INTRODUÇÃO
Desde os tempos mais remotos, o homem, como ser social, precisa não apenas viver, mas aprender a conviver em sociedade, de forma a exercer seus direitos com respeito aos dos seus semelhantes, incluindo aí as diferenças entre povos e culturas. O jusnaturalista Giorgio Del Vecchio, ao escrever sobre direito, sociedade e solidão já trazia essa ideia, destacando a importância dos momentos individuais para o convívio social:
(...). A vida social, pelo contrário, é conveniente e até necessária como exercício e caminho para a perfeição, enquanto permite receber instruções, exemplos e correções de outros. (...). E S. Tomás adverte justamente que o homem pode viver solitário por duas razões: por não suportar a sociedade humana, o que é próprio dos brutos; ou porque quer viver totalmente absorto nas coisas divinas e, então, supera a sua própria humanidade, é ‘divinus vir’. Deduz-se, também, facilmente dessas considerações que a solidão como modo de vida permanente não pode ter lugar senão em raríssimos casos (...)3.
Nos dias atuais, em uma sociedade de risco e globalizada de que nos fala Manuel Castells4, onde tudo é rápido e há uma crise de valores, com necessidade de observância das diferenças, “com respeito ao pluralismo e retorno aos sentimentos”, referidos por Erik Jayme5, é imprescindível interpretar o abuso do direito sob uma perspectiva de respeito ao outro, baseando-se o intérprete em critérios técnicos, objetivos, sem descurar da solidariedade e da finalidade do instituto, entendida como sua utilidade não apenas individual, mas principalmente social, em função não apenas do “ter”, mas do “ser”.
Assim, com base no método dialético, mediante pesquisa bibliográfica realizada em autores clássicos (mais antigos) e contemporâneos e tendo como referencial teórico o funcionalismo, no presente trabalho, há duas perguntas as quais nos propomos a esclarecer: a) como deve ser visto o abuso de direito no Brasil, a partir da cláusula geral do art. 187 do Código Civil, em comparação com a figura do abuso de direito do Código Civil de 1916 (art. 160)? e b) como deve ser interpretada a cláusula em questão sob uma perspectiva de solidariedade, ou seja, de forma a assegurar a utilidade dos fins pretendidos pelos indivíduos sem, no entanto, descurar do aspecto social? É o que se passará a abordar a seguir.
1 O ATO ILÍCITO NO DIREITO PRIVADO E A SUA RELAÇÃO COM OS INSTITUTOS DA ANTIJURIDICIDADE E DO ABUSO DE DIREITO
1.1 O Ato Ilícito e o Antijurídico
Inicialmente, há necessidade de se identificar, com precisão técnica, quais são os elementos caracterizadores dos conceitos de ilicitude e de antijuridicidade.
Os atos ilícitos, nas palavras de Francisco Amaral, são vistos como uma categoria geral de fatos jurídicos, constituindo “aquelas ações que o ordenamento condena e sanciona”6.
Dentro de uma visão tradicional e mais antiga, o ato ilícito sempre foi visto como a fonte por excelência da responsabilidade civil. No entanto, modernamente, são reconhecidas outras fontes da responsabilidade civil (como, por exemplo, os contatos sociais típicos), sendo que essa poderá resultar até de atos lícitos.
A ilicitude traz, portanto, uma ideia mais restrita do que a noção de antijuridicidade, implicando contrariedade à lei, ao preceito normativo e foi neste sentido que o legislador brasileiro a utilizou no art. 186 do atual CC de 20027. No entanto, no atual art. 187 do mesmo Código Civil8, a expressão ato ilícito é utilizada num conceito mais amplo, de antijuridicidade: o antijurídico ultrapassa o ordenamento jurídico positivo, ou seja, pode ser encontrada a contrariedade em situações não expressamente identificadas pelo ordenamento jurídico, mas, por exemplo, situações que são limitadas por princípios e por valores jurídicos vigentes numa sociedade em um dado momento. Outro aspecto diferencial é que o ato antijurídico pode resultar não apenas do ato ilícito, mas também do ato lícito, como podemos perceber, no Código Civil brasileiro, nos casos de indenização resultante de destruição de coisa alheia ou lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente, situação conhecida como excludente de antijuridicidade por estado de necessidade (art. 188, II, do CCB).
Aqui, cabe trazer a distinção apontada entre antijuridicidade formal e antijuridicidade material feita por Mosset Iturraspe9, apontando que a expressão antijuridicidade pode ter diversas compreensões. Segundo o autor argentino, a antijuridicidade formal está ligada intimamente à ideia de legalidade: toda aquela conduta que não é expressamente considerada ilícita pela lei, não pode ser considerada como antijurídica. Ou seja, a antijuridicidade formal é a contrariedade à lei, uma ilegalidade, representando a própria ilicitude.
Já na antijuridicidade material, o conceito de ilícito não se esgota na mera contrariedade à lei, mas pode ter outras fontes, como os bons costumes, a moral social e os princípios gerais de direito.
E para qual finalidade serviria essa distinção? Conforme se tenha uma visão que diferencia ou não o ilícito do antijurídico, será dada uma interpretação mais ampla ou mais restrita à figura do abuso de direito, no caso brasileiro, da cláusula geral do art. 187 do CCB.
O fato é que o art. 187 do CCB tomou o conceito de ilicitude como sinônimo de antijuridicidade: configura abuso de direito não apenas a contrariedade à lei, mas também aquela desconformidade que viole princípios, valores vigentes em um sistema e, justamente por isso, o art. 187 é considerado uma cláusula aberta (conceito de fundamental importância para a interpretação atual da figura do abuso).
Pontes de Miranda, na sua Teoria do Fato Jurídico, já trazia a ideia de ilicitude no seu sentido mais amplo, como expressão sinônima de antijuridicidade, como algo maior que a mera transgressão ao ordenamento, à lei, possuindo o ato ilícito (como sinônimo de antijurídico) não apenas como consequência o dever de indenizar, mas também a invalidação do ato, a perda de um direito, uma sanção de natureza penal e/ou administrativa, referindo que:
A tratação das obrigações por atos ilícitos, em separado e minudentemente, levou a doutrina a considerar os atos ilícitos como classe de fatos jurídicos, ao lado, e exaustivamente, dos atos jurídicos lícitos e dos fatos jurídicos stricto sensu. Bem tarde se percebeu que essa tricotomia não era exaustiva: há mais atos ilícitos ou contrários ao direito que os atos ilícitos que provém da obrigação de indenizar. Por outro lado, há obrigação de indenizar sem ilicitude do ato ou de conduta. (...). A ilicitude pode ser encarada como juridicizante, isto é, a) determinadora da entrada do suporte fático no mundo jurídico para a irradiação da sua eficácia responsabilizadora (art. 159), ou b) para a perda de algum direito, pretensão ou ação (caducidade com culpa), como se dá com o pátrio poder (...), ou c) como infratora culposa de deveres, obrigações, ações ou exceções, tal como acontece com toda a responsabilidade culposa contratual, ou d) como nulificante (art. 145, I). Só a análise das quatro espécies há de trazer mais clareza ao assunto, com o tratamento de cada uma10.
Assim, com essas semelhanças e diferenças entre o ilícito e o antijurídico, passa-se ao exame do ato ilícito e da sua correlação com o abuso de direito.
1.2 O Ato Ilícito e a Figura do Abuso do Direito
Muito se discutiu se o abuso de direito seria ou não uma espécie de ato ilícito11.
Pode-se entender a figura do abuso de direito como uma transmutação do lícito em ilícito, dividindo-a em dois momentos: um momento estático, no qual surge o ato conforme ao direito, legitimado no ordenamento jurídico (a titularidade de um direito subjetivo previsto no ordenamento), portanto, um ato inicialmente lícito e um segundo momento, dinâmico, onde há o exercício do direito contra os limites estabelecidos no ordenamento. O abuso de direito “não pode ser vislumbrado simplesmente em posição de contradição à definição de ilicitude formal, senão de complementaridade”12. Portanto, a ideia do abuso de direito é mais ampla do que a de ilicitude meramente formal.
Mas para que se possa melhor compreender a figura do abuso de direito, é necessário que se faça um breve retorno às origens do direito subjetivo, ao qual o instituto se acha intrinsecamente relacionado.
O direito subjetivo teve os seus primórdios na filosofia jurídica da Idade Média, com Guilherme de Ockham, que caracterizou o direito subjetivo como liberdade ou poder do indivíduo, que será exercido segundo a sua vontade. No entanto, foi na Escola Jusracionalista, com Hugo Grócio13, que a figura do homem, como titular de direitos, assumiu caráter central, trazendo a noção de que a vontade humana pode intervir no direito natural ditado pelas regras da “reta razão”, fornecendo a noção de direito como faculdade humana, expressão de sua liberdade, surgindo a questão da harmonização dessas faculdades do indivíduo frente aos demais seres humanos.
A partir do entendimento de necessidade de limitação das liberdades, vários filósofos, entre eles Immanuel Kant14, reconhecem que o sujeito deve exercer o seu arbítrio de acordo com uma lei universal de liberdade, entendendo o direito como “conjunto das condições pelas quais o arbítrio de cada um harmoniza-se com os dos demais, de acordo com uma lei universal de liberdade”15, fazendo a separação entre Direito e Moral.
Com base no pensamento de Kant é que se forma a noção de direito subjetivo, separando Direito e Moral, sendo seguido, mais tarde, pela Escola Positivista, destacando-se a figura de Kelsen.
Durante o século XIX, surgiu a mais recente compreensão dos direitos subjetivos, através da Pandectística alemã, com as Teorias de Savigny, Windscheid e de Ihering, devendo-se a este a noção de interesse jurídico como aquele juridicamente protegido (Teoria do Interesse), ou seja: o Direito só existe para servir ao homem, prestando-lhe alguma utilidade16.
Entre o final do século XIX e o início do século XX e como uma consequência do processo de industrialização, começou a surgir o Estado do Bem-Estar Social, trazendo influências diretas na ordem jurídica, tratando o homem não mais como um sujeito em abstrato, mas passando a considerá-lo no seu contexto social e histórico, como “valor fonte de outros valores”. A pessoa preserva o seu aspecto individual, consistente na esfera privada de autorregulação (Princípio da Autonomia da Vontade), mas o Direito reconhece o indivíduo como alguém inserido na sociedade, trazendo as ideias de cooperação social e de solidariedade para com os demais membros da comunidade (Teorias da Confiança e da Função Social)17.
Com esse desenvolvimento, a própria noção de direito subjetivo passa a ser entendida de forma diversa, verificando-se a relatividade do conteúdo do direito, o qual somente será aferido no caso concreto. Ainda que mantida a estrutura das relações jurídicas em torno do direito subjetivo, o seu enfoque passa a abranger também outras categorias diferenciadas, falando Menezes Cordeiro em “situações jurídicas”18 e Robert Alexy, em “posições jurídicas”19, o que reaviva a discussão sobre a definição de direitos subjetivos e seus limites.
A partir dessa breve análise do conceito de direito subjetivo deve-se evoluir para um exame das origens do instituto do abuso de direito no mundo, para que se possa chegar ao entendimento anteriormente adotado pelo Código Civil brasileiro de 1916 (art. 160 - a contrario sensu) e pelo atual Código Civil brasileiro de 2002 (a chamada cláusula geral do art. 187).
A origem do abuso de direito está na figura da aemulatio, que existia em Roma, proibindo-se o uso de um direito com o fim de causar prejuízo a outrem, mas não com a amplitude que lhe deram as legislações modernas. A regra era a de que os direitos subjetivos eram absolutos, havendo exceções que consideravam relativos certos direitos e, por isso, passíveis de abuso. Eram proibidos os atos praticados com animus aemulandi.
Conforme esclarece Everardo da Cunha Luna, várias teorias surgiram para explicar o abuso de direito, “todas com uma finalidade comum: negar, ao ato abusivo, o caráter de ato ilícito”20.
E essas teorias, conforme sintetiza o supramencionado autor, podem ser classificadas em três grupos: 1) teorias subjetivas (as quais pertencem as teorias da intenção, a da gravidade da culpa e a da culpa específica - o abuso de direito se fundamenta na intenção de prejudicar); 2) teorias objetivas (a do destino econômico, a do fim social do direito e a do motivo legítimo, para as quais, em síntese, nenhuma eficácia tem a culpa do autor para a caracterização do abuso de direito) e 3) teorias ecléticas21.
Dentre essas teorias, em especial as objetivas, destacam-se as teorias de Saleilles - teoria do destino econômico e a de Josserand - teoria do fim social do direito e teoria do motivo legítimo.
Saleilles, inicialmente, se vincula ao critério intencional para justificar o abuso de direito (filia-se, portanto, à teoria subjetivista). No entanto, mais tarde, esse critério é por ele abandonado, afirmando que o ato abusivo consiste no exercício anormal de um direito, porque contraria a sua finalidade econômica e social (o ato é economicamente prejudicial e reprovado pela consciência pública)22.
Além de Saleilles, também Josserand explicou o abuso de direito com base em um critério objetivo, mas fundamentado no fim social do direito e, posteriormente, utilizando um critério subjetivo, que denominou de “motivo legítimo”. O professor de Lyon adotou, inicialmente, um critério finalista, partindo do princípio de que o instituto se exerce em conformidade com o direito da pessoa e em contrariedade às regras sociais, falando em “imprimir uma direção anormal à atividade”23. O próprio Josserand reconheceu o fracasso da sua teoria e prosseguiu na sua investigação, propondo, então, o critério do motivo legítimo. O abuso de direito estaria caracterizado pela ilegitimidade do motivo que lhe deu causa, exemplificando com as figuras do concerto fraudulento, fraude à lei, dolo, intenção de prejudicar, má-fé, ou seja, elementos subjetivos.
Apesar da influência francesa na doutrina do abuso de direito brasileira, é preciso destacar que o Código Civil francês de 1804 - o Código Napoleônico, não fazia qualquer referência ao abuso de direito, nem mesmo a qualquer limitação genérica aos direitos subjetivos, sendo que inicialmente coube à jurisprudência francesa o desenvolvimento do tema. No entanto, na própria França, havia quem, como Planiol, entendesse a expressão abuso de direito como “logomáquica” (inútil, sem sentido), pois um ato não poderia ser, ao mesmo tempo, conforme e contrário ao direito.
Apesar do tratamento original dado ao assunto, as teorias francesas, que tiveram o seu desenvolvimento paralisado no início do século XX, são carentes de uma elaboração sistemática, o que foi feito na Alemanha. Neste país, surgiram as figuras da exceptio doli e da proibição geral de chicana, dando-se destaque para uma das poucas e mais célebres decisões citada por Menezes Cordeiro24, que é aquela em que foi considerado abusivo o ato de um pai que, motivado por desavenças, proibira a entrada do filho no interior de seu castelo, onde se localizava o sepulcro da mãe.
Dessa forma, recorreu o direito alemão, para resolver os mais variados casos de exercício inadmissível de direitos, à boa-fé objetiva, materializada na cláusula geral do § 242 do Código Civil alemão (BGB), de forma ampla, prescindindo da intenção do agente, conceito que foi sendo construído pela doutrina e pela jurisprudência. No direito germânico, a tutela da confiança como fundamento e o princípio da boa-fé objetiva são a base para a proibição do exercício inadmissível de direitos, o que é fundamental para que entendamos o atual art. 187 do Código Civil brasileiro.
É de se ressaltar que o art. 334º do Código Civil português de 196625 é a fonte direta do art. 187 do Código Civil brasileiro. No entanto, aquele resultou do art. 281 do Código Civil grego26, conforme chama a atenção Menezes Cordeiro27. Todavia, o Código grego de 1946 foi elaborado por Maridakis, com ampla influência da codificação suíça (no que tange à questão da proibição do exercício do direito ultrapassar limites que lhe são impostos) e da doutrina alemã, sendo que esta teve decisiva importância na formação dos conceitos de bons costumes e boa-fé, nos termos referidos por Cristiano de Sousa Zanetti28.
Já o Código Civil brasileiro de 1916 teve, ao contrário do atual, a sua grande inspiração na doutrina francesa, principalmente em Saleilles que, consoante aqui referido, identificou o abuso de direito com o exercício anormal de um direito, o que pode ser visualizado pela leitura do anterior art. 160 do diploma civil brasileiro, muito marcado pela ideia do elemento subjetivo (culpa), com influência direta em matéria de responsabilidade civil29.
Ainda, com base no Código Civil de 1916, Maria Amália Dias de Moraes já afirmava que todo o direito, ainda que absoluto, é relativo quanto ao seu exercício, sofrendo o seu titular, no uso das prerrogativas, poderes e faculdades que nele se contêm, limitações gerais e especiais, incluídas entre essas limitações gerais a proibição do exercício irregular, tendo como diretrizes a orientarem o legislador e pautarem o exercício desse direito, a boa-fé, os bons costumes, a função social e alguns valores para os quais chama a atenção, tais como a correção, a lealdade e a solidariedade30. É o que se verá a seguir.
2 O ABUSO DE DIREITO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: A CLÁUSULA GERAL DO ART. 187 E A SUA NECESSÁRIA INTERPRETAÇÃO À LUZ DA SOLIDARIEDADE
2.1 Elementos para a sua Caracterização como Ilicitude Objetiva
O atual Código Civil brasileiro, no seu art. 187, estabeleceu o que a doutrina chama de uma cláusula geral, trazendo uma previsão do que pode ser considerado abuso de direito mediante referência a elementos “ético-juridicizados”31, quais sejam: fim econômico ou social, boa-fé e bons costumes. Com isso, o conceito de abuso de direito contribui para que o sistema do Código Civil brasileiro seja considerado o que Canaris denominou de um sistema móvel, aberto, referindo o autor alemão que o sistema móvel ocupa “uma posição intermediária” entre a rigidez e a cláusula geral32.
Aqui cumpre fazer referência ao conceito de cláusula geral e ao que a doutrina denominou de conceitos juridicamente indeterminados, para que se possa ter uma noção escorreita dos limites do ato abusivo.
No projeto do atual Código Civil brasileiro, o seu relator, Senador Josaphat Marinho, justamente ressaltou a necessidade de superação de sistemas rígidos, fazendo-se imprescindível uma recodificação do direito civil com base na prudência e na flexibilidade. E é justamente aí que ressurge o tema das cláusulas gerais, sob um aspecto de construção e reconstrução do Direito Privado na atualidade, baseado na interconexão entre o Código Civil, a Constituição Federal e as legislações que constituem os chamados microssistemas.
As cláusulas gerais, segundo Judith Martins-Costa, constituem uma técnica legislativa, própria da segunda metade do século XX, período em que o modo de legislar mudou radicalmente, passando do movimento da codificação, através da pretensa lei clara, precisa e acabada, mas dotada de abstração, para uma lei com características de concreção e realidade, representando uma resposta aos problemas da vida cotidiana. Ao falar sobre o modelo de código na contemporaneidade, explica a citada autora:
As cláusulas gerais, mais do que ‘um caso’ da teoria do direito - (...), constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standarts, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo33.
As cláusulas gerais, portanto, constituem o que no direito penal se conhece como “norma penal em branco”, ou seja, incompletas, cujos conceitos vão sendo superados pela interpretação e concreção, sendo constantemente atualizados, de acordo com as mudanças ocorridas na sociedade naquele momento. Então, pode-se afirmar que o abuso de direito constitui uma cláusula geral, sendo essencialmente dinâmico.
Em termos de estrutura e parâmetros, o novo Código Civil brasileiro de 2002 rompeu, radicalmente, com a construção do Código Civil de 1916, pois desvinculou a ilicitude civil do instituto que é apenas uma das suas consequências, qual seja, a indenização (pois podem decorrer do ato ilícito e abusivo também a invalidade, a ineficácia, alguma tutela inibitória no sentido de prevenir a sua ocorrência), dispensando o dano para a sua caracterização. Isso fica claro porque o atual Código Civil brasileiro abriu um título próprio destinado à obrigação de indenizar (art. 927 e ss.).
Além disso, a norma do art. 187 do CCB é uma norma que consagra a ilicitude como objetiva, pois para configurar o abuso do direito, não se exige mais a intenção do agente (dolo ou culpa), saindo o centro das atenções do elemento conduta e entrando no elemento resultado (finalidade).
Com isso, não se está afirmando que o abuso de direito, no atual diploma civil brasileiro, não possua uma cláusula geral de ilicitude subjetiva. Pelo contrário: essa cláusula está expressa no seu art. 186, com uma alteração importante em relação à redação do art. 159 do CCB de 191634. Neste, o art. 159 previa, dentro da ilicitude subjetiva, a obrigação de indenizar (o que, como referido, não é feito no atual art. 186), gerando aquela associação entre ilícito/culpa/dever de indenizar, ou seja, vinculava a ideia de ilicitude à responsabilidade civil (que é apenas uma das suas consequências).
O que é fundamental para que um ato possa ser considerado abusivo é perguntar: diante do resultado produzido, houve alguma violação à boa-fé, aos bons costumes, aos fins econômicos ou sociais? Se a resposta for positiva, caracterizado está o abuso de direito, considerando-se a teoria objetiva35.
Com isso, passa-se ao exame dos elementos limitadores do ato abusivo sob o ponto de vista objetivo. Para os fins do presente trabalho, optou-se por fazer um corte nesses elementos (bons costumes é um conceito que, por si só, comportaria um trabalho próprio, embora não seja muito explorado na doutrina brasileira, sob pena de se incorrer, aqui, na superficialidade), elegendo-se três figuras limitadoras do exercício do ato abusivo: a boa-fé, entendida num sentido maior, de proteção da confiança (que é a base para a determinação do abuso), o fim social e o econômico, estando este intrinsecamente relacionado com aquele, principalmente na sociedade atual onde a escassez é a regra.
Antes de adentrarmos em casos práticos, apontados pelas doutrinas portuguesa e brasileira, envolvendo boa-fé, fim social e econômico como limites ao exercício de direitos, cabe trazer a ideia de segurança jurídica como um elemento importante na proteção da confiança para fins de caracterização dos limites do ato abusivo. Tatiana Bonatti Peres ressalta que a segurança jurídica está ligada à própria noção de função do direito, sendo que uma de suas tarefas “é manter a harmonia social, o que somente é possível com a previsibilidade para os membros da sociedade dos efeitos de suas condutas”36.
A seguir, com base, fundamentalmente, em esquema elaborado por Menezes Cordeiro, permitindo uma abordagem prática do que foi até aqui tratado, são trazidos casos referidos pelas doutrinas portuguesa ou brasileira37, envolvendo figuras de abuso de direito, com a violação aos limites estabelecidos pela boa-fé, pelo fim social e econômico.
O primeiro deles diz respeito à figura conhecida como venire contra factum proprium (que veda, genericamente, comportamentos contraditórios), cuja presença, na moderna Ciência do Direito, teve início com a monografia de Riezler, em 191238. Na sua estrutura, são exigidos “dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo”39.
O primeiro comportamento - chamado de factum proprium - é contrariado por um segundo e a situação na sua globalidade se configura um exercício abusivo de direito, que tem como fundamento a confiança gerada no outro pelo primeiro comportamento do titular de um direito.
Menezes Cordeiro faz uma classificação do que chama de venire positivo (“uma pessoa manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não irá praticar certo ato e, depois, pratica-o mesmo”) e de venire negativo (“o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a”), subdividindo o venire positivo em três situações: a) no exercício de direitos potestativos; b) no exercício de direitos comuns; e c) em atuações no âmbito das liberdades gerais40.
Quanto ao venire positivo, no exercício de direitos potestativos, o autor português oferece vários exemplos (extraídos da jurisprudência alemã), entre os quais:
Assim, em BAG 8-Jun.-1972, discutiu-se o seguinte: um trabalhador - o A., pretende despedir-se; o empregador - os RR. - opõe-se ao despedimento; um mês volvido, os RR., alegando o mau estado da empresa, despendem-no; o BAG entendeu haver aqui violação da boa fé, por vcfp, uma vez que, aquando do primeiro comportamento - a recusa - os RR. já sabiam do mau estado da empresa; nessa base, os dois comportamentos são, de facto, contraditórios.
Em AG Müster, 21-Mar.-1972 decidiu-se haver exercício inadmissível do direito por parte do senhorio que, depois de ter afirmado ao inquilino, a possibilidade de ele permanecer no local arrendado até certa data mínima veio antes dela, rescindir o contrato de arrendamento41.
Na segunda situação, ou seja, tratando-se do exercício de direitos comuns, também a partir de casos da jurisprudência alemã, Menezes Cordeiro menciona: “Em BGH, 23-Abr.-1969, um agente obtivera um mandato em exclusivo; simplesmente, na assinatura correspondente, declara ser apenas uma formalidade, sem esse sentido; a exigência posterior de uma indenização por violação do exclusivo é vcfp, ainda quando não haja dolo na formação do contrato”42.
Na terceira situação (liberdades gerais), o mesmo autor exemplifica que há venire “quando se prometa vender uma fração e, depois, se venda o prédio todo”43.
No que tange ao venire negativo, Menezes Cordeiro explica que a situação típica é a de alguém que anuncia uma conduta e, depois, a “pretexto” de nulidade, nega-a. Oferece interessantes exemplos, destacando-se um na área empresarial:
(...): o director de uma sociedade pretende celebrar um contrato com a própria sociedade, o que é possível nalguns casos; para evitar o contrato consigo próprio, celebrou-se o convênio através da assembleia geral quando, para o efeito, seria competente o Conselho fiscal; o BGH recusou a hipótese de, por todos os sócios terem participado na assembleia geral em causa, se entender existir uma deliberação tácita do conselho fiscal; simplesmente, dada a participação geral, seria contrário à boa-fé permitir a impugnação posterior da deliberação em causa, por incompetência do órgão implicado44.
O segundo caso de violação à confiança é conhecido na doutrina como tu quoque. Corresponde à situação em que o sujeito, aproveitando-se da violação da norma por ele mesmo realizada, deseja exercer contra o outro um direito subjetivo que lhe foi atribuído em decorrência daquela circunstância, transgredindo “as sensibilidades primárias, éticas e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento”45.
A expressão tu quoque (que significa “também tu!”) tem origem na exclamação proferida por Júlio César, quando do seu assassinato no Senado, dirigindo-se ao seu filho adotivo e que também se encontrava entre os seus assassinos46.
O âmbito de aplicação principal da fórmula é nos vínculos contratuais, onde aquele que descumpre os deveres do processo obrigacional modifica a harmonia da sua estrutura sinalagmática, atingindo o conteúdo das prestações e não pode, sob pena de cometer um abuso de direito, exigir o seu cumprimento. Traz o autor português como exemplo dessa figura, a partir da jurisprudência do seu país, alguns casos interessantes, como o de um armazém que, por falta de obras, torna-se inutilizável com a chuva; instado a fazer obras, o senhorio nega-se e o locatário, por isso, desocupa o local: o senhorio move um despejo com base no encerramento; o tribunal recusa-o por abuso47.
No âmbito da doutrina brasileira, Judith Martins-Costa, após explicar que a ideia central do tu quoque é de que “não é lícito exigir de outrem determinada conduta (ou prestação) se quem exige deveria ter tido a mesma conduta (ou ter prestado), mas não o fez (ou não prestou)” e embora reconheça o pequeno desenvolvimento da figura no Brasil48, traz como exemplo a situação de um contratante que, após descumprir uma cláusula do acordo, invoca a nulidade a que ela própria deu causa.
Por outro lado, a terceira e a quarta figuras para as quais Menezes Cordeiro chama a atenção são complementares: a suppressio e a surrectio. O autor português define a suppressio como “a posição do direito subjetivo - ou, (...), a de qualquer situação jurídica - que, não tendo sido exercido em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa-fé”49. Mais adiante, refere que a suppressio “é, no fundo, uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inação do titular do direito” e que nesta figura há que se conjugar os elementos de “não-exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não exercente”50.
Por sua vez, a surrectio é a mesma situação só que olhada pela ótica da outra parte: cria-se um direito pelo não exercício de uma posição jurídica pela parte adversa, a fim de proteger a confiança nas relações. É o caso, por exemplo, de apenas uma pessoa intervir (indevidamente) em nome de uma sociedade ao longo de vários anos e, posteriormente, essa mesma sociedade vir alegar falta de representação daquela pessoa, constituindo um abuso de direito em relação à parte contrária, que agiu em plena confiança durante esse lapso temporal51.
Na doutrina brasileira, a suppressio (ou Verwirkung, para os juristas alemães), é analisada, em obra recente, por Julio Gonzaga Andrade Neves52, que após um exame doutrinário da figura jurídica, fez um estudo de casos recentes da jurisprudência brasileira, destacando-se o de uma revendedora de biscoitos. A indústria comercializou os seus produtos por meio de uma distribuidora que foi sua parceira por três décadas. Após uma mudança do controle societário, assumiu uma postura rígida na condução dos negócios, qual seja: havia o atraso de vários pagamentos de mercadorias pela distribuidora que, no entanto, havia sido admitido pela indústria durante anos. A partir do momento em que a indústria tolerou os atrasos no cumprimento do pagamento, surgiu para a distribuidora uma possibilidade de poder adimplir com as suas obrigações fora do prazo inicialmente estipulado. No entanto, ao invés de cobrar a dívida, a empresa se recusou a fornecer as mercadorias, pondo fim, repentinamente, a um contrato de 30 (trinta) anos. Após esse longo período, a distribuidora teria dedicado 70% (setenta por cento) de sua mão de obra às atividades daquela indústria, bem como investimentos em equipamentos e estrutura administrativa de grande vulto, baseados na confiança e na solidez daquela relação. O autor em questão refere que “ este é um caso riquíssimo por combinar duas frequentes figuras parcelares do abuso de direito: a suppressio e o exercício desmedido do direito de recesso ”.
Ainda, no que diz respeito à análise dos elementos caracterizadores do abuso de direito, cabe verificar aqueles que se referem ao fim social e ao fim econômico.
O fim social está mais relacionado ao aspecto existencial dos direitos.
Ruy Rosado de Aguiar Júnior explica que inobstante o interesse dos indivíduos na sociedade atual seja o lucro, a função econômica do direito não deve ser desvirtuada a ponto de proporcionar a exploração de um indivíduo pelo outro. Refere o autor:
A função econômica está ligada à realização do objetivo de ordem patrimonial visado pelo direito de que se trata. Na área dos contratos, devemos estar atentos para a modificação da sua concepção: o contrato serviu durante muito tempo para a conservação da propriedade (aquisição e disposição). Hoje, na dinâmica do mercado, serve para o lucro. Nessa perspectiva, o Estado deve cuidar para que o contrato não sirva a desmedida exploração do mais fraco; ele deve servir à vida social e não apenas o lucro53.
Neste ponto, cumpre destacar que é necessário o difícil equilíbrio entre o fim social e econômico, relacionando a utilidade pretendida pela sociedade (e não apenas para aquele indivíduo) com o respeito à pessoa do outro, de modo a não haver dominação ou exploração, mas sim uma repartição de riquezas, que é o que se deseja em uma sociedade preocupada com o desenvolvimento.
Um exemplo de abuso de direito levando em conta o fim social e econômico está presente na lei das sociedades anônimas brasileira, através do exercício do direito de voto: o art. 115 da Lei 6.404/1976 (com a redação dada pela Lei 10.303/2001)54 determina que o acionista exercerá o seu direito de voto no interesse da companhia, sendo que o voto com o objetivo de causar dano à empresa ou a terceiros ou, ainda, de obter para si ou para outrem, vantagem indevida, é um ato abusivo, que possui como consequências não apenas a responsabilização do agente, mas a sua invalidação55.
No Brasil, também cabe lembrar a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011), que no seu art. 36, § 3º, aponta vários casos de abuso do poder econômico ou de exercício abusivo de direito tendo em vista a finalidade econômica como, por exemplo, uma empresa que fecha os possíveis canais de distribuição de um mercado, para que os seus concorrentes não possam escoar a sua produção e chegar aos consumidores finais (art. 36, § 3º, V) ou, ainda, o caso de uma empresa detentora de posição dominante, que recusa a compra de um produto, para provocar uma queda drástica no preço (art. 36, § 3º, VII)56.
Assim, tendo presentes os exemplos trazidos de ofensa aos limites da boa-fé objetiva, da finalidade social e econômica quando do exercício de direitos, deve-se fazer uma nova interpretação do abuso de direito tendo como principal norte a solidariedade, na busca de uma releitura de valores no âmbito das relações privadas.
2.2 A Interpretação do art. 187 do Código Civil
Clóvis Beviláqua já ressaltava que a evolução do direito tem se operado no sentido de dar um maior desenvolvimento aos seus aspectos éticos, buscando uma vida harmônica em sociedade, com a necessária redução dos elementos egoísticos57. E assim também tem se operado no campo do exercício dos direitos, em especial, quanto ao abuso de direito, devendo a cláusula geral do art. 187 do Código Civil brasileiro ser lida à luz do preceituado pelo art. 3º, inc. I, da Constituição Federal, que estabelece como um dos objetivos da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.
E como isso é feito nas relações privadas? Basicamente, considerando o fim pretendido com o instituto58, não no seu aspecto puramente individual, mas considerando a sua funcionalidade dentro daquela sociedade, através de uma releitura dos seus institutos, onde há uma maior preocupação com os interesses existenciais e não apenas patrimoniais, que também são relevantes, mas não exclusivos e nem mais importantes do que aqueles.
Pietro Perlingieri ensina que a normativa constitucional não deve ser considerada “sempre e somente como uma regra de hermenêutica, mas também como uma norma de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores”59. O autor, após falar sobre a necessidade da ciência do direito retomar uma jurisprudência não apenas de interesses, mas de valores, refere a imprescindível atualização dos institutos jurídicos, através de “um método orientado a privilegiar o interesse em relação à vontade, o aspecto objetivo e funcional em relação àquele subjetivo e descritivo, a função socioeconômica em relação à estrutura”60.
É justamente dentro dessa perspectiva que se dá a releitura do abuso de direito: redefinir o seu fundamento e a sua extensão por meio da finalidade (econômica e social) do instituto, com base na solidariedade, no “resgate aos sentimentos”, de que nos fala Erik Jayme, citado no início deste trabalho. Além disso, com base em valores previstos no ordenamento jurídico (na Constituição, nas leis ordinárias), não há como se colocar, num mesmo patamar, os chamados interesses existenciais (estritamente ligados à pessoa) e os interesses patrimoniais.
Com isso, o caminho atual surge no sentido de “despatrimonialização” do Direito Civil, conforme menciona Perlingieri, onde a pessoa prevalece sobre os bens, sem que isso signifique uma expulsão do ordenamento dos bens patrimoniais (o que seria inviável e até indesejável), mas traduz uma preocupação maior com o social em detrimento do individual.
É dentro desse novo panorama de Direito Civil-Constitucional que a solidariedade tem um papel fundamental na reconstrução do conceito de pessoa e nos limites de atuação do exercício dos direitos subjetivos. Solidariedade aqui implica pleno desenvolvimento da pessoa, representa “um controle valorativo dos atos de autonomia privada pelo Direito”61. E como isso é feito?
O titular do direito, ao exercê-lo, não pode provocar prejuízo aos demais, de acordo com a solidariedade, ou seja, o exercício do direito subjetivo não pode representar uma arbitrariedade, devendo ser expressão de sua funcionalização e de respeito ao outro.
Ser solidário é, nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes, “além de partilhar uma mesma época e, neste sentido, uma mesma história” (solidariedade fática), agir com uma consciência de valor. A solidariedade, como um valor, “deriva da consciência racional dos interesses em comum”, interesses que implicam, para cada membro da sociedade, “a obrigação moral de não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito”62.
Na doutrina brasileira, Pedro Baptista Martins foi um dos precursores a associar as ideias de abuso de direito, funcionalidade e solidariedade, afirmando: “O conceito sociológico de solidariedade e interdependência, que constitui hoje a base da ordem econômica e jurídica, veio revelar o aspecto social dos direitos subjetivos, que não são atribuídos ao indivíduo como um fim em si mesmo, mas apenas como um meio que se lhes faculta para o desempenho de suas funções e de seus deveres sociais”63.
Contudo, a segurança e a certeza provenientes das codificações do século XVIII foram substituídas, com o passar dos tempos, pela instabilidade e pelas incertezas, tornando a retomada de valores uma medida imprescindível para a harmonia social, tendo especial destaque a solidariedade. Aqui, cabe lembrar a lição do professor de economia e catedrático da Universidade de Coimbra - Boaventura de Sousa Santos, no sentido de que, apesar de o homem ter acumulado tantos e diversos conhecimentos sobre o mundo, não aumentou a sabedoria das pessoas em relação a si próprias, aos demais e à natureza64. Isso leva a que institutos, tanto de direito público quanto de direito privado (como o abuso de direito) tenham que ser repensados.
Há necessidade de desenvolver um novo conceito de solidariedade, conforme ressalta Maria Celina Bodin de Moraes:
(...). Este sentimento, o senso de igual dignidade para todas as pessoas humanas, é novo; não existia no passado. É novo e decorre da conscientização de ‘estarmos todos no mesmo barco’; é, pode-se dizer, a semente criadora de uma nova consciência moral, uma nova ética. As grandes transformações não se deram apenas no nível tecnológico; deram-se, também e principalmente, num nível que diz respeito às concepções culturais: foi no decorrer deste século que o direito das crianças, das mulheres, das minorias raciais foram globalmente difundidos; que o racismo, o preconceito e a intolerância passaram a ser malvistos, considerados como comportamentos socialmente incorretos65.
Com a formação dos Estados Democráticos de Direito, não apenas o poder do Estado em relação aos particulares é limitado pelo direito, como também o poder de vontade do particular nas relações com os outros particulares também sofre restrições. Com o advento das Constituições nesses Estados Democráticos, princípios de diferentes ramos do direito, inclusive de Direito privado, passam a fazer parte das Constituições, o que significa que esses princípios se tornaram normas-diretivas para a reconstrução do sistema de direito privado e, entre essas normas, encontra-se o Princípio da Solidariedade.
Essa necessária interação entre o Código Civil e a Constituição (movimento que a doutrina brasileira chama de constitucionalização do direito civil) transmuta o enfoque da tutela do indivíduo para a da dignidade da pessoa humana, deixando o direito civil de encontrar “o seu fundamento axiológico nos valores individualistas codificados”66. A pessoa humana passa a ser vista a partir da sua inserção no meio social, nunca como uma “ilha”, mas como alguém cujas atitudes possuem influência no destino dos outros, da sociedade na qual se acha inserida
Tatiana Bonatti Peres, ao falar sobre a urgente retomada dos valores morais e a figura do abuso de direito, refere que a solidariedade “é o dever moral de ajuda mútua entre as pessoas”, sendo diferente da fraternidade, que possui um sentido mais altruísta (esta é mais do que respeitar o próximo, estando ligada à ideia de amor ao próximo, de caridade, que não é objeto do nosso trabalho, sendo referida, aqui, apenas para que se possa ter a noção de que são conceitos diferenciados). Ainda, destaca a autora, que inobstante haver na Constituição brasileira “belas palavras”, tais como a solidariedade e a fraternidade, os “valores morais estão abandonados da vivência concreta e o seu real significado está tão esquecido”, complementando com a ideia também sustentada no presente trabalho, de que é preciso dar “tecnicidade (cientificidade e juridicidade) e utilidade para os valores constitucionais de vínculo humanitário”67.
Exemplo enriquecedor e que bem ilustra o que se tem desenvolvido ao longo do presente trabalho, da interpretação das normas com base na funcionalidade dos institutos e levando em consideração a solidariedade, menciona Michael Sandel, ao falar sobre “Justiça”, discorrendo sobre o aumento abusivo de preços após um furacão:
Em tempos de dificuldades, uma boa sociedade se mantém unida. Em vez de fazer pressão para obter mais vantagens, as pessoas tentam se ajudar mutuamente. Uma sociedade na qual os vizinhos são explorados para obtenção de lucros financeiros em tempos de crise não é uma sociedade boa. (...). As leis do abuso de preços podem não por fim à ganância, mas podem ao menos restringir sua expressão descarada e demonstrar o descontentamento da sociedade. Punindo o comportamento ganancioso ao invés de recompensá-lo, a sociedade afirma a virtude cívica do sacrifício compartilhado em prol do bem comum68.
A doutrina brasileira ganhou novos rumos com a promulgação do Código Civil de 2002, abandonando um diploma civil patrimonialista, individualista e voluntarista para um texto com uma lógica solidária, preocupado com os interesses existenciais, destacando-se, nesse novo panorama, a figura do abuso de direito, que surgiu reformulada na cláusula geral do art. 187 do Código Civil. Para que se possa ter uma exata compreensão da interpretação a ser dada ao art. 187, há que se conectá-lo aos três princípios fundamentais do anteprojeto do Código Civil de 2002, idealizado por Miguel Reale: eticidade, socialidade e operabilidade69. Todos esses princípios são encontrados no abuso do direito.
O aplicador do direito, como intérprete, pelo atual Código Civil, saiu de uma interpretação estática, para uma interpretação dinâmica, funcional e axiológica, baseada não apenas na lei, no ordenamento jurídico, mas em princípios e valores de um sistema jurídico, onde o resgate ao ético é indispensável, tendo em vista a utilidade dos institutos.
Os preceitos do art. 187 do Código Civil precisam de uma delimitação em concreto. E qual é essa delimitação? Ela é feita a partir dos preceitos constitucionais desenvolvidos no decorrer deste tópico, tais como a solidariedade. Ainda, através do sistema de cláusulas gerais, o direito vai se atualizando e, no caso da figura do abuso de direito, a prevalência dos interesses existenciais sobre os patrimoniais e a especial atenção a ser dada a funcionalidade do instituto, com destaque para boa-fé objetiva, bem como para os fins econômicos e sociais, vão delineando uma nova interpretação para o tema, com o objetivo de delimitar a atuação dos direitos em sociedade.
Essa concepção solidária do abuso de direito não pode ser vista como um sentimento vago e impreciso, tendo o operador do direito no sistema jurídico os fundamentos e elementos para, diante de uma interpretação axiológica e funcional, fazer com que as situações jurídicas sejam exercidas sem o desrespeito ao outro, numa perspectiva do direito civil-constitucional e na defesa primordial dos interesses existenciais.
CONCLUSÃO
Desde o direito romano, embora não fosse conhecida, como tal, a figura do direito subjetivo, houve uma ideia de intolerância ao exercício de direitos de forma a prejudicar o outro, como um “embrião” da figura do abuso de direito.
Posteriormente, dentro de uma evolução que se demonstrou na primeira parte deste trabalho, do ato puramente emulativo se chegou ao entendimento de que também seria abusivo o ato que não trouxesse nenhuma vantagem para o agente. No entanto, essa concepção, durante muito tempo, esteve marcada pelo individualismo, pela ideia de direitos absolutos, ressurgindo na jurisprudência francesa a discussão acerca do abuso de direito. Toda essa concepção do abuso de direito como algo absoluto, vinculado à intenção do agente (noção de culpa) teve forte influência no Código Civil brasileiro de 1916.
No entanto, atualmente, a concepção da relativização dos direitos e a discussão acerca dos seus limites, bem como a preocupação em se desenvolver conceitos científicos, de forma a acompanhar a evolução da sociedade (conceito dinâmico), abandonando-se o puro individualismo e privilegiando o coletivo, afirmando os interesses existenciais em predominância aos interesses patrimoniais, produziu uma intensa modificação no âmbito do direito privado, em especial, na figura do abuso de direito, que pode ser sentida no Código Civil de 2002.
No atual Código Civil brasileiro, a partir da técnica da cláusula geral prevista no art. 187, o abuso de direito é visto sob um prisma predominantemente objetivo e relativo, dando-se especial atenção aos princípios da boa-fé objetiva, da confiança e ao aspecto funcional do instituto (fins econômicos e sociais) como limites ao exercício dos direitos.
No que tange à interpretação e aplicação do art. 187 do atual diploma civil, deve-se partir dos valores previstos na Constituição, seguindo os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de reconhecer uma sociedade livre, justa e solidária, com a relatividade dos direitos, principalmente tendo em vista o aspecto da sua funcionalidade. Dentro da doutrina civilista, a partir dos fins pretendidos, é necessário que se reconheça uma supremacia dos interesses existenciais em relação aos interesses patrimoniais, utilizando-se os parâmetros oferecidos pelo art. 187 do Código Civil no caso concreto, mantendo-se presente a ideia de “retorno aos sentimentos”, de “resgate de valores”, de respeito ao pluralismo, às diferenças, de “não prejudicar o outro” através das atitudes de cada um, tendo presente que o homem é o centro do universo, mas que precisa aprender a viver e a conviver em sociedade.