mesma suscetibilidade à doença, sabe-se que os homens têm um maior risco de doença grave (2), o que é corroborado pelos resultados apresentados no que diz respeito aos casos com necessidade de internamento, assim como ao caso mortal. Em termos de faixa etária, verificou-se uma maior vulnerabilidade à doença nas faixas etárias inferiores. Isto seria esperado uma vez que, do ponto de vista organizacional, optou-se inicialmente por mobilizar os profissionais mais jovens para a prestação direta de cuidados a doentes COVID-19 em detrimento das faixas etárias mais avançadas. Em termos de categoria profissional, o maior número de casos foi registado em enfermeiros (em termos absolutos e relativos). Estes resultados eram expectáveis dada a via de transmissão da doença e ao maior contacto destas categorias profissionais durante a prestação direta de cuidados. Tipicamente, classificam-se como serviços de alto risco de exposição a fatores de risco natureza biológica, os serviços de urgência, medicina interna, infeciologia e unidades de cuidados intensivos e intermédios (5) (6), onde de facto, foi verificado um elevado número de casos confirmados. Os serviços de Cirurgia do Hospital em questão, foram maioritariamente transformados em serviços de prestação exclusiva de cuidados a doentes com COVID-19, justificando o elevado número de casos observados nesses serviços. Não foram encontrados dados científicos que relacionem a carga viral da exposição com a gravidade da doença desenvolvida; no entanto, verificou-se que a maioria dos casos mais graves (necessidade de internamento/mortalidade) ocorreram em março de 2020 e em profissionais pertencentes a serviços com maior risco de exposição (unidades de urgência, locais onde são realizados procedimentos libertadores de aerossóis). Nesta fase pandémica verificava-se uma escassez de EPI disponíveis e a sua utilização não era ainda obrigatória, traduzindo uma exposição mais desprotegida a este agente.
Constatou-se um importante número de casos assintomáticos, o que pode traduzir uma potencial barreira à identificação de novos casos e consequentemente prejudicar o controlo da transmissão da infeção (7), reforçando a importância de uma cuidada vigilância epidemiológica, facilitadora da gestão do risco.
Por fim, verificou-se uma taxa de prevalência da doença de cerca de 8% em profissionais de saúde do Centro Hospitalar, paralelamente a uma taxa de prevalência de 4% verificada na população portuguesa para a mesma altura (8) (9). Assim, a frequência de casos de COVID-19 entre os profissionais de saúde parece ser, com base neste estudo, bastante superior à população em geral.
Admite-se como limitação do estudo, a possível subnotificação dos casos confirmados à Saúde Ocupacional, havendo a possibilidade de não terem sido registados todos os casos efetivamente existentes em profissionais do Centro Hospitalar. Ainda assim, a elevada contagiosidade do SARS-CoV-2 é igualmente ilustrada nos dados obtidos. Os serviços com maior número de casos confirmados relacionam-se com a prestação direta de cuidados a doentes infetados com COVID-19, reforçando que estes profissionais apresentam um maior risco de exposição profissional e consequentemente de infeção a este agente. Demonstram também que é fundamental assegurar a saúde e segurança dos profissionais através da manutenção de medidas adequadas de proteção individual e coletiva, estruturadas em função do risco de infeção. Em primeiro lugar, é essencial que todos os profissionais com sintomas respiratórios agudos sejam sinalizados, garantindo a correta gestão da sintomatologia apresentada a par de uma adaptação da prestação de cuidados de saúde, que deve ser sempre articulada com os Serviços de Saúde Ocupacional. Acrescenta-se que medidas básicas de prevenção de infeção como a etiqueta respiratória e lavagem e/ou desinfeção correta e frequente das mãos devem ser cumpridas por todos os profissionais de saúde. Os Equipamentos de Proteção Individual devem ser recomendados em função do risco de exposição e cumprindo as normas e orientações atualizadas em cada momento. Da mesma forma, a entidade empregadora e os respetivos Serviços de Saúde Ocupacional devem não só fornecer todos os EPIs necessários, como também contribuir de forma ativa para o seu correto uso, manutenção e aconselhamento através do reforço da formação e/ou informação adequada a cada grupo profissional e garantido a atualização em prevenção e controlo de infeções. Por outro lado, deve ser assegurada a instalação, manutenção e avaliação dos sistemas de ventilação e da qualidade do ar em áreas onde possam circular pessoas com risco infecioso, assim como garantida a limpeza e desinfeção de equipamentos e de superfícies. Face aos dados obtidos, poderá existir benefício na implementação de protocolos que incluam testagem periódica dos profissionais de saúde sobretudo em serviços de maior risco de infeção e/ou de maior vulnerabilidade dos doentes (serviços de oncologia, unidades de transplante, entre outros). Esta medida também contribuiria para o controlo dos casos assintomáticos e, desta forma, quebraria possíveis cadeias de transmissão, já que indivíduos assintomáticos são também infeciosos.
A COVID-19 é atualmente uma infeção respiratória caracterizada por uma apresentação clínica heterógena, e cuja importância epidemiológica depende da adoção de medidas que reduzam a transmissão de SARS-CoV-2, justificando a permanente atualização dos programas de controlo de infeção das instituições para que o risco de exposição seja minimizado. Assim, uma política institucional preventiva para diminuir a transmissão de infeções, antevendo oportunidades e colocando em prática medidas com vista à minimização do risco da exposição profissional, é altamente recomendada. Atualmente, a informação científica disponível sobre casos confirmados de COVID-19 em profissionais de saúde é limitada, e como tal são necessários mais dados para uma melhor caracterização dos fatores de risco e assim garantir uma adaptação dos serviços de saúde que devem priorizar estratégias baseadas na evidência atualizada sobre o SARS-CoV2.