INTRODUÇÃO
A asma brônquica, doença inflamatória crónica das vias aéreas, apresenta uma prevalência de aproximadamente 7% na população portuguesa, sendo uma patologia transversal a todas as idades (1). É um problema de saúde pública a nível global, com impacto significativo na qualidade de vida dos utentes e nos sistemas de saúde (2) (3) (4). A heterogeneidade clínica da asma é ampla, com diferentes fenótipos resultantes da interação entre fatores genéticos e ambientais. Dentro dos fatores ambientais, destacam-se os agentes ocupacionais, como compostos químicos e irritantes, que podem desencadear ou exacerbar a doença (5) (6).
Diferentes termos são utilizados para definir as várias formas de asma relacionada com o trabalho, dos quais se destaca: asma exacerbada pela profissão, que consiste no agravamento sintomático da asma no local de trabalho (7) (8); asma induzida por irritantes que resulta da exposição a substâncias irritantes não imunológicas, a um nível de intensidade elevado (9) (10); bronquite eosinofílica não asmática ocupacional que consiste no desenvolvimento de sintomatologia que simula a asma, mas que não se associa a hiperreatividade brônquica (11,12) e a asma ocupacional que tem início na fase adulta e é induzida pela exposição imunológica ou não imunológica a estímulos encontrados no local de trabalho (13).
Cerca de 5 a 20% dos novos casos de asma de início tardio (idade adulta) podem ser atribuídos a uma exposição ocupacional. As mais recentes recomendações clínicas da Global Initiative for Asthma (GINA) de 2024 destacam a relevância desta patologia, apresentando um novo capítulo sobre a prevenção da asma ocupacional (2). É uma patologia subdiagnosticada (14) e o diagnóstico precoce é essencial, pois a exposição persistente está associada a pior evolução. Assim, na suspeita ou confirmação de asma ocupacional, deve ser feita a identificação e remoção da exposição a estes agentes, sempre que possível e o doente deve ser avaliado em consulta de especialidade. É importante que se confirme o diagnóstico de forma objetiva pois pode haver uma alteração laboral com implicações legais e socioeconómicas para o utente (2).
O presente relato de caso visa destacar a importância do diagnóstico precoce e da implementação de medidas preventivas, como o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), na prevenção da asma ocupacional em ambientes com exposição a irritantes respiratórios. Além disso, o caso ilustra as implicações biopsicossociais associadas ao desenvolvimento de doenças ocupacionais, evidenciando a necessidade de uma abordagem multidisciplinar para a gestão eficaz dos utentes e para a minimização dos impactos na qualidade de vida e na capacidade laboral dos trabalhadores.
CASO CLÍNICO
Mulher de 62 anos, foi observada em consulta no seu médico de família. A utente tinha o 4º ano de escolaridade, vivia com o filho, era divorciada, independente nas atividades de vida diária e exercia a profissão de Trabalhadora do serviço doméstico desde os 13 anos de idade em regime de prestação de serviços de forma independente.
Como antecedentes médicos apresentava rinite alérgica, perturbação depressiva com sintomatologia ansiosa, osteoporose e como antecedentes cirúrgicos tinha sido intervencionada a uma hérnia epigástrica em 2012.
No contexto de investigação de queixas abdominais a utente realizou uma tomografia computorizada (TC) abdominal na qual, nas imagens da base do tórax, se identificavam alterações pulmonares a necessitar de estudo dirigido. Neste contexto realizou Tomografia Computadorizada (TC) torácico que revelou a presença de vários micronódulos dispersos no pulmão direito, com características inespecíficas. Nessa altura a utente negava qualquer tipo de sintomatologia respiratória, referindo apenas dores nas mãos e punhos de caráter inflamatório, com predomínio matinal e com rigidez associada, que melhorava com os movimentos. Foi pedido estudo radiológico direcionado às mãos e punhos e estudo analítico, com vista a excluir patologia autoimune, que não relevaram alterações e, atendendo aos achados da TC pulmonar, foi feita referenciação para consulta de pneumologia, a qual decorreu no mês seguinte. Nessa consulta, a utente afirmou que apresentava sensação de opressão torácica com o exercício físico, sobretudo quando exposta a cheiros intensos desde os últimos seis anos, sintomas que não tinha valorizado até ao momento. Foram pedidas provas de função respiratória, que revelaram função pulmonar normal, no entanto, a prova de broncoconstrição com metacolina foi positiva, traduzindo presença de hiperreatividade brônquica ligeira, com recuperação rápida ao padrão basal após a inalação de 400 ug de salbutamol. Realizou também o teste de controlo da asma (ACT), que não revelou alterações e o doseamento da IgE total, que se encontrava dentro dos valores de referência. Repetiu também TC torácica que revelou estabilidade dos nódulos pulmonares, sugerindo etiologia benigna. No decorrer deste período a utente mantinha poliartralgias intensas, com necessidade de anti-inflamatório diário, pelo que foi orientada por reumatologia, com exclusão de patologia do foro reumático e realização de infiltração com corticosteroides para controlo álgico. Assim, atendendo aos antecedentes da utente e aos resultados dos estudos realizados, foi assumido o diagnóstico de asma não IgE mediada, tendo iniciado terapêutica inalatória com furoato de fluticasona/vilanterol 92/22 mcg/dia. Uma vez que a profissão exercida pela utente há décadas implicava o contacto diário com produtos irritantes para as vias aéreas, e esta não utilizava até ao momento qualquer equipamento de proteção individual, depreendeu-se que o desenvolvimento desta patologia se relacionava com a sua atividade laboral, pelo que foi notificada a suspeita de doença profissional, encontrando-se a aguardar avaliação médica. A utente manteve acompanhamento na consulta de pneumologia, com necessidade de ajuste progressivo da dose de broncodilatadores ao longo dos anos seguintes. Apesar da implementação do uso de EPIs após o diagnóstico e dos sucessivos ajustes terapêuticos tem sofrido agravamento progressivo da sintomatologia respiratória que passou a limitar significativamente o exercício das tarefas inerentes à sua atividade profissional. Tal condicionou também o agravamento da sintomatologia depressiva da utente e culminou na decisão de se despedir e requerer a reforma antecipada, que foi indeferida (interpôs recurso e aguarda resposta). A utente não se sentia fisicamente capaz para retomar a sua atividade laboral, apresentando dificuldades económicas importantes, tendo sido encaminhada para a assistente social, para avaliação da possibilidade de receber apoio económico.
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
Neste caso clínico, é possível compreender a importância da utilização de equipamentos de proteção individual para a manutenção da saúde dos profissionais, uma vez que reduzem significativamente o risco de desenvolvimento de doenças ocupacionais, especialmente em ambientes de trabalho nos quais os trabalhadores estão expostos a substâncias químicas, poeiras, fumos ou outros agentes irritantes. No caso de profissões como trabalhador do serviço doméstico, o contacto diário com produtos de limpeza pode afetar o sistema respiratório, favorecendo o desenvolvimento de patologias como a asma ocupacional, quando não existe a proteção adequada. A utilização de EPIs, como luvas, máscaras e óculos de proteção, cria uma barreira eficaz que minimiza a inalação e o contato direto com substâncias potencialmente prejudiciais. A implementação de medidas de segurança no ambiente de trabalho e a educação sobre o uso correto desses equipamentos são essenciais para a prevenção de doenças e para garantir a saúde e bem-estar dos profissionais. Neste caso, o uso destes equipamentos poderia também permitir a redução e melhor controlo da sintomatologia respiratória.
A utente trabalhava em regime de prestação de serviços de forma independente, não dispondo de acompanhamento pela saúde ocupacional. Tratando-se de uma doença agravada ou desencadeada pela profissão, a legislação do trabalho pressupõe que a utente deva ser enquadrada noutra área laboral que minimize o risco e os sintomas, o que não era possível no âmbito do seu trabalho e que condicionou o seu desemprego (15). Segundo as guidelines mais recentes sobre a Gestão da Asma Ocupacional emitidas pela European Respiratory Society, os benefícios da evicção da exposição superam largamente os do tratamento farmacológico. O prognóstico após o diagnóstico desta patologia ocupacional é frequentemente mau, podendo em alguns casos desenvolver um quadro de obstrução fixa mais sugestiva de doença pulmonar obstrutiva crónica (16). A utente não tinha conhecimento sobre os riscos da sua profissão para a saúde respiratória e sobre a importância do uso de EPIs. A falta de conhecimento aliada à falta de acesso a serviços de saúde ocupacional dificultaram o diagnóstico precoce e a implementação de medidas de controlo. A existência de um técnico de segurança do trabalho e de um médico do trabalho teria sido fundamental para identificar os riscos e implementar medidas preventivas, nomeadamente através da formação da trabalhadora sobre condições adequadas de ventilação, manuseamento seguro dos produtos e uso adequado de EPIs. Avaliações periódicas da função respiratória e o encaminhamento precoce para consulta de especialidade poderiam também ter prevenido ou atenuado o agravamento da patologia, assim como o seu impacto económico e psicossocial. Em Portugal, os prestadores de serviços (trabalhadores independentes ou freelancers), ao contrário dos trabalhadores por conta de outrem, não têm acesso assegurado a exames de saúde periódicos e a acompanhamento médico no âmbito da medicina do trabalho. Segundo a legislação portuguesa, o acompanhamento dos utentes que realizam trabalho independente, no que se refere à saúde ocupacional, deve ser garantido pelo Serviço Nacional de Saúde (17). No entanto, na prática, este seguimento não está formalizado. É premente que se acautele o acompanhamento dos trabalhadores independentes pela saúde ocupacional, em particular dos trabalhadores do serviço doméstico, uma vez que este tipo de trabalho, frequentemente informal e realizado em condições de vulnerabilidade, envolve múltiplos riscos físicos, psicológicos e sociais. Este tipo de patologias acarreta custos para o estado, sobrecarregando-o quer ao nível dos serviços de saúde, uma vez que o agravamento da doença exige um maior uso dos recursos, como consultas médicas, tratamentos e, em casos mais graves, internamentos hospitalares, quer a nível dos serviços sociais, por exemplo, através da atribuição de subsídios.
O diagnóstico de asma não IgE mediada teve implicações significativas na vida da utente, culminando na necessidade de se despedir do seu trabalho de serviço doméstico, profissão que exercia desde a infância. Com a incapacidade de continuar a exercer a sua atividade profissional, pela necessidade de evitar o contato total com estes produtos, a utente foi confrontada com dificuldades relacionadas não apenas com a sua saúde física, mas também com a sua independência financeira e bem-estar psicológico, tendo que se ajustar a uma nova realidade de vida.
A prevalência de doenças ocupacionais, como a asma, pode estar subestimada em sectores informais, como o serviço doméstico. É importante a realização de estudos futuros com vista a compreender a verdadeira prevalência da asma ocupacional neste tipo de trabalhadores e avaliar a relação custo-efetividade da implementação de programas de saúde ocupacional organizados no Serviço Nacional de Saúde, o que, em última análise, iria também contribuir para a valorização destas profissões.
A asma ocupacional pode ainda conduzir a um grande sofrimento emocional, com impacto na autoestima e nas relações sociais. Este caso clínico destaca a forma direta como a saúde ocupacional impacta a esfera biopsicossocial do trabalhador, não podendo ser negligenciada.