1 INTRODUÇÃO
Inicialmente, é necessário salientar que são objeto de análise do presente artigo apenas as empresas públicas unipessoais, uma vez que o estudo trata especificamente das sociedades de sócio único, e não das sociedades como um todo, incluindo aí as compostas por dois ou mais sócios.
Essa explicação se faz imperiosa, haja vista que a legislação brasileira, desde a entrada em vigor do art. 5º do Dec.-Lei 900, de 29.09.19692, prevê a possibilidade de constituição de empresas públicas pluripessoais, cujo o capital social pertença a dois ou mais entes políticos, bem como entidades da administração pública indireta da União, Estado, Distrito Federal ou Municípios3.
Uma vez feito esse esclarecimento, impende recordar que as empresas públicas são reconhecidas no Brasil desde o século XIX, sendo a primeira que se tem notícia a Caixa Econômica Federal, então denominada “Caixa Economica da Corte”, cuja autorização foi concedida por meio do Decreto 2.723, de 12.01.18614, proliferando as sociedades estatais, como um todo, a partir do Estado Novo5.
Contudo, não havia qualquer tratamento genérico acerca da matéria, sendo sua configuração concebida mediante leis específicas, sem a formação de uma abordagem harmoniosa, traduzindo-se, de certa maneira, em um privilégio estatal.
Nesse contexto de insegurança jurídica, intensificado pela ausência de uma conceituação positivada de empresa pública, a doutrina já debatia sobre sua natureza jurídica, sendo certo que, desde aquela época, parcela da doutrina já percebia, nessas figuras, contornos societários, especialmente do tipo da companhia6.
Esta situação começa a ter modificação com a entrada em vigor do Dec.-Lei 200, de 25.02.1967, o qual insculpiu em seu art. 5º7 a primeira definição legal de empresa pública.
2 EMPRESA PÚBLICA E A REFORMA ADMINISTRATIVA DE 1967/1969
Após o advento do Dec.-Lei 200/1967, ainda que alterado pelo Dec.-Lei 900/19698, permaneceu controversa a natureza jurídica das empresas públicas na literatura, havendo autores que sustentavam que tais pessoas jurídicas não seriam necessariamente classificadas como sociedades, podendo ser categorizadas, inclusive, como fundações.
Nesse sentido, por exemplo, José Cretella Júnior (1976, p. 51-52) defendia que as empresas públicas unipessoais poderiam adotar a forma fundacional, a depender de seu substrato patrimonial e do objetivo de sua constituição. Por outro lado, as empresas públicas pluripessoais obrigatoriamente assumiriam uma das formas societárias oferecidas pelo direito mercantil, observando-se a nomenclatura então em voga9.
Por sua vez, Oscar Barreto Filho (1977, p. 399-402) advogava que, à exceção teórica de uma lei federal específica que previsse uma conformação diferenciada em determinado caso, as empresas públicas mandatoriamente deveriam adotar uma forma societária, haja vista que elas se destinam à exploração de atividade econômica e se revestem sob a forma de pessoa jurídica de direito privado10.
Acerca da particularidade federal, Oscar Barreto Filho (1977, p. 403-405) argumentava que o art. 8º, XVII, “b”, da Constituição da República11 então em vigor (1967-1969), atribuía apenas à União a competência legislativa em matéria de direito civil e comercial12, não podendo, portanto, os Estados, Distrito Federal e Municípios, estabelecerem regras diferenciadas ao instituir suas empresas públicas, sob pena de infringir o domínio privativo da esfera nacional13.
Todavia, parte da doutrina entendeu que se deveria prestigiar a autonomia dos membros da Federação, para dispor sobre a sua própria organização administrativa14, apoiando a tese de que todas as entidades políticas poderiam criar regras peculiares para suas empresas públicas, a despeito da competência privativa da União em direito civil e comercial15.
Nessa perspectiva, as empresas públicas poderiam adotar um tipo de pessoa jurídica própria, conhecido por “empresa pública unipessoal stricto sensu”, advindo da personificação de parcela do patrimônio estatal, dotado de autonomia administrativa, supervisionado pela entidade instituidora16.
As empresas públicas em sentido estrito se diferenciaram das fundações de direito privado notadamente em razão do fato de as primeiras terem capital, instituto jurídico que inexistiria no segundo tipo de pessoa jurídica. Além disso, a formação da vontade dessas empresas públicas surgiria a partir do desígnio do titular único, inexistindo qualquer órgão deliberativo interno17.
Ademais, haveria também as empresas públicas constituídas sob a forma de sociedade unipessoal. Observar-se-ia, nessas, as estruturas formais imperativas às sociedades, devendo existir a assembleia geral, órgão responsável pela elaboração da vontade social, ainda que haja apenas um sócio no quadro dessas empresas públicas18/19.
A problemática da natureza jurídica da empresa pública nem tampouco foi resolvida em definitivo com a entrada em vigor da Constituição da República de 1988, pois o Texto Maior não apresenta nem uma conceituação específica dessa figura. Contudo, a Emenda Constitucional 19, de 04.06.1998, trouxe significativas contribuições ao tema, as quais passam a ser analisadas.
3 EMPRESA PÚBLICA E A REFORMA ADMINISTRATIVA DE 1998
Inicialmente, recorda-se que a Emenda Constitucional 19/1998, ao alterar a redação do inc. XIX, do art. 37 da Carta Política20, deu maior tecnicidade ao dispositivo, esclarecendo que a lei específica autoriza a criação de empresas públicas e sociedades de economia mista, mas não as cria conforme a literalidade do inciso original21, até porque tais pessoas jurídicas devem observar as normas de direito privado, inclusive quanto à sua constituição22.
Além disso, a mencionada Emenda modificou a redação do § 1º do art. 173 da Constituição23, prevendo o surgimento do estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços24.
Ocorre que a referida determinação só fora cumprida em 2016, aproximadamente 18 (dezoito) anos após o início da vigência da Emenda Constitucional 19/1998, por meio da Lei 13.303, de 30 de junho, daí decorrendo insegurança jurídica sobre a matéria durante todos esses anos por causa desse vácuo legislativo.
Sem embargo, impende salientar que tal norma foi promulgada com direcionamento mais amplo do que o vislumbrado pelo constituinte derivado, uma vez que pretende ser aplicável a todas as empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias, ainda que não explorem atividade econômica em sentido estrito25, conforme o art. 1º do diploma legal26, devendo as sociedades estatais existentes se adaptar ao novo regime no prazo de 24 (vinte e quatro) meses sinalizados no art. 91 da Lei27.
Em que pese o fato de que essa opção legislativa possa ser questionada judicialmente, até o presente momento, se desconhece a propositura de qualquer ação que alegue sua inconstitucionalidade, mantendo-se, portanto, a presunção de constitucionalidade da referida Lei.
Ademais, é razoável a interpretação do texto constitucional no sentido de que a União teria a atribuição de estabelecer normas gerais acerca das empresas públicas e sociedades de economia mista, haja vista a instabilidade que geraria se, por exemplo, cada um dos mais de 5.000 (cinco mil) Municípios brasileiros pudesse estipular um tratamento diferenciado sobre o tema, além da invasão de competência privativa federal legislativa em direito civil e comercial (art. 22, I da Constituição).
Superada essa dificuldade, defende-se que a Lei 13.303/2016 deixa evidente que as empresas públicas são verdadeiras sociedades, uma vez que seu Capítulo II (intitulado “Do regime societário da empresa pública e da sociedade de economia mista”) lhes impõe um tratamento societário pormenorizado, além de determinar expressamente a aplicação da Lei 6.404/1976 em alguns pontos, como no que tange à escrituração e elaboração de demonstrações financeiras28.
Nessa direção, cabe salientar que as empresas públicas devem ter órgãos característicos das sociedades como conselho de administração (art. 1829), diretoria (art. 2330), conselho fiscal (art. 2631), além de prever, como órgão auxiliar, o comitê de auditoria estatutário (art. 2432).
Igualmente, destaca-se que nem mesmo uma lei infraconstitucional específica que trate da autorização de criação de uma empresa pública que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços pode afastar as normas imperativas fixadas na Lei 13.303/2016, haja vista que todos os entes políticos devem se submeter a opção do constituinte de exigir um estatuto jurídico uniforme à matéria.
Por outro lado, ao se tratar de empresa pública que não explore atividade econômica em sentido estrito, não se vislumbra óbice teórico a União33 estabelecer, em lei extravagante autorizativa futura, regramento diferenciado do disposto na Lei 13.303/2016. Tal assertiva está baseada na limitação material plasmada no art. 173, § 1º, da Constituição que não se aplica a estas. É possível, inclusive, o ente federal desconfigurar a natureza jurídica, a princípio, societária, ainda que essa opção seja inconveniente à luz da desejável coerência do sistema normativo e da segurança jurídica.
Além disso, frisa-se que as empresas públicas prestadoras de serviço público ainda deverão ter um órgão consultivo denominado conselho de usuários. O órgão que possui como principais atribuições o acompanhamento e a avaliação das atividades executadas, além de propor melhorias e contribuir na definição das diretrizes de atendimento, consoante o art. 18 da Lei 13.460, de 26.06.2017, aplicável a todos os entes da Federação por determinação do art. 37, § 3º, I, da Constituição da República34.
Feitas essas observações, poder-se-á discutir quais são os tipos societários que as empresas públicas podem adotar. Ao contrário das sociedades de economia mista35, a Lei 13.303/2016 não previu que as empresas públicas devam ser constituídas necessariamente sobre a forma de sociedade anônima36.
Ressalta-se que essa interpretação no sentido de que as empresas públicas poderiam utilizar outros tipos societários que não a companhia é corroborada pelo art. 11 do regulamento do estatuto jurídico37, Decreto 8.945, de 27.12.2016, ao afirmar que tais estatais deverão ser constituídas preferencialmente (portanto, não obrigatoriamente), sob a forma de sociedade anônima.
Contudo, isso não significa que a empresa pública possa adotar qualquer dos tipos societários existentes. Nesse segmento, recorda-se que, por força do art. 3º da Lei das Estatais, as sociedades estatais possuem necessariamente personalidade jurídica distinta de seus sócios, ao contrário das sociedades de conta de participação, a qual não a possui ante o disposto no art. 993 da codificação de direito privado38.
Nem tampouco poderiam as empresas públicas pluripessoais adotar a forma de cooperativa, pois as atividades por elas desempenhadas não podem ser compatibilizadas com os princípios norteadores do cooperativismo39, além de que a legislação de regência limita consideravelmente a possibilidade de ingresso de pessoas jurídicas em seu quadro societário nos termos do art. 6º da Lei 5.764, de 16.12.197140.
O campo de escolha de tipos societários é ainda menor no que se refere às empresas públicas unipessoais ante a ausência de um segundo sócio. Por esse ângulo, pode-se afirmar que são totalmente incompatíveis com essas figuras os tipos societários que exigem estruturalmente duas categorias distintas de sócios como as sociedades em comandita simples e por ações, conforme, respectivamente, dos arts. 1.045 do Código Civil41 e 281 da Lei 6.404/197642, observando-se, portanto, a ordem pública societária43.
De outro giro, defende-se que a empresa pública unipessoal possa adotar tipos societários que, a princípio, demandem a pluralidade de sócios, como a sociedade limitada (art. 1.052 da codificação de direito privado), afastando-se, portanto, a aplicação da respectiva norma imperativa.
Essa derrogação do direito societário é necessária para que seja feita a adequação ao regime híbrido das empresas públicas vislumbrado pela Constituição e disposto na Lei 13.303/2016, bem como regulamentado pelo Decreto 8.945/2016, o qual, conforme já sinalizado anteriormente, não prevê um tipo societário mandatório44.
Além disso, frisa-se que o abandono do elemento da pluripessoalidade nas sociedades limitadas em si não ocasiona uma desconfiguração completa do tipo da limitada, mantendo-se as principais regras. Tanto é assim que, em diversos congêneres estrangeiros como a société à responsabilité limitée45 francesa consoante o art. L223-1 no Código Comercial46/47, é permitida a unipessoalidade permanente.
Outrossim, esclarece-se que a empresa pública unipessoal também poderia se utilizar do tipo da empresa individual de responsabilidade limitada desde que possua um capital social totalmente integralizado igual ou superior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País, já que haveria plena compatibilidade entre as regras plasmadas no art. 980-A48 e as peculiaridades dessas sociedades estatais.
Todavia, entende-se mais oportuno que as empresas públicas unipessoais adotem a forma de sociedade anônima. Isso se dá por duas razões principais.
Primeiramente, salienta-se que a estrutura de órgãos societários, as regras de transparência de gestão, fiscalização e auditoria, e o regime de responsabilidade dos administradores previstos na Lei 13.303/2016 se assemelharam em muito aos fixados na Lei 6.404/1976, quando não há remissão direta a este diploma49/50.
Em segundo lugar, sobressai que o art. 251 da Lei das Sociedades por Ações prevê a possibilidade de constituição de companhia de sócio único, havendo notável afinidade entre a subsidiária integral e a empresa pública unipessoal em razão da unipessoalidade, sublinhando-se, contudo, que seus titulares são sempre, respectivamente, sociedade brasileira e ente político51.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, foi analisada a natureza jurídica das empresas públicas unipessoais no direito brasileiro, verificando-se os posicionamentos doutrinários existentes e cotejando-os com as diferentes molduras do ordenamento jurídico positivo estabelecidas ao longo do tempo pelo legislador nacional.
Aferiu-se que um tratamento genérico das empresas públicas no direito positivo brasileiro52 surgiu com a reforma administrativa de 1967/1969, tendo o art. 5º do Dec.-Lei 200/1967 plasmado um conceito positivo que não resolveu a controversa acerca de sua natureza jurídica.
Constatou-se que apenas o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, Lei 13.303/2016, consolidou sua categorização jurídica, fixando-lhes um regime societário próprio, uniformizando a matéria que, até então, pendia de grave insegurança ao intérprete.
Entretanto, a Lei das Estatais não estabeleceu taxativamente o tipo societário a ser adotado pelas empresas públicas unipessoais, de modo que é possível defender que estas entidades poderiam adotar outros tipos societários além de companhia, apesar deste último ser o mais conveniente, raciocínio o qual é corroborado pela redação do art. 11 do Decreto 8.945/2016.
Concluiu-se que isso não significaria que tais sociedades poderiam adotar qualquer tipo societário existente no direito privado, uma vez que seria necessário observar mandatoriamente a ordem pública societária, de forma que o espectro de escolhas do administrador seria por ela reduzido.