INTRODUÇÃO
Os problemas de saúde mental têm vindo a ganhar importância nas últimas décadas, estimando-se que cerca de uma em cada oito pessoas viva com algum tipo de perturbação. O seu impacto vai para além da redução na qualidade de vida e aumento da mortalidade. A nível social e macroeconómico, aos custos diretos associados ao tratamento, somam-se os custos indiretos relacionados com produtividade laboral e altas taxas de desemprego, que ultrapassam os primeiros em larga escala (1).
As perturbações da personalidade (PP) constituem padrões persistentes de experiência interna e comportamentos que se desviam consideravelmente do expectável para a cultura do indivíduo. Têm início na adolescência ou nos primeiros anos da vida adulta e são estáveis ao longo do tempo (2). São uma entidade subdiagnosticada, com uma prevalência de aproximadamente 9% na população geral (3).
Doentes com PP apresentam menor qualidade de vida e limitações nas atividades de vida diárias, sendo as relações interpessoais e sentimento de autorrealização os parâmetros mais afetados. Têm também maiores taxas de desemprego e situações económicas mais desfavoráveis em relação à população geral (4) (5).
Apresentam elevadas taxas de comorbilidade com outras patologias psiquiátricas, sendo de difícil tratamento e estando associadas a absentismo e baixa produtividade laboral (6).
A última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais propõe duas abordagens de classificação das PP: um categórico - modelo oficial - e um híbrido categórico/dimensional, que surgiu com vista a colmatar as limitações apresentadas pelo primeiro. O modelo categórico divide as PP em 3 clusters distintos: A, que inclui as PP paranóide, esquizoide e esquizotípica; B, que inclui as PP antissocial, borderline, histriónica e narcisista; C, que inclui as perturbações de personalidade evitante, dependente e obsessivo-compulsiva (2).
Para além das PP, também a fibromialgia e a depressão major são limitantes no que toca à produtividade laboral e estão intimamente correlacionadas. Existe uma associação bidirecional entre ambas: por um lado, cerca de 50-70% das pessoas com fibromialgia têm diagnóstico concomitante (ou já tiveram, em algum ponto da vida) de depressão (7). Por outro lado, sintomas de dor crónica são frequentemente reportados por pacientes com depressão tendo sido demonstrada a existência de mecanismos fisiopatológicos em comum. (8). Inevitavelmente, também as PP e a fibromialgia acabam por estar interligadas: há evidência da correlação entre traços de elevado neuroticismo e impulsividade (caraterísticos de PP histriónica) e níveis elevados de dor crónica em pacientes com fibromialgia (9).
O caso que de seguida se descreve retrata uma profissional de saúde diagnosticada com depressão major, perturbação da personalidade histriónica e fibromialgia, que condicionaram fortemente, ao longo dos últimos anos, a sua vida pessoal e profissional. Estas temáticas ainda são pouco discutidas e de complexa gestão no contexto da Saúde Ocupacional. Como tal, serve o presente caso para alertar acerca da sua existência e orientar os profissionais de saúde desta área na abordagem a este tipo de situações.
CASO CLÍNCO
Este caso diz respeito a uma assistente operacional hospitalar de 52 anos. Como antecedentes pessoais, destacam-se depressão major recorrente diagnosticada na adolescência e perturbação da personalidade histriónica, com ideação suicida e episódios autolesivos, estando polimedicada neste contexto. Além destes, apresenta fibromialgia, síndrome de apneia obstrutiva do sono moderada, catarata, patologia osteodegenerativa, insuficiência mitral e enfisema centrilobular. A nível de hábitos tabágicos e alcoólicos, é fumadora de 30 Unidades Maço Ano e nega consumo de bebidas alcoólicas. Iniciou seguimento em várias consultas hospitalares, nomeadamente Neurologia, Ortopedia, Pneumologia, Oftalmologia, Cardiologia, Medicina Física e Reabilitação e Otorrinolaringologia, tendo tido alta de todas; mantém acompanhamento pela Psiquiatria e Psicologia. Adicionalmente, existe registo de múltiplas idas à urgência com queixas de dores de diferente natureza; destaca-se um episódio em que simula, inclusive, sintomas de acidente vascular cerebral, excluído nessa mesma ida.
Como antecedentes familiares há a destacar filha com PP borderline associada a múltiplos internamentos e tentativas de suicídio. O marido tem passado de dependência de álcool e está atualmente reformado, sendo o seu principal cuidador. A sua juventude foi marcada pelo abandono, maus-tratos e sofrimento intenso e está inserida num contexto socioeconómico precário: beneficia de vários subsídios incluindo Rendimento Social de Inserção e apoio ao arrendamento e a sua medicação é paga pela Santa Casa da Misericórdia.
No que diz respeito à história ocupacional, teve vários empregos anteriores, de curta-média duração. Foi admitida no hospital em 2015, desde então com vários pedidos de mudança de serviço e períodos prolongados de certificado de incapacidade temporária. Segundo a sua chefia, era inicialmente uma colaboradora prestável, muito empenhada na sua atividade laboral e mostrava gostar do que fazia. A nível físico, era uma pessoa com aparência cuidada e peso controlado. Aquando do falecimento da sua mãe, notou-se um decréscimo progressivo na sua produtividade laboral, assim como agravamento da patologia depressiva.
A última ausência laboral teve início em 2020 tendo sido prolongada, com breves interrupções, até janeiro de 2024. Durante este período, apresentou-se em junta médica por três vezes na sequência de pedido de Avaliação de Incapacidade, no sentido de obter reforma antecipada por invalidez. O seu pedido foi negado sempre.
Em janeiro de 2024, foi observada em exame de Medicina do Trabalho, no contexto de avaliação pós certificado de incapacidade temporária, onde referia agravamento dos sintomas depressivos associado a diagnóstico recente de doença na filha, abandono de casa dos pais e relação conflituosa com os mesmos, levando a um ambiente familiar instável. Paralelamente, intensificação das queixas álgicas relacionadas com fibromialgia, com importante limitação nas atividades de vida diária: o marido terá pedido reforma antecipada para ser seu cuidador. No entanto, manifestava desejo de regressar ao trabalho, com a noção de que estaria mais limitada. Ao exame objetivo, apresentava comportamento apelativo, aparente lentificação motora e cognitiva, uso de bengala para apoio na marcha e aumento marcado de peso desde a última avaliação. Apresentou relatórios da médica assistente, psiquiatra e psicóloga unanimemente referindo que a doente não reunia condições para retomar a sua atividade laboral. Inicialmente, foi autorizado o regresso ao trabalho, tendo a sua aptidão condicionada com as seguintes restrições: não pode levantar cargas superiores a 5 kg, deve alternar nas posições de pé e sentada, deve evitar percorrer longas distâncias e atendimento ao público/contacto com o doente e não pode realizar horário noturno, nem serviço de urgência.
Dois dias depois, teve nova avaliação de Medicina de Trabalho, a pedido da chefia, por não conseguir encontrar posto de trabalho adequado às limitações da colaboradora. Nesta avaliação, foi proposta pela sua chefia a possibilidade de mudança de posto para outro menos fisicamente exigente e mais próximo do seu local de habitação. Neste momento e de forma súbita, revelou uma melhoria franca dos sintomas presenciados anteriormente, nomeadamente a nível de desenvoltura do discurso, que se tornou coerente e fluido, assim como a nível motor, por exemplo, na forma como se levantava da cadeira. O referido posto de trabalho não foi, todavia, considerado como possibilidade, visto que exigia contacto frequente com o público. Tendo em conta os antecedentes apresentados, a observação clínica e os relatórios médicos, foi considerada temporariamente inapta para o desempenho de qualquer função. Após comunicada decisão à colaboradora, esta adotou discurso intimidatório para com os médicos, ameaçando com queixas na Autoridade para as Condições do Trabalho.
DISCUSSÃO / CONCLUSÃO
A PP histriónica (PPH) pertence ao cluster B e os seus doentes distinguem-se pelo dramatismo e intensidade na expressão de emoções, bem como pela procura de atenção e tentativa de manipulação. Estima-se que a prevalência desta PP ronde os 2-3% da população geral, no entanto, existe uma carência de estudos abrangentes e recentes que façam uma caraterização epidemiológica rigorosa destes distúrbios (10).
Embora as mulheres tenham maior probabilidade de serem diagnosticadas com PPH, há estudos que demonstram que esta poderá afetar os dois sexos na mesma proporção (10) (11).
Acredita-se que haja vários fatores a contribuir para o desenvolvimento de PPH, nomeadamente predisposição genética, experiências na infância e fatores ambientais. Há estudos que sugerem que o abuso sexual, físico ou emocional e negligência física e emocional na infância são fortes preditores desta PP (12).
A apresentação dos doentes é muito variável daí ser fundamental uma história clínica cuidada dos antecedentes pessoais, médicos e sociais. Também os relatos das pessoas próximas a estes devem ser tidos em conta, uma vez que muitas vezes são os mesmos que os referem à consulta; de facto, esta é tipicamente uma condição ego-sintónica, o que significa que a pessoa afetada considera o seu comportamento normal, tendo dificuldade em identificar um problema. Estes pacientes gostam de se sentir o centro das atenções e não é raro que se vistam e arranjem de forma provocadora. A excentricidade vai para além do aspeto físico, estendendo-se ao comportamento que é frequentemente desinibido e até hipersexual, podendo levar a atos impulsivos. Este caráter volátil também se aplica às emoções, expressas ainda de forma intensa e teatral. O discurso é tipicamente impressionista e sugestível, podendo variar conforme a perceção que o indivíduo tem do pensamento dos que o rodeiam (2).
No caso previamente descrito, muitas destas caraterísticas estavam presentes, começando pelo background de negligência e maus-tratos na infância, que se podem ter traduzido em baixa autoestima e consequente procura de atenção e validação externas. Estas foram notórias em vários aspetos: em primeiro, a aparência da paciente, maquilhada e com roupa de cor chamativa, com brilhantes. Em segundo, o uso de “adereços” cuja utilidade é questionável: uma bengala, a qual não teria indicação para uso por parte do médico de ortopedia, nem neurologia; um lubrificante oral que aplicou várias vezes ao longo da primeira consulta, que mencionava usar devido à “secura da boca”.
A nível comportamental, foi evidente o dramatismo demonstrado pela lentidão e queixas da doente ao entrar no consultório, sentar-se e levantar-se da cadeira: estes achados foram contraditórios aos observados pela assistente técnica do serviço de Saúde Ocupacional, que viu a doente momentos antes da consulta a deambular sem dificuldade. No aspeto interpessoal, as relações com os colegas de trabalho eram conflituosas; as mais próximas que mantinha eram com o marido e a filha, e mesmo estas eram pautadas por instabilidade e abuso físico e emocional.
O seu lado manipulador e de tentativa de ganho secundário revelaram-se na relação com os Médicos do Trabalho: a primeira consulta decorreu pacificamente - os mesmos empatizaram com a doente e atribuíram-lhe várias condicionantes, ao que esta saiu da consulta satisfeita. Na segunda, a possibilidade da existência de um posto de trabalho mais conveniente à doente fez com que se evidenciasse uma súbita melhoria dos seus sintomas. E finalmente, a agressividade demonstrada quando percebeu que esta expetativa não iria ser concretizada.
Este caso é de extrema complexidade. Por um lado, estamos perante uma doente frágil, cujas múltiplas comorbilidades lhe trazem intenso sofrimento psicológico e físico. Sabe-se que a depressão e a fibromialgia são incapacitantes do ponto de vista funcional: ambas podem causar dificuldades na concentração, dor generalizada, fadiga, limitações cognitivas e diminuição da motivação, podendo interferir nas atividades pessoais, familiares e laborais. Ainda assim, estes diagnósticos, além de estigmatizantes, são muitas vezes negligenciados no ambiente laboral. Particularmente, no caso da fibromialgia, tal pode ocorrer tanto por desconhecimento acerca da doença como por dificuldades em oferecer um plano terapêutico (13). Outro fator a ter em conta está relacionado com as compensações financeiras atribuíveis a estas doenças: estima-se que entre 35% a 55% dos pacientes com fibromialgia recebam alguma forma de compensação por invalidez, de uma entidade pública ou privada, por incapacidade para o trabalho atribuível à mesma (14).
No presente caso, tendo em conta a história prévia de simulação de doença, torna-se difícil perceber o verdadeiro impacto dos sintomas da paciente e até que ponto é que os mesmos não constituem uma forma de obter atenção médica e ganhos secundários, não só a nível laboral (com mudança constante de posto de trabalho) como também a nível financeiro (com obtenção de reforma antecipada por invalidez e apoios sociais diversos).
Em última instância, o que levou os médicos a atribuírem a incapacidade temporária à trabalhadora foi o facto de se revelar notória a sua instabilidade emocional e de esta poder constituir um risco para a segurança, não só da mesma, como também dos trabalhadores da instituição e dos próprios doentes.
É importante realçar o desafio diário de um Médico do Trabalho na forma de lidar com este tipo de patologias, assim como é fundamental a constante atualização e consolidação de conhecimentos na área de Saúde Mental, muitas vezes negligenciada. Cada vez mais se torna imprescindível enriquecer as equipas de Saúde Ocupacional com especialistas na área da Psiquiatria e Psicologia de forma a acompanhar estes colaboradores, criando equipas multidisciplinares mais capazes de diagnosticar e orientar este tipo de patologias, a maioria das vezes pouco aprofundadas.