INTRODUÇÃO
A radiação ionizante (RI) desempenha um papel indispensável na prática médica moderna, sendo amplamente utilizada em procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos. A exposição a RI de profissionais de saúde inclui essencialmente o uso de raios X e de radioisótopos (1).
A RI associada aos raios X é uma energia sob a forma de onda eletromagnética, que tem energia suficiente para interagir com a matéria e ionizar moléculas nos tecidos biológicos. Quanto à natureza do dano, pode causar dois tipos principais de efeitos sobre a saúde humana: determinísticos e estocásticos. Os primeiros apresentam um limiar de dose abaixo do qual não se manifestam. Contudo, quando este limiar é excedido, a gravidade do efeito aumenta proporcionalmente à dose recebida. Estes efeitos resultam de danos extensivos em células e tecidos, incluindo, por exemplo, queimaduras, aplasia medular e catarata rádica. Por outro lado, com os efeitos estocásticos, não é possível estabelecer um limiar, podendo, teoricamente, ocorrer mesmo em doses muito baixas. A probabilidade da sua ocorrência aumenta com a dose acumulada, apesar da gravidade do efeito ser independente da dose recebida. Estes efeitos são associados a alterações aleatórias no ácido desoxirribonucleico (ADN) celular, podendo resultar em mutações genéticas em células que mantêm a sua capacidade replicativa. Quando ultrapassados os mecanismos de reparação celular, as mutações cumulativas poderão estar na base de efeitos como cancro ou efeitos hereditários na descendência (2) (3).
Entre a diversidade de equipamentos emissores de raios X usados em meio hospitalar, destacam-se os equipamentos de fluoroscopia. Estes procedimentos exigem que os operadores estejam em proximidade contínua com o doente e a fonte de radiação, aumentando significativamente a exposição à radiação dispersa, que se propaga em múltiplas direções após interagir com os tecidos do doente. A International Commission on Radiological Protection (ICRP) destaca que os profissionais envolvidos em procedimentos fluoroscópicos, como os cardiologistas de hemodinâmica, estão particularmente vulneráveis a efeitos determinísticos como a catarata induzida por RI, devido à exposição cumulativa no cristalino em contextos de doses elevadas de radiação dispersa (1). Durante estes procedimentos, os operadores permanecem próximos da fonte de radiação, muitas vezes durante longos períodos, resultando na absorção de doses consideráveis de radiação dispersa, particularmente no cristalino, no tronco e nas extremidades (4).
A catarata rádica tem sido classificada como um efeito determinístico resultante da exposição à RI, caraterizado pela opacificação progressiva do cristalino do olho. O cristalino é uma estrutura avascular composta por células epiteliais altamente organizadas, que não possuem capacidade de regeneração. Esta configuração celular torna-o particularmente vulnerável a lesões induzidas pela radiação. De acordo com a ICRP (publicação nº 118), a RI provoca danos diretos no ADN das células epiteliais do cristalino, resultando em alterações no ciclo celular, apoptose e/ou mitoses anómalas. Paralelamente, a radiação gera espécies reativas de oxigénio, que aumentam o stress oxidativo, danificando proteínas cristalinas e membranas celulares (2) (4). As células do epitélio anterior, responsáveis pela manutenção e regeneração da transparência do cristalino, sofrem danos irreversíveis devido à incapacidade de reparar eficientemente o ADN afetado. Este processo conduz à acumulação de células anómalas na região subcapsular posterior, onde as condições metabólicas favorecem a agregação de proteínas cristalinas. As alterações estruturais originam a opacificação do cristalino manifestando-se, clinicamente, como catarata subcapsular posterior, o subtipo de catarata mais frequentemente associado à exposição à RI (4) (5).
A formação da catarata induzida pela RI depende de fatores como a dose total acumulada, o padrão de exposição e a sensibilidade individual. Doses acumuladas inferiores a 0,5 Gy (Gray) podem ser suficientes para iniciar a cataratogénese, especialmente em exposições crónicas (2) (4) (5).
O tempo de latência entre a exposição e o surgimento clínico da catarata varia entre cinco e quinze anos, dependendo da dose e da frequência da exposição (2). Estas evidências levaram à revisão dos limites de dose ocupacional para o cristalino, com a ICRP a recomendar um limite anual de 20 mSv, refletindo a elevada sensibilidade do cristalino aos efeitos cumulativos da radiação.
Em Portugal, o Decreto-Lei n.º 108 de 2018, que estabelece as normas de proteção contra os perigos resultantes da exposição à RI, define os limites de exposição para trabalhadores expostos. Para o caso específico do cristalino, a dose máxima permitida é de 20 mSv por ano, em média, durante cinco anos consecutivos, com um limite de 50 mSv em qualquer ano individual (6). Estes limites refletem a necessidade de manter a exposição abaixo dos níveis que podem causar danos à saúde ocular dos trabalhadores.
Investigadores do Radiation Epidemiology Branch, do National Cancer Institute, nos Estados Unidos das América, identificaram uma exposição-resposta significativa entre a exposição ocupacional cumulativa de baixa dose à radiação no cristalino e o risco de catarata, com base no histórico autorrelatado (7). Antes deste estudo não havia evidências de risco em doses baixas. Esta descoberta desafia a opinião especializada de comités nacionais e internacionais sobre a dose limite para a formação de catarata e levanta ainda mais a questão de se tal limite existe. A falta de um limite claro e o envolvimento de fatores tumorais na cataratogénese sugerem a natureza estocástica. Seria interessante testar se uma única célula-tronco do cristalino, quando irradiada, pode formar uma estrutura semelhante a um cristalino turvo (ou seja, um corpo lentoide) (8), algo tecnicamente ainda não viável (9). Em resumo, ainda não é claro se a catarata representa um efeito determinístico, um efeito estocástico ou ambos. São necessários mais estudos que abordem esta questão (10).
DESCRIÇÃO DO CASO CLÍNICO
O presente caso representa um médico especialista em anestesiologia, sexo masculino, 48 anos. Sem antecedentes médicos ou cirúrgicos relevantes ou medicação habitual. Apresentava, no exame periódico de medicina do trabalho, queixas de visão turva e dificuldade em ambientes com pouca luz, com um ano de evolução; alteração da visão do olho direito, com "imagens onduladas com duração entre 5 e 15 minutos"; sem história de cefaleias. Em relação à história ocupacional, trabalhava há 23 anos com exposição regular a RI: durante procedimentos guiados por imagem, em vários contextos, nomeadamente bloco operatório, apoio anestésico a exames fora do bloco operatório (gastrenterologia) e radiologia de intervenção. Referia não ter, nem nunca ter utilizado, óculos plumbíferos, apesar do uso do restante equipamento de proteção individual (EPI). Cumpria a utilização do dosímetro individual de corpo inteiro, de acordo com as normas preconizadas, mas não dosimetria ocular.
Foi solicitada avaliação por oftalmologia que revelou opacidades subcapsulares posteriores no olho direito, através de exame com lâmpada de fenda; diminuição da acuidade visual do olho direito, apenas “conta dedos”; olho esquerdo com acuidade visual de 1.0 (com correção); pressão intraocular de 4 mmHg. Foi proposto tratamento cirúrgico, pelo que realizou Tomografia de Coerência Ótica para planeamento. O trabalhador foi submetido a cirurgia de facoemulsificação com implante de lente intraocular, que decorreu sem intercorrências. Apresentou melhoria significativa na acuidade visual do olho direito, com uma acuidade visual um mês pós-operatório de 1.0.
Foi participada a catarata como Doença Profissional, aguardando, à data, a caracterização pelo Departamento de Proteção Contra os Riscos Profissionais da Segurança Social. Foi solicitada nova avaliação de riscos do posto de trabalho, ao serviço de segurança do trabalho, e proposta a aquisição de óculos plumbíferos e a implementação de dosimetria do cristalino para o trabalhador e para os restantes trabalhadores expostos a riscos similares. Recomendou-se ministrar (in)formação a todos os trabalhadores, após a implementação das sugestões previamente descritas.
As avaliações periódicas dos fatores de risco no local de trabalho, bem como as auditorias à adequação e utilização de equipamentos de proteção coletiva e individual, tem um papel fundamental na proteção da saúde dos trabalhadores. A implementação de medidas corretivas rápidas, após identificação de situações que coloquem em risco a segurança e a saúde dos trabalhadores, é imperativa, e deve ser uma prioridade do empregador.
DISCUSSÃO
A catarata induzida pela RI representa um risco ocupacional significativo e amplamente reconhecido entre profissionais de saúde expostos à mesma, particularmente em áreas como a cardiologia e a radiologia de intervenção. Este efeito resulta da exposição cumulativa do cristalino à RI, mesmo em doses inferiores aos limites anteriormente estabelecidos, como evidenciado por estudos recentes (4). Embora os riscos associados à exposição à RI sejam amplamente reconhecidos, a adesão ao uso de EPI, especialmente no que respeita aos óculos plumbíferos, permanece inconsistente entre os profissionais de saúde. Um estudo em ambiente hospitalar identificou que os óculos de proteção radiológica estavam entre os EPI menos usados pelos profissionais de saúde (11). Não raras vezes, o EPI não é disponibilizado pelo empregador.
Verificou-se que o risco de desenvolver catarata é até três vezes superior entre os trabalhadores expostos, em comparação com os trabalhadores não expostos à RI (12). De acordo com a ICRP (publicação nº 139), a proteção contra essa exposição requer uma abordagem integrada, que combina barreiras coletivas, práticas operacionais otimizadas e a utilização de EPI. Esta abordagem visa minimizar os efeitos determinísticos e estocásticos da radiação, como a formação de catarata no cristalino e os danos cumulativos no ADN (1).
Entre os equipamentos de proteção coletiva, o biombo de teto transparente oferece uma proteção significativa para a parte superior do tronco, em especial a cabeça, a tiróide e o cristalino (13). Ao posicionar o biombo de teto, é necessário considerar a origem da radiação espalhada provocada pelo paciente. Um biombo de teto de 1 mmPb e os óculos com uma proteção equivalente a 0,5 mmPb podem diminuir a radiação espalhada que atinge o cristalino entre 0,015 e 0,03 (14), ou seja, apenas 2 a 3% da radiação espalhada seria transmitida ao cristalino.
Os óculos com chumbo são a técnica de proteção mais relevantes; quanto mais chumbo, maior a proteção; contudo, parte dos trabalhadores considera-os desconfortáveis. Escudos de proteção suspensos no teto são muito eficazes (mais que os óculos) (15). Os óculos plumbíferos são uma ferramenta essencial de proteção radiológica, projetados para blindar os olhos contra a radiação ionizante. As principais características incluem lentes de vidro com chumbo, que variam em equivalência (0,50mm a 0,75mm Pb), armações de acrílico ou acetato e, em alguns modelos, proteções laterais para maior cobertura. As lentes são o principal componente protetor, contendo uma camada de chumbo que absorve a radiação. A equivalência em chumbo indica a espessura de chumbo que o material oferece como proteção. Os óculos são projetados para serem confortáveis e se ajustarem bem ao rosto, evitando o deslocamento durante o uso. Fabricados com materiais de qualidade, são duráveis e resistentes.
Além dos dispositivos físicos, a implementação de práticas operacionais otimizadas desempenha um papel crítico na redução da dose ocupacional. Entre as estratégias recomendadas estão a minimização do tempo de exposição durante a fluoroscopia, o aumento da distância em relação à fonte de radiação e o ajuste dos parâmetros técnicos, como a colimação, para limitar o campo de radiação ao estritamente necessário (1).
A monitorização contínua da exposição é indispensável para assegurar que as doses absorvidas pelos profissionais permaneçam tão baixas quanto possível e inferiores aos limites estabelecidos para a dose efetiva, dose equivalente nas extremidades e dose equivalente no cristalino, pelo que os dosímetros individuais devem ser usados em posições estratégicas. Existem dosímetros para a região ocular, fixados na cabeça ou óculos, que deverão ser calibrados com regularidade (15).
CONCLUSÃO
O presente caso clínico alerta os médicos do trabalho, bem como a restante equipa de saúde ocupacional, para a necessidade de implementação de um programa de vigilância adequado da saúde dos trabalhadores expostos a RI, com identificação precoce de danos ao cristalino, e a sua orientação diagnóstica e terapêutica, permite reduzir o absentismo, melhorar a capacidade de trabalho e a qualidade de vida dos trabalhadores.
A implementação de estratégias preventivas baseadas na evidência, incluindo a formação contínua sobre os riscos da radiação e a monitorização regular das doses absorvidas, são importantes para mitigar os efeitos na saúde relacionados com a exposição a RI. Assim, a proteção radiológica, aliada a uma abordagem educacional eficaz, constitui a melhor estratégia para preservar a saúde ocular e garantir a segurança a longo prazo dos profissionais de saúde que atuam em contextos de elevada exposição ocupacional a RI.














