INTRODUÇÃO
A Medicina Geral e Familiar é uma especialidade que abrange toda a população, desde os cuidados pré-concecionais à morte do indivíduo. Um dos grupos vulneráveis abrangidos na sua atividade é a Saúde Materna, que consiste no acompanhamento de mulheres grávidas. Nessas consultas, o médico de família executa cuidados preventivos, como aconselhamento sobre alimentação e estilos de vida adequados ou prevenção de infeções e avalia o risco clínico da gestação. Uma vez identificado um fator de risco clínico, deverá ser realizada uma referenciação para os cuidados de saúde secundários. A Medicina do Trabalho, por sua vez, é uma especialidade à qual compete assegurar a vigilância adequada da saúde dos trabalhadores em função dos riscos a que se encontram expostos no seu local de trabalho e no desempenho das suas tarefas profissionais.
Não raras vezes, a mulher grávida questiona o médico que acompanha a sua gestação relativamente aos seus direitos laborais. Apesar da facilidade de acesso à informação atualmente, este é um tema que ainda deixa muitas dúvidas na população em geral e nos próprios profissionais de saúde. Com esta revisão, pretende criar-se um guia prático e rápido de consulta relativamente aos direitos laborais da mulher grávida, de modo que possa auxiliar no esclarecimento de dúvidas das utentes, bem como na sua correta orientação. É importante que os médicos que acompanham a gestação, bem como os Médicos do Trabalho, estejam a par destas leis, de modo a colaborarem com a mulher grávida para garantir as melhores condições de Segurança Laboral. Além disso, a multidisciplinaridade entre especialidades pode constituir uma importante aliança na identificação de riscos laborais específicos e posterior orientação da utente.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, considerou-se:
P (population): Mulheres grávidas trabalhadoras;
I (interest): Reunir conhecimentos relativamente aos seus direitos laborais num documento sucinto e de rápida consulta pelos profissionais de saúde;
C (context): Nos locais de trabalho, quer na presença ou na ausência de risco clínico e/ou específico.
Trata-se de uma revisão narrativa da legislação portuguesa realizada em novembro de 2022, nomeadamente do Código do Trabalho Português, complementado com o Guia Prático do Subsídio de Riscos Específicos, do Instituto da Segurança Social, I.P.
CONTEÚDO
A Constituição Portuguesa e o Código de Trabalho consagram os direitos do trabalhador no sentido de protegerem esta classe, regulando as relações laborais entre empregados e empregadores (1) (2). Estes direitos são fundamentais e invioláveis, sendo que todos têm direito ao trabalho, independentemente da sua condição. Nenhum trabalhador deve ser discriminado no exercício deste direito, incluindo a mulher grávida (2).
De acordo com a Diretiva 92/85/CEE do Conselho de 19 de outubro, as trabalhadoras grávidas devem ser consideradas um grupo sujeito a riscos específicos e devem ser tomadas medidas no que toca à sua saúde e segurança sob diversos pontos de vista, não as desfavorecendo no mercado de trabalho e não afetando as diretivas de igualdade de tratamento entre homens e mulheres (3). A violação do anteriormente disposto constitui contraordenação, devendo ser alvo de atuação por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), no setor privado, e das Inspeções dos Ministérios, no setor público (4). Seguidamente, abordar-se-ão as dúvidas legais mais frequentes da mulher grávida nas consultas de Saúde Materna.
Despedimento da mulher grávida
Uma das maiores preocupações manifestadas na consulta é se a mulher grávida poderá ser despedida simplesmente por estar em tal estado fisiológico. De acordo com o Artigo 63º do Código do Trabalho, este despedimento só pode acontecer perante justa causa (2). Se for o caso, a entidade empregadora terá de submeter o processo para a Comissão de Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) que, por sua vez, emitirá um parecer, que pode ser favorável ou desfavorável ao despedimento; no caso de ser desfavorável, a entidade empregadora só poderá despedir a grávida após ação judicial que reconheça o motivo, devendo ser apresentada nos primeiros trinta dias após o parecer. A violação deste artigo constitui uma contraordenação grave. Caso o contrato esteja a aproximar-se do seu termo, a entidade empregadora deverá comunicar à CITE o motivo da não renovação do contrato de trabalho, no prazo de cinco dias úteis prévios à data da denúncia (4).
Dispensa para consultas médicas
Outra das preocupações da mulher grávida é que as consultas para seguimento da sua gestação não coincidam com o horário de trabalho, de modo a não criar transtorno entre a equipa e incompatibilidade com a entidade empregadora, dado o número elevado de consultas e realização de exames que a mulher necessita nesta fase da sua vida. De acordo com o Artigo 46º do Código do Trabalho, a consulta deve realizar-se, de facto e sempre que possível, fora do horário de trabalho (2). No entanto, se tal não for concretizável, a grávida tem direito a dispensa laboral para realização de consultas e atos médicos, tendo em atenção que a entidade patronal pode exigir a apresentação de comprovativo de ida a consulta/exame (2). Do mesmo modo, a preparação para o parto é equiparada à consulta pré-natal, tendo direito a dispensa para a mesma (2). Relativamente ao pai, este tem direito a três dispensas do trabalho para acompanhar a grávida às consultas pré-natais. A violação deste artigo constitui uma contraordenação grave (2).
Dispensa da realização de horas extraordinárias e de horário noturno
De acordo com o Artigo 59º do Código do Trabalho, a mulher grávida tem o direito, se assim o desejar, de não realizar trabalho suplementar (2). Se tal for necessário para a sua saúde ou para a do feto, a mulher também poderá estar isenta do mesmo durante todo o tempo que durar a amamentação (2). Relativamente ao trabalho em horário noturno, correspondente ao horário entre as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte, e de acordo com o Artigo 60º do Código de Trabalho, a mulher grávida, se assim o entender, pode requerer dispensa durante um período de 112 dias antes e após o parto, dos quais pelo menos metade antes da data previsível do mesmo (2). Se for considerado necessário pela equipa de saúde assistente, tal pode estender-se para o restante período da gravidez (2).
Certificado de incapacidade temporária por gravidez de risco
Neste ponto, abordar-se-á uma das dúvidas mais controversas e que mais dúvida gera entre grávidas e profissionais de saúde.
Gravidez de risco clínico
De acordo com o Artigo 37º do Código do Trabalho, uma gravidez apresenta risco clínico quando existem complicações médicas com a sua gravidez que acarretam riscos, para a mãe ou para o feto (2). Nesse caso, médicos do Serviço Nacional de Saúde podem passar um certificado de incapacidade temporária por Gravidez de Risco Clínico, pelo período que for necessário para prevenir o risco, sem prejuízo da licença parental inicial (2). Caso o risco clínico seja determinado por um médico em instituição privada, a mulher poderá preencher o Modelo RP5051-DGSS da Segurança Social, fazendo-se acompanhar de declaração médica que ateste o risco clínico da gestação (5). A mulher grávida receberá um subsídio por risco clínico no valor de 100% da sua remuneração de referência.
Gravidez de risco específico
Muitas mulheres grávidas dirigem-se aos médicos assistentes ou Médicos do Trabalho da sua entidade empregadora com o objetivo de obter um certificado de incapacidade temporária por gravidez de risco clínico, alegando estarem expostas a agentes, processos ou condições de trabalho que não são apropriadas para uma mulher grávida. No entanto, é incorreto ceder a tal pedido, uma vez que não se trata de um risco clínico, mas sim de um risco específico. Um risco específico é algo associado à profissão da mulher que pode afetar a sua saúde ou segurança durante a gestação, depois do nascimento da criança ou durante a amamentação, sendo que estes se encontram listados no Quadro 1 (5). Caso se verifique a existência de um risco específico, o médico assistente ou o Médico do Trabalho deverá atestar a sua existência, de modo que a entidade empregadora atribua ou ajuste para a mulher grávida uma outra função que não acarrete esse risco. Neste caso em concreto, é de extrema importância o papel do Médico do Trabalho, que conhece realmente as condições laborais da empresa empregadora e que pode atestar com segurança e veracidade a existência de riscos específicos. Caso não seja possível adaptar o trabalho à mulher grávida, a entidade empregadora deverá atestar essa impossibilidade. Seguidamente, a mulher grávida deverá preencher o Modelo RP5051-DGSS da Segurança Social, fazendo-se acompanhar da declaração da entidade empregadora e de atestado médico, de modo que fique dispensada de exercer funções durante o período necessário e com uma remuneração de 100% da remuneração de referência líquida, tendo como limite mínimo 65% da remuneração de referência (5). Se na definição e identificação de risco clínico os Médicos de Família são fundamentais, na definição de riscos específicos laborais são cruciais os Médicos do Trabalho, sendo o trabalho de equipa fundamental e uma boa comunicação entre ambas as especialidades a chave do seguimento da gestação em contexto laboral sem intercorrências e dentro do estipulado pela lei portuguesa.
Agentes físicos | Agentes biológicos | Agentes químicos | Processos e condições de trabalho |
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Agentes suscetíveis de provocar lesões fetais ou o desprendimento da placenta, tais como: - Choques, vibrações mecânicas ou movimentos; - Movimentação manual de cargas que comportem riscos dorsolombares, ou cujo peso exceda 10Kg; - Ruído; - Radiações ionizantes ou não ionizantes; - Temperaturas extremas; - Movimentos e posturas, deslocações quer no interior quer no exterior do estabelecimento, fadiga mental e física e outras sobrecargas físicas ligadas à atividade exercida; - Atmosferas com sobrepressão elevada, nomeadamente câmaras hiperbáricas ou de mergulho submarino. |
- Agentes biológicos dos grupos de risco 2, 3 e 4 (6) - Contacto com vetores de transmissão do toxoplasma e com o vírus da rubéola (salvo se existirem provas de que a trabalhadora grávida possui anticorpos ou imunidade a esses agentes). |
Substâncias químicas e preparações perigosas com possibilidade de efeitos irreversíveis (R40), efeito cancerígeno (R45, R49), efeitos indesejáveis na descendência (R61, R63) ou alterações genéticas hereditárias (R46): - Auramina; - Mercúrio e seus derivados; - Medicamentos antimitóticos; - Monóxido de carbono; - Agentes químicos perigosos de penetração cutânea formal; - Chumbo e seus compostos. |
- Fabrico de auramina. - Processo de ácido forte durante o fabrico de álcool isopropílico. - Trabalhos suscetíveis de provocarem a exposição a hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (tais como fuligem, alcatrão, pez, fumos ou poeiras de hulha). - Poeiras, fumos ou névoas produzidos durante a calcinação e refinação de mates de níquel. - Poeiras de madeiras de folhosas. |
Proteção da saúde da grávida em contexto laboral
No seguimento do ponto anterior, é importante realçar que, de acordo com o Artigo 62º do Código de Trabalho, é direito da mulher grávida que as suas condições de trabalho sejam devidamente avaliadas e, se for caso disso, adaptadas pela entidade empregadora, de modo a garantir a segurança da grávida e do feto (2).
Gratuitidade de consultas médicas
De acordo com o Artigo 4º do Decreto-Lei n.º 113/2011, publicado em Diário da República, todas as grávidas e parturientes estão isentas do pagamento de taxas moderadoras das consultas (7). Deste modo, todas as mulheres grávidas portuguesas ou estrangeiras que residam em Portugal há mais de 90 dias, têm direito a consultas gratuitas durante a gravidez e 60 dias após o parto (8). Para tal, devem ir ao centro de saúde onde estão inscritas informar da gestação. Caso a gestante não tenha médico de família, ser-lhe-á atribuído um (9).
Licença por interrupção da gravidez
No caso de interrupção da gravidez, quer por aborto espontâneo, quer por interrupção voluntária da gravidez, tem direito a licença entre 14 e 30 dias, mediante apresentação de atestado médico (10).
Abono pré-natal
Como incentivo à maternidade, existe o abono de família pré-natal. Este abono é atribuído a partir do mês seguinte ao que atinge a 13ª semana de gestação, de modo a compensar os gastos acrescidos durante a gravidez. Para ter direito a ele, a grávida deverá ser cidadã nacional ou equiparada a residente, ser parte de um agregado familiar que não tenha património mobiliário (como contas bancárias, ações, obrigações, etc.) de valor superior a 106.368,00€ e deverá ter um agregado familiar com um rendimento de referência inferior ou igual ao 3º escalão. O rendimento de referência obtém-se somando os rendimentos dos elementos do agregado familiar e dividindo pelo número de crianças e jovens com direito ao abono de família nesse mesmo agregado, a que se adiciona o número de bebés que a grávida está à espera. Este abono é acumulável com outros subsídios, como o de desemprego, o de doença, parental, de adoção, entre outros, não sendo, no entanto, acumulável, com o de interrupção de gravidez. Se a gestação for superior a 40 semanas, ele é atribuído por um período de seis meses ou até ao mês do nascimento, inclusive; se a gestação for inferior a 40 semanas, é atribuído por seis meses, podendo ser acumulável com o abono de família para crianças e jovens após o nascimento. O abono cessa no caso de a gestação ser interrompida, de a grávida deixar de viver em Portugal ou terminar o prazo de validade do título de residência em território nacional. O abono deve ser requerido pela mulher grávida ou em seu nome, pelo respetivo representante legal, através do Serviço de Segurança Social Direta ou através dos formulários Mod.RP5045-DGSS e Mod.GF44-DGSS, a apresentar nos serviços de atendimento da Segurança Social ou nas lojas do cidadão. O abono deverá ser requerido durante o período de gravidez ou no prazo de seis meses contados a partir do mês seguinte ao do nascimento. Fora do período da gestação, considera-se válido o requerimento do abono de família para crianças e jovens, após o nascimento da criança, desde que este seja apresentado pela mãe, no prazo de seis meses a contar do mês seguinte ao do nascimento (11).
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
No que diz respeito às condições de aptidão da mulher grávida para a sua atividade laboral, ela pode ser considerada apta, apta condicionada ou inapta temporariamente. Esta é uma condição que, tal como o risco clínico gestacional, é dinâmico e que poderá ser reavaliado pelo Médico do Trabalho ao longo da gestação.
A conclusão de “apta” equivale a completa aptidão física, fisiológica e psicológica da gestante para o exercício de todas as funções próprias da respetiva carreira profissional, naquele momento. Já a conclusão de “apta condicionada” significa que a aptidão da gestante apresenta reservas relativamente a circunstâncias do desempenho das funções da sua própria carreira ou que tem limitações que se repercutem em quebra de rendimento no trabalho, não muito significativa, que podem, ou não, ser recuperáveis ao longo da gestação e que idealmente será reavaliado pelo Médico do Trabalho. Tal implica que as considerações e observações estabelecidas por este sejam tomadas em consideração (por exemplo, “não deverá pegar em pesos superiores a 10Kg”). Por fim, a conclusão “inapta temporariamente” pode assumir uma de duas modalidades: por um lado, pode significar inaptidão para o exercício de todas as funções de qualquer categoria profissional, o que pressupõe a passagem à situação de doença; por outro lado, pode significar uma inaptidão para o desempenho das funções da respetiva carreira profissional, mas apto para preencher as funções de outras carreiras, com rendimento normal, o que pode dar lugar à organização de processo da recolocação profissional (12).
É importante que as mulheres grávidas tenham conhecimento e domínio sobre os seus direitos laborais, que deverão ser devidamente assegurados por todas as partes envolvidas. Os médicos assistentes da gestação, bem como os Médicos do Trabalho, também deverão estar cientes dos mesmos, podendo servir como mediadores, ajudando a esclarecê-las com clareza e a orientá-las conforme a lei portuguesa. Salienta-se a importância da diferença entre gravidez de risco clínico e gravidez de risco específico- se no primeiro, o papel do Médico de Família é fundamental para reconhecer os sinais de alarme de uma gestação, no segundo, a colaboração do médico do Trabalho poderá ser essencial na identificação fidedigna desses riscos específicos laborais de modo que a gravidez decorra sem intercorrências e com a maior tranquilidade possível para a mulher e para o bebé.