INTRODUÇÃO
O presente artigo analisa criticamente a incidênica da tese da autovinculação do legislador ao “princípio da proibição do retrocesso social”, a partir da construção doutrinária e jurisprudencial comparada entre Brasil e Portugal.
Embora, para alguns, o princípio da proibição do retrocesso já tenha sido superado2, a prática jurisprudencial e a doutrina o mantêm vigente. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente a partir de 20113, passa a invocar esse efeito catraca dos direitos sociais como princípio implícito autovinculante do legislador, baseando-se fortemente na doutrina portuguesa, especialmente de Canotilho, e no Acórdão 39/1984 do Tribunal Constitucional de Portugal (TCP).
A questão liga-se à concepção de Estado Social e à sua conformação em cada Constituição.
Com efeito, é cediço que, com o desenvolvimento do Estado Social, a discricionariedade legislativa conheceu restrições inexistentes no Estado Liberal, provocadas pela adoção, por parte do poder constituinte originário, de normas de conteúdo programático ou dirigente, especialmente em matéria de prestações sociais, mediante as chamadas imposições ou ordens de legislar.
Tais imposições consistem em comandos dirigidos ao legislador para regulamentar normas constitucionais que apresentam uma estrutura diversa dos chamados “direitos fundamentais de primeira geração”, por indicarem tão somente um núcleo essencial do direito, cuja aplicabilidade depende da densificação desse conteúdo por parte do legislador, que, nesse mister, tem ampla discricionariedade.
Há situações, porém, em que o poder constituinte originário limitou tal liberdade legislativa, explícita ou implicitamente, justamente para proteger direitos considerados mais fundamentais da conveniência do jogo político democrático, em que, por questões de ordem social, política e econômica, muitas vezes a maioria representada se torna refém da minoria representante4.
Ditas imposições constitucionais geram dois efeitos: a) os poderes constituídos não podem eliminar ou reduzir o conteúdo essencial desses direitos; e b) o poder legislativo tem o dever de criar as condições necessárias para a efetivação desses direitos5.
Na primeira hipótese, haverá inconstitucionalidade por ação do ato estatal que violar o conteúdo essencial dos direitos ou restringi-los6.
No segundo caso, há que se distinguir a situação em que o legislador atuou, daquela em que se manteve inerte. Neste caso, haverá uma inconstitucionalidade por omissão, a ser resolvida de acordo com os instrumentos previstos em cada ordenamento jurídico, ao passo que naquela o dever de legislar é cumprido.
Resta saber se, uma vez executado tal dever, pode o legislador retroceder e, se sim, se deve observar algum limite. A par dos demais limites aos limites dos direitos fundamentais7, como a proteção da confiança, a igualdade e o respeito ao núcleo essencial, a proibição de retrocesso assume, para alguns, certa autonomia normativa, enquanto, para outros, tratar-se-ia de mera retórica8.
Assim, diante do mencionado objetivo, será analisada comparativamente a aplicação dessa teoria pela jurisprudência brasileira e portuguesa, verificando-se sua consistência dogmática à luz dos respectivos ordenamentos jurídicos e da própria concepção histórico-evolutiva dos institutos envolvidos.
A pesquisa se deu sob o influxo da linha de pesquisa dos direitos fundamentais, empregando-se os métodos zetético9 e dogmático, com aplicação, neste, da lógica silogística tradicional e, naquele, do método dialético, especialmente do critério histórico-conceitual, sempre que a vagueza e indeterminação dos preceitos o exijam.
1 CONCEITO DE PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL E SUA ORIGEM NO DIREITO COMPARADO
A teoria da proibição de retrocesso social, em sentido amplo, fundamenta-se na concepção de que o grau atingido de conquistas em direitos fundamentais não pode recuar. Num sentido mais estrito, ela diz respeito à eventual impossibilidade de o legislador regredir na concretização de direitos sociais10.
A doutrina utiliza vários termos para se referir a tal proibição, encontrando-se, dentre outros, os seguintes: vedação de retrocesso, irreversibilidade, não revisibilidade, não retorno e efeito catraca11, em português; em inglês, o termo standstill12, com o sentido de bloqueio, paralisação, muito usado na Bélgica, ou ratchet effect13, em francês, effet cliquet14 (efeito trava) ou cliquet anti-retour15 (trava anti-retorno), non-retour (não retorno)16, clause cliquet (cláusula catraca), clause plancher (cláusula chão)17, non-régression (não regressão)18; em espanhol, prohibición de regresividad o de retrocesso, ou no-regresividad19; em italiano, non regresso20 e, em alemão, nichtumkehrbarkeitstheorie21 ou rückschrittsverbot22.
A proibição de retrocesso social, embora seja sempre tratada sob o prisma dos direitos sociais, teve seu desenvolvimento na Alemanha ligado à proteção dos direitos de liberdade. Não obstante, sua formulação teórica original teria sido invocada na doutrina italiana para tratar da “vedação de geração de uma omissão inconstitucional”.
Com efeito, atribui-se o pioneirismo no emprego do princípio a Balladore Pallieri. Na sua obra Diritto Costituzionale23, o constitucionalista italiano, ao se deparar com as normas constitucionais não autoaplicáveis que veiculam imposições constitucionais24, afirma que elas
(…) produzem um efeito, ao menos indireto, notável. Elas prescrevem um caminho a ser seguido pela legislação ordinária; não obrigam o legislador a seguir esse caminho, mas o obriga a não seguir o caminho oposto. Seria mesmo inconstitucional a lei que dispusesse em contrário ao que a Constituição prescreve. Além disso, se por exemplo, em execução do art. 44º da Constituição, a reforma agrária atualmente em elaboração for regulamentada, poder-se-á, depois de emanada a lei, realizarem-se as oportunas modificações e retoques que se considerar necessárias, mas não se poderá voltar atrás, desnaturando ou anulando a reforma25.
O que Pallieri enuncia, na verdade, é a “proibição de gerar uma omissão inconstitucional”. Parte, assim, o jurista italiano, da pré-compreensão de que a não densificação normativa de uma norma programática, tal como a contida no art. 32 da Constituição italiana, que garante o direito fundamental à saúde e a gratuidade de atendimento aos indigentes, bem como de qualquer outra norma regulamentável, é inconstitucional. Tal inconstitucionalidade, no entanto, não geraria qualquer direito subjetivo aos destinatários da norma constitucional carecedora de densificação, e não criaria qualquer direito de ação ou meio de tutela para constranger o Estado a contretizá-la26.
Diversamente da concepção italiana, na Alemanha, a ideia de proibição do retrocesso não decorreu diretamente dos direitos sociais, destacando-se que a Lei Fundamental de Bona não traz um catálogo desses direitos27. Ali a ideia de retrocesso ou não reversibilidade foi ligada ao direito de propriedade e assim desenvolvida pelo BVerfG (Tribunal Federal Alemão).
O BVerfG, entendendo que o cidadão teria uma liberdade de exercer sua propriedade conquistada por direitos sociais, que não poderia ser frustrada pelo legislador, adotou o posicionamento de que o Estado não poderia restringir direitos que já tinham sido objeto de concretização, quando: a) na atribuição ao titular de posição jurídico-subjetiva de natureza pública, caracterizada por ser patrimonial, pessoal, própria e exclusiva do titular; b) à posição jurídica individual deve corresponder uma contraprestação pessoal relevante do titular; c) a prestação deve servir à garantia da existência de seu titular28.
Percebe-se que, na construção alemã, a proibição de retrocesso aproxima-se da ideia de proteção da confiança, tida como um instrumento oferecido pela ordem jurídica para garantir a segurança patrimonial do cidadão29.
Há que se frisar, contudo, que as peculiaridades do sistema alemão, especialmente o fato de que os direitos sociais ali não gozam de um status de direitos fundamentais, limitam a importação de seus fundamentos doutrinários e jurisprudenciais aos sistemas português30 e brasileiro31.
2 ANÁLISE CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL
A tese da proibição do retrocesso social não encontra consenso na doutrina32 e assenta-se especialmente na ideia de que tal princípio decorreria de um dever de progressividade dos direitos sociais, inerente à concepção de Estado Social e Democrático de Direito33, da dignidade da pessoa humana34, do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, da vinculatividade estatal às normas de direitos sociais, ou de uma vedação de criação de omissões inconstitucionais35.
A seguir, analisam-se individualmente cada um desses fundamentos.
2.1 O Dever de Progressividade dos Direitos Sociais
Parte da doutrina e jurisprudência entende que a existência de uma vedação de retrocesso decorreria de um dever de progressividade dos direitos sociais (efeito catraca). A ideia é a de que, assim como se dá na alegoria da catraca, uma vez que se a ultrapasse, não é mais possível retornar. No caso do legislador, uma vez cumprido o dever de legislar imposto constitucionalmente, para densificar o conteúdo de um direito fundamental, estaria ele impedido de retornar, quer para revogar totalmente, quer para diminuir o conteúdo densificado. Tal dever poderia ser expresso ou tácito.
A previsão de progressividade poderia se encontrar expressamente prevista na Constituição ou em normas internacionais. Nesse sentido, é importante destacar o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que, em diversos dos seus artigos, previa o compromisso dos Estados em assegurar, progressivamente, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no tratado36.
O segundo - e, talvez, mais discutível - é a concepção de existência de um dever tácito de progressividade inerente ao Estado Social de Direito ou à concepção de dignidade da pessoa humana.
2.1.1 Dever de progressividade ínsito à conceção de Estado Social de Direito
Estado de Direito é um valor político, um conceito indeterminado, porém determinável, que encerra um ideal de Estado. Em decorrência, sua densificação axiológica e normativa é construída com o auxílio de ciências afins. No plano jurídico e sociológico, a expressão aparece como ideia-força, donde emergem formulações teóricas que pretendem conferir normatividade a valores morais e ideológicos que se acredite decorrer diretamente de sua concepção37.
Uma dessas formulações pretende extrair da ideia de Estado de Direito, especialmente de sua variante - o Estado Social de Direito - um princípio da máxima efetividade das normas de direitos fundamentais sociais, do que resultaria um dever de progressividade dos direitos sociais vinculante do legislador38.
Segundo uma das formas de compreensão do Estado Social de Direito, sua finalidade seria a de garantir a máxima efetividade dos direitos sociais, o que conduziria à noção de realização progressiva de tal categoria de direitos. A contrario sensu, seria vedada sua realização regressiva39.
Todavia, consistindo a liberdade de conformação do legislador um dos princípios estruturantes do mesmo Estado de Direito, qualquer limitação a esse princípio deve encontrar fundamento em uma previsão constitucional expressa ou em um princípio implícito, porém mediante um raciocínio lógico-jurídico inequívoco.
Nesse sentido, uma breve análise histórico-evolutiva do conceito de Estado de Direito parece infirmar qualquer pretensão de dedução de um princípio autônomo de progressividade dos direitos sociais vinculante do legislador40.
Há diversos elementos a se considerar. Em primeiro lugar, a ideia de progressividade deve ser interpretada de forma sistemática, à luz dos demais princípios constitucionais, como a proporcionalidade, a liberdade de conformação do legislador, bem como pelos limites impostos pela reserva do possível. Em segundo lugar, a própria concepção do que seja uma medida progressiva ou regressiva deve considerar pelo menos três aspectos: um, de caráter subjetivo; outro, de caráter sinalagmático; e, finalmente, um de caráter temporal.
O primeiro aspecto liga-se à própria avaliação individual ou de um grupo de interesse acerca da natureza da medida. A mesma medida pode ser considerada progressiva para uns e regressiva para outros. A flexibilização da legislação trabalhista pode ser considerada, para alguns, um regresso em termos de garantias sociais, por diminuir uma certa proteção aos trabalhadores. No entanto, para outro grupo, a mesma medida pode ser considerada um avanço, por considerar o aumento das contratações por prazo indeterminado, ou mesmo o aumento do emprego.
Uma medida legislativa também pode implicar um progresso social em um campo e, ao mesmo tempo, um regresso social em outro. É o que pode ocorrer, por exemplo, com a convergência de pensões entre os sistemas público e privado, feita mediante a diminuição das vantagens conferidas às pensões públicas, em atendimento ao princípio da igualdade entre os pensionistas de ambos os sistemas. Tal convergência pode ser feita, também, com a concessão de vantagens aos pensionistas de um sistema e a retirada de vantagens dos pensionistas do outro sistema, hipótese em que haverá um progresso para o primeiro grupo e um regresso para o segundo grupo.
Finalmente, o aspecto temporal evidencia que a natureza progressiva ou regressiva da medida pode apenas se verificar no longo prazo. É o que ocorre, especialmente, no campo econômico. Uma medida de contenção de despesas do Estado pode retirar direitos sociais num primeiro momento, para evitar uma maior constrição no futuro.
Assim, ainda quando o Estado estiver diretamente vinculado a uma cláusula expressa de compromisso de progressividade dos direitos sociais, todos esses aspectos devem ser objeto de uma ponderação que sopese os argumentos envolvidos e, diante de um conflito relevante de interesses, deve prevalecer a medida estatal, que já resultou do processo democrático de balanceamento dos interesses sociais em jogo. Apenas em casos discrepantes pode ter lugar uma intervenção judicial para aferição de eventual violação a uma cláusula de standstill41.
2.1.2 Dever de progressividade expresso ou implícito no texto constitucional
Diversa é a hipótese de o dever de progressividade estar implícita ou explicitamente prevista em texto constitucional ou normas internacionais vinculantes do legislador.
Nesse sentido, é importante destacar o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que, em diversos dos seus artigos, previa o compromisso dos Estados em assegurar, progressivamente, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no tratado42. Tal dever apresenta duas implicações: que os Estados tomarão medidas para viabilizar tais direitos e que não deverão tomar medidas regressivas43.
Esta também apresenta os mesmos reflexos nos ordenamentos português e brasileiro. Com efeito, em Portugal, em razão do disposto no art. 8º, n. 2, da CRP, a cláusula de progressividade dos direitos sociais deve ser observada como princípio infraconstitucional e supralegal que determina um standstill na máxima medida possível. Em decorrência, a concretização de um direito social pelo legislador gera-lhe uma autovinculação, atraindo-lhe o ônus de demonstrar o interesse público que justifica a medida44.
Alguns autores defendem, ainda, a existência de uma progressividade implícita na Carta Social Europeia e na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia45.
No caso brasileiro, a par do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, há que se ressaltar a previsão do art. 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos46. Diante de tais normas, duas situações seriam possíveis para o Estado brasileiro. A aprovação do tratado por maioria qualificada de três quintos na Câmara dos Deputados e no Senado, em dois turnos de votação, nos termos do art. 5º, § 3º, da CRFB, imprimiria ao referido Pacto status constitucional. Como sua aprovação, no entanto, não observou tais requisitos, o tratado adquire um status supralegal, porém infraconstitucional, tal como se dá em Portugal.
Há, ainda, quem encontre um dever de progressividade implícita em alguns dispositivos como o art. 3º, I e III47, art. 7º, caput48, e art. 170, caput e incs. VII e VIII da CRFB49.
2.1.3 Dever de progressividade como garantia da eficácia ou efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais
Outro argumento invocado é o de que o dever de progressividade seria uma decorrência natural da eficácia jurídica das normas constitucionais, as quais, ao serem objeto de concretização legal, não poderiam ser suprimidas pelo legislador, sob pena de retirar a própria eficácia constitucional50.
A referida tese funda-se na pré-compreensão de que a jusfundamentalidade das normas de direitos sociais e sua consequente força jurídica implicariam tal dever.
Não se nega - à evidência - que tais normas gozem de tais características. Mas a força jurídica vinculante de uma norma social depende de sua própria estrutura normativa51.
Com efeito, como reconhece Carlos Blanco de Morais, fundamentalidade e subjetividade são características diversas. Esta diz respeito ao nível de determinabilidade e efetividade da norma, ao passo que aquela deriva da previsão constitucional de um direito52.
Nesse sentido, a fundamentalidade da norma não lhe confere per si eficácia. Daí porque José Afonso da Silva classifica, no Brasil, como de eficácia limitada, aquelas normas cuja eficácia depende de conformação legislativa53.
Tal eficácia pode se encontrar condicionada pela ausência de dois elementos que, em virtude de sua natureza, só podem ser preenchidos pelo legislador: o elemento criativo e o elemento financeiro.
O elemento criativo repousa na positivação de uma decisão política legitimada democraticamente, que dará um conteúdo exigível por seu destinatário. A medida da eficácia dessa norma será diretamente proporcional ao direito criado. Já o elemento financeiro implica uma decisão política de alocação de recursos escassos. Embora todos os direitos - mesmo os de liberdade - envolvam custos54, o fato é que direitos prestacionais envolvem custos diretos, individualizáveis e maiores que os custos dos direitos de garantias, muitos dos quais são absorvidos pelos custos inerentes à manutenção do aparato estatal55.
Por outro lado, a efetividade de uma norma sem qualquer densificação constitucional, como a que simplesmente impõe ao legislador o dever de garantir a proteção à saúde, é obtida com a legislação. Esta pode conferir qualquer grau de efetividade ao direito e ser alterada de modo a equacionar, diante da dinâmica política, social e econômica, os elementos criativo e financeiro, sem qualquer comprometimento a uma efetividade de tal direito.
2.2 Direito Subjetivo à Ação Estatal
Outro fundamento utilizado pela doutrina é o de que as leis concretizadoras de direitos sociais não poderiam ser objeto de revogação ou alteração pelo legislador, pois as normas de direitos sociais seriam mandamentos constitucionais dirigidos ao Estado e, consequentemente, ao lhe determinarem a tomada de medidas como meios para se atingirem os fins previstos nas normas-programa, tais mandamentos imporiam deveres jurídicos objetivos de realizarem o fim (ou programa) contido em tais normas, mediante as medidas apropriadas56.
Canotilho, por sua vez, reconhece a possibilidade das normas de direitos sociais gerarem direitos subjetivos57 à reclamação judicial para manutenção do nível de realização do direito constitucional e proibição de qualquer “ tentativa de retrocesso social ”58. O autor é contrário à tese de total correlação entre dever-objetivo e direito-subjetivo proposto por Kelsen59. Nesse sentido, reconhece que
direito subjectivo social, economico e cultural - imposições legiferantes e prestações não devem confundir-se. O reconhecimento, por exemplo, do direito à saúde, é diferente da imposição constitucional que exige a criação do Serviço Nacional de Saúde, destinado a fornecer prestações existenciais imanentes àquele direito60.
Nessa mesma linha, Canotilho, analisando especificamente a CRP, a partir de uma pretensa interpretação teleológica do art. 3º da CRP e do art. 9º da CRP, reconhece que o referido dispositivo revelaria uma imposição constitucional de realização de uma democracia econômica, social e cultural61. Tal imposição constitucional geraria uma garantia institucional e um direito subjetivo62. Em decorrência, o autor desloca a tese da proibição do retrocesso para a segurança jurídica, ao limitar o retrocesso ao respeito aos direitos (subjetivos) adquiridos.
Não se nega por completo essa tese, mas a criação de direitos subjetivos a partir das normas de direitos sociais depende da satisfação de alguns requisitos.
Em primeiro lugar, só excepcionalmente pode-se admitir que as normas constitucionais de direitos sociais sejam convoladas em direitos subjetivos63. De fato, reclamando estes uma “determinabilidade normativa”, com objeto, destinatário e conteúdo delimitados, determinados ou determináveis, sua judicialização, característica dos direitos subjetivos, não é possível, porquanto normas de caráter programático, como as que preveem o direito à saúde, à educação e à habitação, dentre outras, não alcançam um grau suficiente para sua dedução em juízo64.
Além disso, como afirma Alexy, as normas de direitos fundamentais apresentam uma tríplice estrutura, envolvendo o titular do direito, o destinatário do direito e o objeto. As normas sociais implicariam, assim, direitos a prestações em sentido amplo, os quais possuiriam como espécie os direitos a prestações em sentido estrito, os direitos à proteção, à organização e ao procedimento65.
Os direitos subjetivos a uma reivindicação da ação estatal seriam possíveis nos termos do ordenamento jurídico-constitucional. Ocorre que em grande parte dos ordenamentos, como se dá no Brasil e em Portugal, não há um meio constitucionalmente previsto para compelir o legislador a fazê-lo. De qualquer modo, desde que respeitado o núcleo essencial do direito social, qualquer ação estatal que dê alguma efetividade ao direito social desconfigura a condição de inadimplência do legislador.
Finalmente, os fins da República Portuguesa previstos nos arts. 2º e 9º da CRP, de realização de uma democracia econômica, social e cultural, são princípios de conteúdo genérico que servem de parâmetros para orientação do legislador e de limitações contra a tentativa de adoção por parte do mesmo legislador ou do constituinte derivado de medidas contrárias a tais fins. Desse modo, não é possível deduzir de tais princípios uma imposição constitucional criadora de direitos subjetivos, como afirma Canotilho66.
2.3 Direito Subjetivo a Prestações Sociais
Já os direitos a uma prestação determinada só podem ser exercitados se presentes os três elementos essenciais já enunciados de acordo com Alexy, especialmente o destinatário e objeto determinado67. Ocorre que as normas de direitos sociais raramente determinam tais elementos, o que depende de uma densificação legislativa, sem a qual não há que se falar em direitos subjetivos.
Tais direitos prestacionais, ou de créditos dos indivíduos perante a coletividade, como prefere chamar Celso Lafer68, podem consistir, portanto, em direitos subjetivos a prestações sociais, na medida em que a lei preveja um direito líquido e certo a certa prestação estatal. É o caso, v.g., da lei que regulamenta os benefícios assistenciais. Uma vez determinado que todo cidadão, ao atingir certa idade ou tempo de serviço, fará jus à percepção de uma pensão mensal, tal prestação torna um direito subjetivo - porquanto possui um valor e natureza certa determinada e exigível do Estado. No caso, porém, de determinada lei instituir as bases gerais que devem informar determinada prestação social, sem definir seu quantum e requisitos para concessão, não há um direito subjetivo a tais prestações, mas igualmente um direito subjetivo de exigir uma ação estatal.
Ainda no primeiro caso, pode-se discutir se há um direito adquirido ao valor da pensão, como entende Jorge Reis Novais69 e o TCP70, mas isso não implica uma vedação ao retrocesso por parte do legislador fundado exclusivamente na conceção de que há um direito subjetivo à prestação e à manutenção do status quo.
Na mesma linha, Jorge Reis Novais argumenta que se os direitos de liberdade podem ser restringidos, também podem os direitos sociais, sobretudo porque neste caso deve-se observar a reserva do financeiramente possível71.
2.4 Vedação de Criação de uma Omissão Inconstitucional
Parte da doutrina apenas admite a tese da proibição do retrocesso social, tal como se verifica com os direitos de liberdade, se uma norma infraconstitucional concretizadora de uma imposição constitucional de legislar for revogada, sem ser substituída por outra72.
Também com algum dissenso, reconhece a doutrina que tal vedação ocorrerá se houver revogação sem substituição da concretização legal, quando: a) for violada a dignidade da pessoa humana; b) violar os princípios da proteção da confiança, da igualdade, da proibição do arbítrio e da razoabilidade; c) as concretizações deverem ser consideradas materialmente constitucionais73; e, ou, d) afetarem o conteúdo essencial do direito74.
2.4.1 Revogação violadora da dignidade da pessoa humana
Alguns autores reconhecem que a revogação de uma lei concretizadora de um direito social será inconstitucional se violar a dignidade da pessoa humana75.
Essa tese esbarra na dificuldade de densificação de um princípio da dignidade da pessoa humana. Não se nega a importância do conceito76, tampouco que o termo reflete todas as aspirações representadas especialmente pelos filósofos políticos a partir do século XVII, muitas das quais consagradas nas declarações de direitos77, mas o fato é que tal princípio apenas pode ser invocado de modo autônomo se houver um consenso radicado na consciência geral acerca de seu conteúdo, e não apenas mediante uma formulação retórica doutrinária ou jurisprudencial, sob pena de banalização do princípio, como advertiu o STF:
Creio ser indispensável enaltecer a circunstância da desnecessidade da invocação da dignidade humana como fundamento decisório da causa. Tenho refletido bastante sobre essa questão, e considero haver certo abuso retórico em sua invocação nas decisões pretorianas, o que influencia certa doutrina, especialmente de Direito Privado, transformando a conspícua dignidade humana, esse conceito tão tributário das Encíclicas papais e do Concílio Vaticano II, em verdadeira panacéia de todos os males. Dito de outro modo, se para tudo se há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para nada servirá. (...)78.
Assim, o conceito de dignidade da pessoa humana só pode ser utilizado autonomamente contra o legislador, fora das demais garantias e direitos fundamentais expressamente previstas que lhe delimitam um conteúdo de acordo com a ordem jurídico-constitucional, se mediante uma argumentação lógico-jurídica, for demonstrado de modo inequívoco que certo conteúdo inerente a tal princípio se encontra implícito no texto constitucional.
Na ordem constitucional brasileira, assim como na portuguesa, o princípio da dignidade humana não possui um conteúdo autônomo; seu conteúdo encontra-se delimitado pelas demais normas constitucionalmente previstas, que aclaram seu conteúdo. Nesse sentido, a autonomização do princípio na Lei Fundamental de Bona e as soluções jurisprudenciais e doutrinárias adotadas devem ser interpretadas e recepcionadas com ressalva na ordem jurídica constitucional brasileira e portuguesa.
2.4.2 Observância dos princípios da proteção da confiança, da igualdade, da proibição do arbítrio e da razoabilidade
Outros autores, porém, defendem a vedação do retrocesso social, sem recorrem à estrutura das normas de direitos sociais, mas ao fundamento de vedação de arbitrariedade legislativa, ou de afetação a outros princípios constitucionais, como o da igualdade, da proibição do arbítrio e da razoabilidade. Nesse sentido, a supressão de medidas legislativas concretizadoras de direitos sociais deveria se submeter a um teste de proporcionalidade79.
Segundo Vieira de Andrade, as normas de direitos sociais implicam uma “certa garantia de estabilidade das situações ou posições jurídicas criadas pelo legislador ao concretizar as normas respectivas”. Tal garantia pode assumir três graus: um grau mínimo, que impede que simplesmente sejam destruídas tais posições; um grau máximo, quando tais garantias possam ser consideradas materialmente constitucionais e um grau médio, que exige a observância do princípio da proteção da confiança e vedação do arbítrio legislativo80.
A referida tese, no entanto, ao fazer depender o princípio da proibição do retrocesso de outros princípios constitucionais, infirma, a contrario sensu, sua autonomia normativa, transformando o termo em vocábulo retórico que serve para indicar uma situação específica de aplicação daqueles princípios81.
2.4.3 Afetação do conteúdo essencial do direito
Finalmente, outro fundamento bastante utilizado é o de que a revogação de lei concretizadora de um direito social apenas seria possível se não diminuísse o núcleo essencial dos direitos82.
O mesmo faz Canotilho, que reconhece a “anulação, revogação ou aniquilação pura e simples” do núcleo essencial do direito social como limite à liberdade de conformação do legislador83.
Embora o TC, por exemplo, faça referências ao núcleo essencial, na esteira da linha teórica proposta por Vieira de Andrade84, não define o que seria esse núcleo essencial85.
Alegam alguns autores que nem sempre é possível aferir um conteúdo essencial de tais direitos86. Isso não obsta que se avalie, em cada caso, se o conteúdo essencial é ou não preservado. Nesse ponto, abstrações teóricas podem dificultar a compreensão do fenômeno. O fato é que, diante de casos concretos como pensões, remunerações, matrículas em universidades, escolas e creches, é muito mais fácil avaliar a preservação ou não de um conteúdo essencial, que em formulações com pretensões de universalidade.
Também não parece, como defende Felipe Derbli, que a proteção do conteúdo essencial de um direito social não possa ser objeto de proteção pelo princípio da proibição do retrocesso, ao fundamento de que outros princípios podem atuar em sua defesa87. A concorrência de normas não é argumento para se desconsiderar a aplicação de uma delas, até mesmo porque decorrem de fundamentos diversos que não se excluem, mas se somam.
2.4.4 Natureza constitucional da lei concretizadora de direitos sociais
Segundo Jorge Miranda, a revogação de uma lei que concretiza uma imposição constitucional pode implicar uma inconstitucionalidade material88. O fundamento da sua tese é a aquisição de uma certa força constitucional por tais leis devido à unidade sistemática que integram89.
Rui Medeiros também admite a possibilidade de direitos sociais concretizados pelo legislador integrarem o bloco de fundamentalidade constitucional e, em decorrência, não poderem ser modificados pelo legislador90.
José Carlos Vieira de Andrade, porém, é contrário. Este autor chama à atenção duas contradições que decorreriam da adoção dessa tese. Em primeiro lugar, se for conferida aos direitos sociais tal força, esta poderá ser mais forte que a dos próprios direitos de liberdade, que igualmente comportam restrição, desde que respeitado seu conteúdo essencial. Em segundo lugar, tal vinculação do legislador corresponderia a dar-lhe inicialmente poderes constituintes, para depois retirar sua própria liberdade de conformação91. Ou seja, segundo essa tese, o legislador seria um Poder de uma única oportunidade, comparável a um atirador que dispõe de apenas uma bala: se não acertar o alvo (equacionar o direito social à realidade do financeiramente possível e relativamente aos demais direitos sociais) com aquela única bala (lei concretizadora), não poderia voltar atrás (efeito catraca).
Com efeito, a par das contradições apontadas por Vieira de Andrade, a única forma de se aceitar a tese da constitucionalização do direito criado pelo legislador seria pressupor uma mutação constitucional provocada pela densificação legislativa.
2.4.5 Mutação constitucional provocada pela concretização de direitos sociais
Canotilho sustenta a possibilidade de as normas que concretizam direitos sociais adquirirem força constitucional, por um processo de mutação, provocado pela existência de um “consenso básico presente na consciência jurídica geral”, limitando, assim, a edição de leis que violem imposições ou programa constitucional92.
Tal entendimento foi seguido pelo juiz do Tribunal Constitucional Messias Bento, em declaração de voto no Acórdão 39/1984, segundo o qual tal concretização material já radique na “ consciência jurídica dominante, formando-se uma espécie de communis opinio a respeito da sua essencialidade ”93.
Também Cristina Queiroz e Vieira de Andrade aceitam a tese da mutação constitucional. Ambos, porém, divergem quanto às condições para que tal mutação se verifique. Para Cristina Queiroz, não é a lei que gera a mutação, mas sua atuação94. Já, para Vieira de Andrade, a constitucionalização da concretização legislativa deve ocorrer excepcionalmente, desde que haja um “consenso profundo e alargado construído ao longo do tempo” e se limite a aspectos gerais da concretização, não a todos os pormenores95.
Jorge Reis Novais acrescenta, ainda, que a consagração constitucional de um direito fundamental não pode ser apartada da concretização legislativa, como se a norma de direito fundamental fosse apenas o que o enunciado constitucional diz, e não a norma que se extrai a partir da interpretação do texto constitucional pelo enunciado contido na lei concretizadora96.
Com efeito, tal teoria não encontra suporte no direito constitucional português, que se funda, como em grande parte dos demais Estados Democráticos de Direito numa permanente possibilidade de revisão das escolhas legislativas. Daí porque é inerente a esse regime a alternância no Poder. No mesmo sentido, há que destacar a declaração de voto de Messias Bento, para quem
a Lei Fundamental (…) não se pode confundir com um mero programa de governo; há-de ser antes - e sempre - um quadro nor mativo, aberto à criatividade e à inventiva do poder democrático. Há-de permitir a este que - empenhado na criação de condições de justiça social, capazes de possibilitar a cada homem uma cada vez mais completa realização da sua personalidade - rasgue caminhos vários que cada um, atento às exigências do bem comum, possa livremente percorrer em busca do seu próprio modelo de bem-estar97.
Também não parece que seja possível falar em constitucionalização do direito social densificado por lei, em virtude de uma mutação constitucional presumida98.
Ora, a mutação constitucional se refere à alteração de sentido da Constituição, sem modificação do seu texto escrito99. A densificação de normas constitucionais não pode se confundir com esse processo. Uma mutação constitucional só se torna possível, porque a norma não se confunde com o texto da constituição. Ela é a interpretação do texto de acordo com a realidade100. As hipóteses de densificação do texto são acréscimos pretendidos por um legislador democrático, em determinada conjuntura política e econômica. A realidade que condiciona uma mutação constitucional deve ser tida por inevitável. Assim pode se dar com a interpretação do casamento, diante da aceitação da união entre pessoas do mesmo sexo, do adultério, do termo livro (impresso) diante do surgimento dos livros eletrônicos, entre outros. Em tais casos, a modificação de sentido da norma se deve a uma alteração de sentido da própria realidade, não a uma intervenção do legislador. Já no caso de uma norma que prevê o direito a uma pensão de cinco mil euros, após trinta e cinco anos de trabalho, ou o direito de se matricular no curso de Direito das Universidades Públicas, após o devido processo seletivo, sem o pagamento de propinas, não se pode aceitar que se está diante de uma mutação constitucional. Assim, nem nos termos mais rígidos admitido por Vieira de Andrade, como a verificação de “consenso profundo e alargado construído ao longo do tempo”, poderia se falar em uma mutação constitucional propriamente dita101. Para Bockenförde, tal “constitucionalização” tratar-se-ia de uma interpretação evolutiva por parte do poder jurisdicional, muito assemelhada a uma mutação constitucional102. No entanto, ela mais se assemelharia a uma sentença intermédia103, decorrente de manifestação ativista por parte do Poder Judiciário104.
Não obstante, como garantia institucional, a omissão do legislador pode dar ensejo a uma declaração de omissão. Tal declaração, se por um lado não tem o condão de autorizar o judiciário a suprir a omissão normativa do legislador, tal como ocorre com o mandado de injunção, segundo a prática recente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, declara um estado inconstitucional que vincula negativamente o legislador. Em decorrência, não pode o legislador, por qualquer ato, em especial um ato revocatório, incorrer em tal inconstitucionalidade.
3 CONCLUSÃO
A ideia de que um dever de progressividade dos atos estatais em matéria de direitos sociais decorreria da dignidade da pessoa humana ou da noção histórico-conceitual do Estado Social ou do Estado de Direito parte de duas pré-compreensões. A primeira é a de que seria possível encontrar racionalmente um conteúdo jurídico de tais conceitos. A segunda é a de que o legislador existe para garantir cada vez mais prestações sociais. É a figura do legislador-amigo de que fala Haberle105.
Fora dos argumentos neoconstitucionais e de manifestações ativistas, porém, não é possível deduzir tal dever da concepção de Estado de Direito, de Estado Social, de dignidade da pessoa humana, pois o caráter aberto, dinâmico e relativo de tais conceitos reclamam, para seu emprego, uma legitimação democrática, que pode ser obtida de dois modos: socialmente, quando houver um consenso mínimo radicado na sociedade acerca das características antropológicas, sociais, morais e históricas mínimas em torno de seu conteúdo, ou legalmente, quando o legislador define tal conteúdo106.
Nesse sentido, as teses que defendem um princípio geral de proibição do retrocesso social a partir dessas concepções carecem de fundamento jurídico plausível, esbarrando em duas limitações que decorrem do mesmo princípio do Estado de Direito da qual pretendem extrair tais teses.
A primeira delas reside na reserva do financeiramente possível, considerando que os direitos têm custos e sua proteção implica a diminuição de outros direitos107. A segunda diz respeito ao próprio princípio democrático. De fato, a cláusula democrática implica alternância de poder e tal regime só faz sentido se aqueles que alternam o poder podem ter visões diferentes sobre a alocação de recursos108. O Estado contemporâneo prescinde cada vez mais de decisões políticas fundamentais, consistindo a boa governança na arte de distribuir os recursos de modo a otimizar o bem-estar social.
Tanto o sistema jurídico português, quanto o sistema jurídico brasileiro não referendam tal teoria. No entanto, um dever de progressividade em ambos os ordenamentos decorre expressa ou implicitamente de previsões contidas em suas Constituições ou Tratados ou Convenções de que sejam signatários, especialmente o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que vincula ambos.
Não houvesse esse dever de progressividade, a revogação de tais direitos poderia encontrar limites em outros princípios constitucionais, mas não em um princípio de não retrocesso.
Tal dever de progressividade, porém, não pode ser considerado uma regra que se imponha de modo tudo-ou-nada, a qualquer custo, indicando, antes, um princípio que deverá ser cotejado com outros princípios constitucionais, no caso de conflitos, especialmente o da proibição do excesso e o da segurança jurídica.
Os direitos subjetivos a uma reivindicação da ação estatal seriam possíveis nos termos do ordenamento jurídico-constitucional. Ocorre que em grande parte dos ordenamentos, como se dá no Brasil e em Portugal, não há um meio constitucionalmente previsto para compelir o legislador a fazê-lo. De qualquer modo, desde que respeitado o núcleo essencial do direito social, qualquer ação estatal que dê alguma efetividade ao direito social desconfigura a condição de inadimplência do legislador.
Por outro lado, há que se reconhecer que, uma vez cumprida a imposição constitucional de legislar a fim de garantir a efetividade de um direito social, a omissão inconstitucional que veio a ser suprida com essa lei não pode ser restabelecida109. O fundamento, porém, não é a mutação constitucional, mas o fato de que criar uma omissão é um ato inconstitucional, o que é vedado implicitamente em qualquer ordenamento. Se a omissão inconstitucional não pode ser suprida sem o exercício de um poder legislativo (pois, ainda que se admitam sentenças aditivas, tais sentenças consistirão em manifesto ato legislativo editado pelo Poder Judiciário), uma vez que dependem de ato criativo, o ato que cria a omissão inconstitucional pode ser infirmado, porquanto a atividade criadora não constitui mais um óbice, e todos os elementos caracterizadores da norma estão presentes.
Isso não quer dizer, por outro lado, que a concretização não possa ser modificada. O que não pode ocorrer é uma regulamentação que elimine o núcleo do direito concretizado.
A abertura de uma omissão constitucional, porém, pressupõe que a referida omissão possa ser objeto de um controle de constitucionalidade110.
Ademais, a vedação de retrocesso imposta ao legislador não decorre de todas as normas concretizadoras de direitos fundamentais, mas apenas de normas que possam ser consideradas jusfundamentais111.
A jusfundamentalidade da norma, por sua vez, requer a verificação de dois pressupostos: a existência de uma cláusula constitucional aberta que abrigue a referida norma e a sua materialidade constitucional112.
A materialidade constitucional deve ser entendida como uma equivalência estrutural às demais normas de direitos fundamentais constitucionalmente previstas, embora alguns entendam que a norma deva ser considerada fundamental em outro plano, como que para a “consciência jurídica coletiva”113.