INTRODUÇÃO
O facto de a população mundial, na generalidade dos países, estar a atingir patamares de maior longevidade, pelos melhores cuidados médicos e melhores condições gerais de vida, simultaneamente, torna-se mais complicado os sistemas de segurança social conseguirem as verbas necessárias para manterem os apoios económicos que fornecem, pelo que a legislação alarga progressivamente o prazo a partir da qual se pode atingir a idade da reforma. Para além disso, a subida do custo de vida em muitos países faz com que indivíduos de mais idade, por vezes já reformados, regressem ao mercado de trabalho, para obtenção de uma verba adicional que lhe permita sobreviver ou viver um pouco melhor. Torna-se por isso pertinente analisar de que forma o Declínio Cognitivo poderá interagir com a capacidade de trabalho e outras variáveis ocupacionais.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
-P (population): população ativa mais envelhecida
-I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre de que forma o Declínio Cognitivo (DC) poderá modelar a capacidade de trabalho e restantes variáveis em contexto ocupacional
-C (context): saúde e segurança ocupacionais aplicadas a trabalhadores com algum patamar de DC
Assim, a pergunta protocolar será: De que forma o DC é prevalente na população ativa e até que ponto este pode modular variáveis relevantes a nível laboral?
Foi realizada uma pesquisa em abril de 2023 nas bases de dados “CINALH plus with full text, Medline with full text, Database of Abstracts of Reviews of Effects, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, Nursing and Allied Health Collection: comprehensive, MedicLatina e RCAAP”.
No quadro 1 podem ser consultadas as palavras-chave utilizadas nas bases de dados.
Motor de busca | Password 1 | Password 2 e seguintes, caso existam | Critérios | Nº de documentos obtidos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada ou não | Nº do documento na pesquisa | Codificação inicial | Codificação final |
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RCAAP | Declínio Cognitivo | -título e/ ou assunto |
124 | 1 | Sim | - | - | - | |
EBSCO (CINALH, Medline, Database of Abstracts and Reviews, Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Nursing & Allied Health Collection e MedicLatina) |
Cognitive Decline | -2013 a 2023 -acesso a resumo -acesso a texto completo |
5233 | 2 | Não | - | - | - | |
+ work | 323 | 3 | Sim | 1 2 7 8 22 28 36 57 60 64 67 70 87 113 137 160 200 |
D1 D2 D3 D4 D5 D6 D7 D8 D9 D10 D11 D12 D13 D14 D15 D16 D17 |
5 6 3 8 4 9 - 7 10 1 12 11 2 14 15 13 - |
CONTEÚDO
Definição
Cognição pode ser definida como processo mental pelo qual se percebe, relembra, fala, pensa, se tomam decisões e/ou se resolvem problemas. Os domínios da função cognitiva poderão ser estruturados em atenção complexa, função executiva, aprendizagem e memória, linguagem, função percetual-motora e cognição social. O DC consiste na diminuição dessas capacidades, alterando o desempenho profissional, não só em tarefas mais intelectuais, como nas que seja necessário um determinado tempo de reação, atenção, vigilância e/ou concentração (1).
Algumas estatísticas
Estima-se, por exemplo, que na europa ocidental, cerca de 7% da população com mais de 60 anos apresenta DC (2). O número de indivíduos com idade superior a 65 anos que se mantém a trabalhar tem vindo a aumentar; no Japão, por exemplo, passou de 5 para 12% (entre 1980 e 2017) (3). Outros autores defendem genericamente que o número de idosos no mercado laboral tem vindo a aumentar, sobretudo os muito idosos, mesmo acima dos 85 anos, ainda que sem publicar um valor concreto (4). Aliás, na experiência clínica dos autores, já aconteceu, por várias vezes, dar consulta de medicina e enfermagem do trabalho a indivíduos desta faixa etária, a exercer funções na construção civil (no caso do sexo masculino) e como auxiliar de lares (para o feminino).
Nem sequer considerando setores com este tipo de fatores de risco laboral, alguns defendem que os trabalhadores mais idosos não deveriam trabalhar mais do que 35 horas por semana (3).
Fatores que parecem potenciar o Declínio Cognitivo
Em função da bibliografia consultada, as seguintes condições/caraterísticas parecem agravar o fenómeno:
-idade mais avançada é o fator preditivo mais relevante (5), ou seja, o aumento da esperança média de vida (2)
-pior estado físico global (5) e a existência de patologias crónicas em concreto (4) (5) [como diabetes, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia (1), depressão (1) (5)] e a alguns estilos de vida (tabagismo, alcoolismo, sedentarismo, isolamento social e/ou cognitivo) (1)
-menor nível educacional (1)
-período após a reforma laboral (5) (6) (7), sobretudo nos profissionais mais intelectuais, eventualmente pela diferença de estimulação (5) (7) - hipótese "use it ou lose it" (7); para além disso, a reforma de um trabalho com muita estimulação social poderá ser mais difícil para o indivíduo, potenciando porventura a ansiedade e a depressão (6), em função, não só, mas também pelo afastamento de algumas atividades sociais (8); ainda que várias variáveis influenciem o dado seguinte, está publicado que a memória diminui mais nos 14 anos após a reforma, versus nos 14 anos anteriores (7). As exigências laborais intelectuais podem atenuar o DC- Teoria da Reserva Cognitiva (9)
-sexo feminino; ou seja, em alguns países/culturas o sexo feminino tem menos habilitações e menor participação na vida laboral remunerada, podendo tal agravar o DC, contudo, também existem geralmente mais interações sociais que, por sua vez, poderão proporcionar alguma proteção; ainda assim, indivíduos que nunca trabalharam apresentam eventualmente os DCs mais intensos, mesmo ajustando algumas variáveis confundidoras (8)
-manter-se a trabalhar contra a sua vontade, por exemplo, devido a dificuldades financeiras, também pode potenciar a insatisfação e a depressão (8) e, secundariamente, o DC
-condições de trabalho psicossociais desfavoráveis (como tensão excessiva ou demasiada passividade), associam-se a maior DC (4), eventualmente por potenciar a inflamação e o stress oxidativo; a tensão/ansiedade laboral poderá ser potenciada pela falta de apoio social das chefias e/ou colegas; além de que condições de trabalho adversas associam-se a diversos problemas médicos, nomeadamente cognitivos; contudo, curiosamente, o tipo de trabalho mais lesivo, neste sentido, parece ser o passivo (10)
-postos de trabalho com mais exigência e menos controlo/autonomia (4)
-indivíduos com empregos mais sofisticados poderão gostar mais das suas tarefas e, por isso, a reforma ter um simbolismo mais negativo (7)
-a personalidade pode modular o DC (sobretudo neuroticismo, extroversão, agradabilidade e conscienciosidade)- no entanto, tal não é consensual. Indivíduos mais extrovertidos destacam os aspetos positivos, enquanto que os neuróticos geralmente fazem o oposto, são muito ansiosos e têm uma perceção de risco elevada (receando muito os perigos), logo mais facilmente estes últimos consideram as caraterísticas laborais mais stressantes. Os extrovertidos são sociáveis, ativos, faladores; logo, beneficiam geralmente mais do apoio social. Os que estão mais disponíveis para novas experiências com mais facilidade vêm alternativas. Indivíduos com a agradabilidade mais desenvolvida geralmente confiam mais, são altruístas, benevolentes, simpáticos e cooperantes. Por fim, a conscienciosidade geralmente associa-se com maior probabilidade a escrúpulos/ética, diligência e organização; então, de forma resumida, a extroversão associa-se a melhor desempenho cognitivo e a mais inteligência (9)
-alterações do sono podem levar ao DC e as primeiras poderão estar associadas a algumas caraterísticas do trabalho (como turnos noturnos rotativos), devido às alterações dos ritmos circadianos, eventualmente implicando alterações negativas a nível de memória e atenção; os efeitos parecem ser mais intensos com vários turnos noturnos consecutivos; menos tempo de sono diminuiu a concentração e a capacidade de aprender dados novos, diminui a capacidade de alerta, bem como a função executiva e aumenta o tempo de reação e existem setores profissionais onde os turnos noturnos são cada vez mais frequentes (por exemplo, a nível europeu, estimou-se um aumento de 17 para 21% entre 2010 e 2015). Com os turnos noturnos há desequilíbrio entre os comportamentos exigidos ao organismo e os padrões circadianos normais; ou seja, trabalhar quando deveria dormir e descansar quando deveria estar ativo; com a idade a avançar a situação poderá ficar mais agravada. Trabalhadores por turnos apresentam mais cansaço, menor estado de alerta e pior memória (1). Os turnos noturnos e as alterações cronobiológicas associadas poderão então contribuir para o DC (surgimento e agravamento). O risco poderá ser atenuado com rotação nos turnos no sentido dos ponteiros do relógio, diminuindo o número de turnos noturnos, dias com folga a espaçar com os turnos noturnos e proporcionar alguma flexibilidade e autonomia na gestão do horário para o trabalhador. Também é possível que haja alguma interferência da suscetibilidade individual (genética, por exemplo) (11)
-experiências stressantes e/ou burnout poderão ter a capacidade de proporcionar algum DC, nomeadamente através de alterações na memória, concentração e velocidade de reação; o stress ativa algumas catecolaminas; se este processo for prolongado no tempo, poderá conseguir ter alterações cognitivas (12)
Fatores que parecem atenuar o Declínio Cognitivo
A teoria da "Reserva Cognitiva", já mencionada (2002, de Stern) defende que um nível educacional superior e/ou exigências laborais intelectuais (e/ou a nível de passatempos), poderão atenuar os danos cerebrais que surgem com o avançar da idade (2) (5) (6) (7) (9) (10) (14); sobretudo se existir autonomia, controlo, oportunidade de progressão e de aprendizagem (modelo da "demanda-controlo") (2). Prolongar o número de anos de trabalho, adiando a reforma, fará eventualmente com que o cérebro incentive as vias neuronais, pelo que terá mais recursos durante o envelhecimento (14). A "Reserva Cognitiva" fica então potenciada pela existência de tarefas laborais complexas e/ou passatempos com caraterísticas equivalentes (3) (15). Contudo, nem todos os investigadores concordam (5). Para além disso, antipodamente, alguns investigadores defendem que funcionários com empregos com níveis mais elevados de estimulação social, poderão apresentar um risco superior de DC após se reformarem, devido à diferença mais acentuada a esse nível (6) (7).
Algumas caraterísticas da personalidade poderão modular o DC, nomeadamente a agradabilidade, conscienciosidade, recetividade à mudança (novas experiências, criatividade, calma, estar habituado a orientar situações complexas e/ou a lidar com novas tecnologias), no sentido de que poderão dar proteção para o DC (5), como já foi referido (9).
Para além disso, ainda se encontram dados publicados em relação à proteção contra o DC, nomeadamente:
-maior número de anos de trabalho (3), de forma remunerada (3) (8), sobretudo no sexo masculino (3), mas também feminino (8)
-mais anos de formação académica (3)
-mais atividade física (3)
-manter/iniciar atividades como leitura, estudo, tocar instrumentos musicais, fazer puzzles, jogos de tabuleiro ou de cartas - hipótese de "use it ou lose it" (2) (3), já mencionada; ou seja, arranjar desafios cognitivos para os mais idosos (3) (7), uma vez que mesmo o cérebro adulto apresenta alguma neuroplasticidade e neurogenicidade (7)
-inserção em algum grupo (8) e ter mais apoio(4)/interações sociais (8) (10) que, por sua vez, poderão no sexo feminino, sobretudo, ficar potenciadas na fase da reforma (8) e
-adiar a reforma (voluntariamente) (7).
Fatores que não parecem conseguir modular este fenómeno ou o poderão enviesar
Ainda que em contradição com parte da bibliografia consultada, também se encontraram dados publicados a defender que a idade com que o indivíduo se reforma, ou seja, o número de anos de trabalho, não parecem ser relevantes (6). Outros afirmaram que a generalidade dos traços de personalidade não parece modular de forma significativa o DC (9).
Alguns dos fatores que poderão constituir variáveis confundidoras são a depressão, nível educacional, género e fatores de risco cardiovascular (6); bem como o estilo de vida, saúde mental e física e o número de anos de trabalho (sobretudo no sexo feminino). Por outro lado, decidir reformar-se e afastar-se de atividades sociais poderá ser consequência do DC (3).
Em alguns países/culturas permanecer no trabalho a partir de uma certa idade significa geralmente que existem dificuldades financeiras e/ou falta de apoio socio/familiar, sobretudo se o estado não proporcionar ajuda financeira suficiente, pelo que poderá ser algo depreciativo. Para além disso, entrar na reforma poderá implicar preocupações financeiras e/ou de acesso a cuidados médicos. A manutenção forçada na vida laboral ativa poderá comprometer um envelhecimento saudável. Por outro lado, indivíduos em melhor estado cognitivo têm maior probabilidade de se manterem a trabalhar. Ainda assim, é mais provável ficar reformado mais cedo com postos de trabalho pouco diferenciados e com menor nível educacional (8).
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
Ainda que não existam consensos absolutos entre investigadores e as mesmas situações/medidas possam levar a efeitos opostos (atenuar ou agravar o DC), as instituições poderão colocar em prática algumas das atitudes mais consensuais para mitigar o problema, que cada vez será mais prevalente, dado o envelhecimento da população global e ativa.
Seria interessante perceber se existem empregadores nacionais que já se tenham debruçado sobre este tema, fotografado a sua situação interna, proposto algum plano de ação perante tal e publicação de todos esses dados, juntamente com a respetiva avaliação de eficácia, partilhando tal em artigo científico.