INTRODUÇÃO
A noção de “acidente de trabalho” encontra-se descrita em Diário da República, lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, n.º 1 do artigo 8.º, como “aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte” (1). Em Portugal, em 2021, existiram 166.028 acidentes de trabalho, sendo que desses, 93 resultaram em morte e 87.529 ocorreram no setor terciário, onde se incluem os profissionais de saúde (2).
Segundo dados publicados no relatório social do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de 2018, ocorreram cerca de 7.128 acidentes de trabalho no Ministério da Saúde no local de trabalho (89%) e no itinerário (11%). Dos 2.888 acidentes que motivaram certificados de incapacidade temporária (CIT) para o trabalho, perderam-se cerca de 106.636 dias de trabalho (3). De acordo com um estudo epidemiológico realizado em Portugal (4), verificou-se que os acidentes de trabalho no setor da saúde conduziram a absentismo laboral em cerca de 38,5%, provocando cerca de 154.182 dias de trabalho perdidos, com encargos financeiros na ordem dos 5.120.175 €.
Todos os dias, os profissionais de saúde são expostos a múltiplos riscos, nomeadamente o infecioso (5). Tanto a nível hospitalar, como dos cuidados de saúde primários (CSP), o contacto próximo com pessoas doentes expõe os profissionais de saúde a diversas doenças infetocontagiosas. Dentro das lesões possíveis, destacam-se as resultantes de materiais cortoperfurantes, que podem resultar da manipulação de objetos afiados contaminados com fluidos corporais, pela picada ou corte cutâneo. De acordo com uma metanálise de 2022, que incluiu dados de países desenvolvidos, a prevalência média estimada de lesões com material cortoperfurante foi de 39,2% no ano anterior e de 60,2% ao longo de toda a carreira (6). As lesões cortoperfurantes juntamente com as exposições por salpico são os meios mais eficazes de infeção por agentes transmissíveis pelo sangue, dos utentes para os profissionais de saúde. Essas lesões podem associar-se à transmissão do vírus da imunodeficiência humana (VIH), vírus da hepatite B e C (VHB e VHC) e de outros agentes, através da porta de entrada resultante (7) (8).
De acordo com a metanálise de Verbeek, um cirurgião apresenta, em média, um acidente com instrumentos cortantes ou perfurantes a cada dez cirurgias. Nos cuidados de saúde primários, apesar de menor exposição a instrumentos cortoperfurantes, existe contacto com um grande volume de pacientes (7). Ainda, a revisão de Elseviers et al refere que, mundialmente, existe uma prevalência de 1,4 a 9,5 acidentes com objetos perfurantes ou cortantes por cada 100 profissionais de saúde, acarretando elevados custos em saúde, especialmente, em casos de contacto com sangue contaminado com infeção VIH (5)(7).
Entre 2004 e 2013, no Reino Unido, cerca de 4.830 profissionais de saúde reportaram exposição a fluidos corporais em contexto ocupacional, sendo que 71% desses correspondiam a lesões percutâneas (9).
A prevalência da infeção associada a estes acidentes depende de vários fatores, principalmente taxa de vacinação entre os profissionais, acessibilidade a materiais de proteção, profilaxia pós exposição, a adesão aos protocolos preventivos implementados e a imunocompetência do profissional de saúde. Em adição, cada acidente está associado a custos diretos e indiretos, especialmente o tempo de trabalho perdido, o tempo pessoal investido, os custos dos exames complementares, o custo do tratamento e com a substituição do profissional (10).
No sentido de proteger e promover a saúde e segurança nos casos associados aos dispositivos médicos cortoperfurantes, em paralelo com guidelines europeias e internacionais estabeleceu-se em Decreto-lei n.º 121/2013, de 22 de agosto, o regime jurídico relativo à prevenção de feridas provocadas por dispositivos médicos cortoperfurantes que constituam equipamentos de trabalho nos setores hospitalar e da prestação de cuidados de saúde (11). Este encontra-se na Circular Normativa nº 1 de 2019.04.01. denominada “Acidentes/Incidentes de Trabalho e Acontecimentos Perigosos nas Unidades de Cuidados de Saúde Primários e Serviços da Administração Regional de Saúde do Norte, IP” (12).
Assim, apesar da franca diminuição do número de ocorrências de acidentes de trabalho nos últimos 30 anos, a saúde ocupacional continua e continuará a ter um papel representativo na sua prevenção (2). Revela-se de elevada importância não só a adoção de medidas de precaução dos acidentes de trabalho, mas também, a implementação de um sistema integrado de reporte e ações rápidas.
Em diversas situações, o médico de família é o primeiro contacto para alguns acidentes laborais e, por isso, deve estar preparado para atuar e orientar estas situações. Com este trabalho, pretende-se expor um caso clínico relativo a um acidente de trabalho de uma profissional de saúde dos cuidados de saúde primários, que sofreu um corte com objeto cortante. Mais ainda, pretende-se alertar para a importância, não só da história pregressa como potenciadora de desfechos mais graves, mas também do reporte adequado dos acidentes de trabalho.
DESCRIÇÃO DO CASO
Identificação e antecedentes pessoais
Mulher, 54 anos de idade, enfermeira numa unidade de saúde familiar, nos cuidados de saúde primários, com 27 anos de experiência de trabalho. Apresenta colite ulcerosa sob terapêutica imunossupressora, psoríase palmo-plantar, gastrite e esofagite crónicas, osteoartrose nodal, dislipidemia e rinite alérgica. Encontra-se cronicamente medicada com metotrexato 12,5 mg por semana, ácido fólico 5 mg por semana, mesalazina 1000 mg duas vezes por dia, pantoprazol 20 mg em jejum, escitalopram 10 mg ao pequeno-almoço, atorvastatina 10 mg e ezetimiba 10 mg após jantar, betametasona e calcipotrieno tópicos em SOS.
História atual
A 7 de junho de 2023, a profissional de saúde iniciou a sua atividade laboral no turno da manhã, às 8 horas. Próximo do final do turno de oito horas estava a drenar um panarício a uma criança de 12 anos. No decorrer desse procedimento, sofreu um corte autoinflingido com a lâmina do bisturi conspurcada, produzindo um pequeno corte superficial no segundo dedo da sua mão direita. A profissional de saúde procedeu à higienização das mãos, após ter removido as luvas, procedeu à hemostase, sem necessidade de cuidados suplementares, e saiu do serviço sem reportar o acidente ocorrido. Em menos de 24 horas, apresentava sinais inflamatórios no local da lesão e iniciou aplicação de ácido fusídico, por iniciativa própria (figura 1). Cerca de 36 horas após o acidente, iniciou quadro de febre, temperatura axilar máxima de 39,7ºC, associada a shivering, dor local intensa e mal-estar geral. Por essa altura, a profissional de saúde decidiu recorrer ao serviço de urgência (SU) de um centro hospitalar nível 3, dando entrada como acidente de trabalho. Analiticamente, apresentava leucocitose, cerca de 15.510, com neutrofilia (92,2%) e elevação de proteína C reativa (52,2 mg/L). Foi-lhe solicitada ecografia partes moles da região periungueal que mostrou sinais sugestivos de celulite. Colheram-se hemoculturas com posterior isolamento de Staphylococcus Hominis. Iniciou antibioterapia empírica com flucloxacilina 500 mg q6h durante 7 dias, realizando flucloxacilina 2g endovenosa no SU antes da alta e tendo na sua posse o formulário anexo II do Decreto-Lei nº 503/99 para dar início ao processo de acidente de trabalho. No dia seguinte, por agravamento de dor, alteração da coloração do dedo e discreto rash difuso recorreu ao SU de outro centro hospitalar nível 3, tendo-se optado pela suspensão da flucloxacilina, por suspeita de alergia medicamentosa, e pela introdução do sulfametoxazol 800 mg com trimetoprim 160 mg q12h durante 14 dias, associado a deflazacorte 6 mg por dia.
Na consulta de Infeciologia de um centro hospitalar nível 3, duas semanas após, a sinistrada apresentava-se em apirexia sustentada, com exsudado purulento, manutenção de dor à mobilização, com sinais de reepitelização (figura 2). Portanto, considerou-se tratar-se de celulite do segundo dedo da mão direita com progressão provável para osteomielite ou osteíte, que se apresentou como choque tóxico estreptocócico ou que esteve associado a concomitante reação de hipersensibilidade a beta lactâmicos. Solicitou-se avaliação por Ortopedia e Imunoalergologia. Por apresentar má evolução da ferida traumática e pela ressonância magnética mostrar a coexistência de osteólise, sem inequívoca evidência de abscesso intraósseo ou osteomielite, foi realizada colheita de exsudado purulento com isolamento de Streptococcus pyogenes multissensível, nomeadamente a penicilina e clindamicina. Na consulta de Infeciologia subsequente, a 8 de agosto, iniciou linezolida 600 mg q12h. Foi contactado SU de Imunoalergologia, combinada toma assistida de cefalosporina endovenosa no Hospital de Dia de Doenças Infeciosas, que realizou dois dias após, sem intercorrências. As serologias víricas, VIH, VHB e VHC foram negativas inicialmente e quatro semanas após.
À data atual, a lesada encontra-se ausente do serviço há quinze semanas, mantém dor significativa à mobilização, com limitação na flexão do dedo. Na reavaliação imagiológica, já se individualiza a falange distal, encontrando-se a cortical preservada. Observam-se ainda sinais de tenossinovite dos flexores do segundo dedo da mão direita. Pelo que a sinistrada será orientada para Medicina Física e Reabilitação.
DISCUSSÃO
Durante a sua atividade profissional, todos os indivíduos apresentam risco de virem a sofrer acidentes ou incidentes de trabalho. Esses podem representar um significativo impacto social e económico. São, portanto, considerados um problema de saúde pública internacional, tornando-se imperativo por parte das entidades empregadoras o dever de promover condições de segurança e saúde nos locais de trabalho.
Os profissionais de saúde, inerente à natureza das suas funções, apresentam maior risco, nomeadamente, de sofrerem lesões com objetos cortoperfurantes. Segundo a Agência Europeia para a Segurança e a Saúde no Trabalho, o setor da saúde apresenta uma taxa de incidência de acidentes de trabalho 1,34 vezes superior à média europeia (13) (14).
Perante um acidente de trabalho com material cortoperfurante é fundamental seguir o protocolo estabelecido no local de trabalho. Com a notificação, pretende-se salvaguardar os interesses do profissional de saúde, prestando-lhe os cuidados adequados, mas também escrutinar o sucedido, para a eventual implementação de medidas corretivas promotoras da segurança e da saúde no local de trabalho.
Apesar da reconhecida importância da notificação, acredita-se que a denúncia destas situações ocorre, maioritariamente, em casos de exposição significativa, havendo subestimação do verdadeiro número de acidentes com instrumentos cortoperfurantes (9). De entre as principais razões para a não notificação, destaca-se a probabilidade de transmissão de infeções estimada ser baixa, o medo de estigmatização, a falta de tempo e a falta de familiaridade com o procedimento burocrático (5). Também no caso em análise, apenas se procedeu à notificação do acidente no momento em que a sinistrada desenvolveu sintomatologia mais grave. Reconhece-se, assim, a necessidade de os profissionais de saúde estarem familiarizados com o procedimento imediato, não só para o caso de se lesionarem, mas também para serem capazes de prestar auxílio aos colegas (9).
Nos acidentes de trabalho com exposição a fluidos orgânicos, tal como o caso em análise, a assistência médica deverá ser realizada no serviço de urgência de um hospital da rede nacional hospitalar de referenciação para a infeção por VIH, na qual se encontra listado o centro hospitalar nível 3 mencionado. Na admissão no serviço de urgência, deve codificar-se o “acidente de trabalho”, responsabilidade essa, alusiva ao sinistrado.
De acordo com a bibliografia disponível, os acidentes desta natureza são mais frequentes na classe profissional de enfermagem, em elementos do sexo feminino e as mãos são o local mais frequentemente afetado (4) (15). Portanto, o caso em análise coincide com o estereótipo descrito.
Tal como descrito anteriormente, o desenvolvimento de doença após uma lesão cortoperfurante depende dos fatores do utente e do profissional de saúde. De entre os fatores do profissional de saúde, destaca-se a competência do seu sistema imunitário. Tendo em conta que o aumento do risco de infeções bacterianas, víricas e outros agentes oportunistas é um reconhecido efeito secundário da terapêutica com agentes imunossupressores (16), a imunodeficiência adquirida secundária à terapêutica com metotrexato poderá ter contribuído para a doença mais arrastada.
Em diversos estudos, identificaram-se como fatores que contribuíram para a ocorrência de acidentes de trabalho, a idade, poucos anos de experiência, a falta de dispensadores de material cortoperfurante, o elevado número de horas trabalhadas no momento do acidente e a elevada carga de trabalho (4) (6) (17). Neste caso, podem apontar-se os dois últimos como os principais fatores contributivos. A enfermeira que sofreu o acidente de trabalho esteve ausente do trabalho cerca de 15 semanas, com impacto pessoal, familiar e psicológico significativo secundário à incerteza prognóstica e dos tratamentos necessários. Adicionalmente, a sua ausência no local de trabalho condicionou o trabalho da restante equipa, tendo sido necessário o reajuste de tarefas que resultou na sobrecarga de tarefas para os restantes colegas durante cerca de onze semanas. Consequentemente, após esse período, um enfermeiro foi contratado temporariamente para substituir a colega ausente.
CONCLUSÃO
Os acidentes de trabalho resultantes da utilização de objetos cortoperfurantes são eventos adversos frequentes e preveníveis entre os profissionais de saúde. O risco de infeção secundária depende de vários fatores, nomeadamente da carga de doença do utente, da imunidade do profissional, do modo e do local de inoculação. Dessa forma, é relevante conhecer os antecedentes pessoais do utente, do profissional de saúde e o mecanismo da lesão, para estratificar o risco associado.
Tendo em conta que o desconhecimento dos procedimentos é um dos motivos para a não notificação, a existência de protocolos de atuação conhecidos por todos os profissionais de saúde poderá contribuir para o aumento da notificação de eventos. De facto, a participação formal dos acidentes é de particular importância por permitir, por um lado, o direito de reparação ao profissional sinistrado e por ser, por outro lado, a oportunidade para se identificar as causas e, por conseguinte, desenvolver medidas de prevenção e proteção eficazes para mitigar situações semelhantes futuras.
Nos acidentes de trabalho no contexto dos cuidados de saúde primários, o médico de família pode ter um papel fundamental por ser, quase sempre, o primeiro ponto de contacto, pelo que é importante estar sensibilizado para estas situações.
Em conclusão, revela-se importante a cooperação dos serviços de Saúde Ocupacional com os restantes profissionais de saúde, de forma a garantir uma correta avaliação e gestão dos riscos ocupacionais.