1 INTRODUÇÃO
Este artigo é um estudo da relação estabelecida entre o Poder Público e o setor sem fins lucrativos ligado à realização de serviços públicos, cujo objetivo é mostrar que a transferência de serviços sociais básicos (saúde e educação) a entidades não estatais fragiliza o Estado Social e que política dessa natureza caminha em sentido oposto à concretização da Constituição de 1988 e ao desenvolvimento do país. Para tanto, aborda: a ordem social constitucional de 1988 e o Estado Social como instrumento do desenvolvimento; o crescimento vertiginoso das organizações sociais e das parcerias firmadas com o poder público a partir da década de 90 do século XX; a administração burocrática, sua eficiência e a implementação desse modelo no Brasil; as relações do poder público com o setor sem fins lucrativos, a legislação brasileira correlata e a natureza dessa política.
Face ao novo modelo organizacional de Estado instituído no país com a introdução da reforma gerencial do Estado brasileiro, iniciada pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), que existiu entre 1995 e 1998, a subsidiariedade na prestação de serviços sociais por entidades do setor sem fins lucrativos foi substituída pela prioridade. A partir de então, iniciou-se a redução do aparelho do Estado. A política pública implementada prega a substituição da administração burocrática pela administração gerencial e está amparada em dois pilares: na desconfiança do serviço público burocrático e na eficiência do serviço realizado por entidades privadas do setor sem fins lucrativos.
A estrutura do trabalho se articula em torno do seguinte problema: a desburocratização dos serviços sociais básicos (saúde e educação) por meio da transferência dessas atividades de titularidade do Poder Público para o setor sem fins lucrativos é medida necessária para buscar a eficiência no serviço público, além de ser uma política voltada ao desenvolvimento adequada para sair da crise, e conforma-se ao Estado Social, configuração assumida pelo Estado brasileiro na Constituição Federal de 1988? Formulam-se como hipótese primeira: a administração burocrática é capaz de prestar serviços públicos eficientes; segunda, a política de desburocratização não está voltada ao desenvolvimento; terceira, a política de desburocratização dos serviços de saúde e de educação fragiliza o Estado Social; quarta, a desburocratização do serviço público em áreas sensíveis à população não é uma política adequada para sair da crise; quinta, a desburocratização do serviço público atende interesses outros que não se conformam com os estabelecidos na ordem social de 1988.
Adotou-se a vertente jurídico-sociológica, porque foram analisados o Direito e as relações contraditórias que ele mantém com o campo sociopolítico e econômico. A legislação analisada - uma vez contrastada com os conceitos de burocracia e de desenvolvimento, aliados à instrumentalidade do Estado Social para sair da crise e somados ao crescimento vertiginoso do setor sem fins lucrativos no Brasil - revela a natureza da política pública implementada e a direção tomada pelo Estado brasileiro. O método de trabalho é o dedutivo, e a investigação do tipo jurídico-descritivo realizada foi eminentemente teórica, baseada na doutrina e na legislação, tendo como referencial teórico a teoria da burocracia de Max Weber, o conceito de desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen e a introdução do Estado Social como instrumento frente à austeridade e garantia para sair da crise de André Barata.
2 A ORDEM SOCIAL CONSTITUCIONAL DE 1988, O DESENVOLVIMENTO E O ESTADO SOCIAL
A Constituição de 1988, em seu art. 6º, estabeleceu como direitos sociais a educação, a saúde e a previdência social. Para tanto, incumbiu ao Poder Público a prestação de serviços de saúde, educação, previdência social e assistência social (CF, arts. 194, 196, 201, 203, 205), visando à redução das desigualdades sociais e regionais, à promoção do bem-estar de todos e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I, III e IV).
A ordem social tem como primado o trabalho e como objetivos o bem-estar e a justiça social e compreende, dentre outros, a educação e a seguridade social, dos quais advêm os serviços de saúde, previdência e assistência social. São princípios da seguridade social: a universalidade da cobertura e do atendimento; a igualdade ou equivalência de benefícios; a unidade de organização pelo Poder Público; e a solidariedade financeira (CF, arts. 194, parágrafo único, incs. I, II; 195, caput). São princípios da educação: a igualdade de condições para acesso e permanência na escola; a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; a valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira; a gestão democrática do ensino, nos termos da lei; a garantia do padrão de qualidade; e o estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação (CF, art. 206, incs. I a VIII).
A realização dos direitos sociais é dever do Estado brasileiro estabelecido na Constituição. O desenvolvimento constitui objetivo do Estado brasileiro (CF, art. 3º, II) e, para alcançá-lo, é necessário que o Estado promova serviços sociais, tais como saúde, educação, segurança protetora e proteção social. Esses serviços são primordiais para um país alcançar o desenvolvimento, porque capacitam as pessoas e proporcionam oportunidades. É essencial que eles sejam prestados pelo Estado, uma vez que recaem sobre áreas sensíveis, foram garantidos à população e retratam o compromisso constitucional do Estado brasileiro de implementar o Estado Social.
A finalidade do desenvolvimento é expandir as liberdades substantivas e incrementar a qualidade de vida da população e tem como instrumento as disposições econômicas, sociais e os direitos civis (SEN, 2017). A elevação do PIB, o aumento da renda das pessoas, a modernização social e o avanço tecnológico contribuem para o desenvolvimento, mas ele não pode ser mensurado tendo como base esses fatores, porque a riqueza e os outros elementos são apenas meios para alcançar o bem-estar. É evidente que tais fatores são importantes, mas não podem ser considerados como a finalidade do desenvolvimento.
O crescimento econômico aliado aos dispositivos sociais (serviços de saúde e de educação), direitos civis e liberdade política são essenciais e necessários para atingir o desenvolvimento (SEN, 2017). O êxito de uma sociedade está visceralmente relacionado com o bem-estar social, porque se concretiza com o aumento da qualidade de vida e expansão das liberdades substantivas da população. Serviços públicos de saúde e de educação são fundamentais porque capacitam as pessoas e proporcionam oportunidades. Portanto, dispositivos sociais (serviços de saúde e educação) são armas do Estado para alcançar o desenvolvimento.
Um Estado Social, cujo pilar é a proteção das pessoas, importa-se com o indivíduo e, portanto, investe na capacitação dele. Como corolário de política dessa natureza, tem-se a expansão do horizonte do indivíduo, que, além de se tornar capaz, ganha espaço no comércio e na produção.
O Estado Social deve existir sobretudo em momentos de crise, quando se deve investir ainda mais em dispositivos sociais (saúde, educação, segurança protetora). Não se pode cortar gastos sociais em momentos de crise, uma vez que nessas ocasiões aumentam a necessidade e a importância de o Estado investir em setores dessa natureza; as liberdades proporcionadas pelos dispositivos sociais são instrumentos e garantias para alcançar o desenvolvimento. Por isso, Barata e Carmo (2014, p. 21) afirmam que: “O Estado Social não é gordura, é músculo!” .
A aparente contradição entre os princípios constantes do art. 170 da Constituição Federal é observada por Edimur Ferreira de Faria (2015, p. 560): “Alguns dispositivos garantem a propriedade e a livre concorrência, portanto, a plena liberdade na atividade econômica. Outros, entretanto, exteriorizam a vontade do Estado de proteger e de defender as camadas sociais menos favorecidas contra abusos do domínio econômico”. Esse suposto paradoxo trata-se, na verdade, de sapiência do legislador constituinte, que compreendeu a importância do fortalecimento do mercado interno para atingir o desenvolvimento da nação.
Países pobres ou em desenvolvimento são os que mais necessitam de investimentos estatais em dispositivos sociais. Em Portugal, por exemplo, em momento de crise, foi adotado o Estado Social programático, para garantir um futuro digno à nação e ao povo, afirmando seu compromisso com a democracia. E foi pela ação desse regime que o Estado português se desenvolveu, removendo o atraso social, econômico e humano (BARATA; CARMO, 2014). Políticas sociais dessa natureza também foram responsáveis pela promoção do “milagre” dos Tigres Asiáticos.
A concretização do compromisso do Estado brasileiro com os serviços sociais é fundamental ao desenvolvimento e lhe é uma missão imposta constitucionalmente. É quimérico o desenvolvimento de um país sem investimentos nas áreas sociais, porque estas são essenciais à progressão do ser humano. O indivíduo, que retrata um dos elementos de caracterização do Estado (a população), constitui a essência de um Estado Democrático. Na Constituição de 1988, a República Federativa do Brasil se constituiu em um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput). Em vista disso está a importância dada ao elemento humano no texto constitucional.
3 O TERCEIRO SETOR E A SUA RELAÇÃO COM O PODER PÚBLICO
As organizações sociais que compõem o terceiro setor estão presentes no país desde o Brasil colônia (FRANCO, 2014). O papel dessas entidades, a fonte de seu financiamento, o campo de sua atuação e suas relações com o Estado e com o governo modificaram-se, diversificaram-se e graduaram-se ao longo da história das organizações sociais no mundo e no país, e podem ser analisadas no âmbito de quatro dimensões de acordo com o regime político e/ou com o sistema de governo ou com a política pública adotada: a primeira, de natureza filantrópica; a segunda, de natureza política; a terceira, de natureza cooperativa; a quarta, de natureza econômica (ALBUQUERQUE, 2006, p. 22-23).
As Santas Casas de Misericórdia deram início ao segmento das organizações sociais, instalando a primeira em Olinda (PE), em 1539-1545, e, posteriormente, expandiram-se para outras cidades do território que viria a se tornar o Estado brasileiro (FRANCO, 2014). Suas ações eram de cunho religioso, caritativo e filantrópico. Com a queda do Império do Brasil, o surgimento do regime republicano em 1889 e do Estado laico e consequente separação da Igreja e do Estado, as Santas Casas tornaram-se as precursoras no setor, constituindo-se em entidades privadas sem fins lucrativos (ALBUQUERQUE, 2006, p. 34). A liberdade religiosa garantida na Constituição de 1891 proporcionou o surgimento de outras instituições religiosas - não católicas: de matrizes protestante, espírita e africana - voltadas ao mesmo campo e forma de atuação, que desenvolveram e também contribuíram para a formatação e estruturação do terceiro setor no país (ALBUQUERQUE, 2006).
Em um segundo momento, durante o regime militar, surgem, no âmbito da sociedade civil, organizações voltadas a se oporem ao regime autoritário da época, empenhando-se pela redemocratização do Brasil (ALBUQUERQUE, 2006, p. 23). Nas décadas de 60 e 70 do século XX, essas organizações, assim como as existentes na América Latina, recebiam financiamento internacional de agências voltadas ao desenvolvimento das Organizações das Nações Unidas, as quais, na década seguinte, têm suas ações voltadas às iniciativas da África e do Leste Europeu (ALBUQUERQUE, 2006, p. 26). Daí a expressiva natureza política dessas organizações frente ao poder político dominante na época.
Com a promulgação da Constituição de 1988, foi dado às entidades privadas sem fins lucrativos um papel cooperativo com o Estado brasileiro, propiciando suas participações de forma complementar com o Sistema Único de Saúde (SUS) e das escolas públicas. Naquele, suas atuações são legitimadas mediante contrato de direito público ou convênio (CF, art. 199, § 1º); nas escolas públicas, possibilita-se de forma subsidiária a atuação das escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas (CF, art. 213).
A quarta dimensão do papel das organizações sociais no Brasil foi introduzida com a reforma gerencial do Estado brasileiro, com a publicação do Plano Diretor de Reforma de 1995 (ALBUQUERQUE, 2006). Nessa concepção, a Administração Pública deixa a postura centralizadora existente no Estado Social, liberando-se da prestação de serviços públicos ligados a inúmeras atividades, inclusive de saúde e de educação, colocando-as nas mãos de entidades privadas do setor não estatal. As entidades privadas sem fins lucrativos passam a agir como longa manus do Poder Público. Os serviços públicos essenciais, que compete ao Estado executar, passam a ser transferidos para as entidades privadas sem fins lucrativos, nesse momento denominadas organizações sociais. O Estado provedor desloca-se para o Poder Público gerencial. Nesse novo modelo de Estado, são tendências as parcerias, fomento, colaboração, gestão, desburocratização e Administração Pública gerencial.
A subsidiariedade outrora existente na prestação de serviços públicos pelo setor beneficente e/ou sem fins lucrativos cessa e, agora, com o novo plano do governo, é tratada como ação prioritária, para dar início à transferência de todos os serviços sociais ao setor sem fins lucrativos, por não serem atividades não exclusivas do Poder Público. A Administração burocrática dá lugar à Administração gerencial, que está voltada à modificação da estrutura organizacional do aparelho do Estado através da criação de novos formatos organizacionais, como as agências executivas, regulatórias e as organizações sociais.
Assim, inicia-se no Brasil o processo de enxugamento do aparelho estatal, da fragilização do Estado Social e do fortalecimento do setor não lucrativo promovido por política neoliberal.
3.1 O Crescimento Vertiginoso das Organizações e das Parcerias Firmadas com o Poder Público
A promoção do setor sem fins lucrativos pelo Estado, por meio de migração de recursos públicos, surge diante da somatização da crise de Estado, do discurso da inviabilidade do Estado em desempenhar eficazmente, de forma direta, os serviços sociais assumidos constitucionalmente e do Consenso de Washington, que preconizou que a solução para os problemas dos países desenvolvidos e em desenvolvimento dar-se-ia por meio de fomento ao mercado privado.
O crescimento vertiginoso do setor não estatal e das parcerias firmadas entre as entidades privadas sem fins lucrativos e o Poder Público no Brasil, voltadas à prestação de serviços essenciais, podem ser aferidos por levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2017), fundação pública federal vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, no ano de 2017.
Existem 820.455 organizações da sociedade civil no Brasil, distribuídas nas cinco regiões do país (IPEA, 2017). A quase totalidade delas possuem natureza jurídica de associações privadas, seguidas de organizações religiosas, fundações privadas e organizações sociais (IPEA, 2017).
São milhares de novas parcerias firmadas com o poder público todos os anos, sendo que em 2016 foram 16.086 parcerias (IPEA, 2017). As verbas repassadas pelo poder público ao terceiro setor superam a cifra de bilhões todos os anos, de acordo com informações colhidas dos Ministérios da Cultura, do Esporte, da Fazenda, da Ciência, do Trabalho e do Planejamento, sendo que, no ano de 2013, foram transferidos efetivamente às organizações o valor de R$ 8.738.240.049,30, para executarem serviços públicos (IPEA, 2017).
Os repasses são para atender setores de direitos básicos do cidadão, com a produção de bens e serviços públicos, tais como educação; saúde e serviço social; arte, cultura, esporte e recreação; pesquisa e desenvolvimento científico; defesa da seguridade social; atividade dos serviços de tecnologia da informação e outros (IPEA, 2017). Em 2014, no Brasil, existiam milhares de organizações da sociedade civil com títulos ou certificações: 7.124 OSCIPs (Organização da Sociedade Civil de Utilidade Pública), 3.894 CEBAS/MDS (Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social/Ministério de Desenvolvimento Social), 377 CEBAS/MS (Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social na área da Saúde) e 5 CEBAS/MEC (Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social na área da Educação) (IPEA, 2017). No Estado de Minas Gerais, existem 46.045 organizações da sociedade civil, segundo levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada no ano de 2017 (IPEA, 2017).
3.2 Serviços Públicos Essenciais e Úteis
Serviços públicos são aqueles prestados pela Administração Pública com a finalidade de atender aos interesses básicos da coletividade. Edimur Ferreira de Faria (2015, p. 385) ensina que os serviços públicos: “(...) podem ser essenciais e, portanto, indispensáveis; ou não essenciais, mas úteis à comunidade, denominados serviços de utilidade pública”. Logo a seguir, continua o autor: “Da primeira categoria são os serviços prestados pelo Estado, diretamente, em razão da sua importância no contexto social”, exemplificando entre outros o serviço de saúde. “Os outros serviços, embora não essenciais, são reconhecidos como úteis ou necessários à sociedade. Por isso, devem ser prestados pela Administração, direta ou indiretamente, ou por terceiros mediante delegação” (FARIA, 2015, p. 385). Logo, conclui-se que, entre os serviços essenciais, existem aqueles que são exclusivos (defesa nacional, segurança interna) e não exclusivos do Estado e que, devido à sua natureza de essenciais (saúde e educação), devem ser prestados diretamente pelo Poder Público.
Os serviços públicos podem ser prestados de três formas: diretamente pelo Estado; por intermédio de empresas estatais e por intermédio de empresas particulares, mediante ajuste próprio (FARIA, 2015, p. 388). Explica o autor que os serviços prestados diretamente pelo Estado referem-se aos serviços “tidos como indelegáveis (…) e outros que, embora delegáveis, ele prefere executar sem a participação de outro ente” (FARIA, 2015, p. 388). Explica também que as entidades que prestam serviços por delegação são as entidades de direito público e de direito privado pertencentes à Administração Indireta, assim como as empresas particulares que prestam serviços sujeitos ao regime de concessão e permissão (FARIA, 2015). Além dessas, o ilustre autor lembra que o terceiro setor, por meio de parceria, colabora com o Poder Público na realização de serviços que devem ser prestados pelo Estado brasileiro.
É fato que os serviços sociais de educação e de saúde não são exclusivos e que sua realização é compromisso assumido pelo Estado brasileiro, que tem o dever de prestá-los de forma gratuita a toda a população. Muito embora os serviços sociais sejam também livres à atuação da iniciativa privada, o Poder Público tem a obrigação de prestá-los, de forma contínua, eficiente e igualitária. O Estado brasileiro também se comprometeu a alcançar o desenvolvimento nacional. A expansão dos dispositivos sociais (saúde e educação) é instrumento necessário para alcançar o desenvolvimento. Somente com a expansão dessas liberdades, o Estado brasileiro cumprirá os objetivos assumidos no texto constitucional.
4 A ADMINISTRAÇÃO BUROCRÁTICA, SUA EFICIÊNCIA E A IMPLEMENTAÇÃO DESSE MODELO NO BRASIL
A despeito das críticas dos reformistas pátrios à burocracia estatal, adotamos o conceito de burocracia weberiana, que, opostamente àqueles, caracteriza o serviço público como profissionalizado e eficiente, uma vez que formado por profissionais especializados, selecionados segundo critérios racionais (WEBER, 1976). As características que distinguem a organização burocrática de outras organizações, segundo Weber (1976), são a formalidade, a impessoalidade e o profissionalismo daquela, já que a organização burocrática se baseia na racionalidade e é delineada por leis. Um Estado moderno exige uma burocracia profissionalizada.
No Brasil, a constituição de estruturas burocráticas foi deflagrada com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, “dando início ao que se chamou de insulamento burocrático, ou seja, uma estratégia para que a burocracia não fosse ‘contaminada’ pelas pressões político-partidárias” (SOUZA, 2017, p. xxx). Com a redemocratização do país advinda da promulgação da Constituição de 1988, o Estado brasileiro visava sair da cultura de um populismo paternalista e patrimonialista, em que se promove o empreguismo e a manutenção privilegiada de quem exerce o poder, mantenedora de seu status quo (FAORO, 2001). Semelhantes críticas também foram realizadas por Sérgio Buarque de Holanda (1995), ao tratar das estranhas relações dos detentores de poder no Brasil e sua aproximação com o individualismo causado pelos favorecimentos pessoais, e por Gilberto Freire (2002) ao trazer a visão patriarcalista dos governantes.
Daí a exigência do texto constitucional de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos para a investidura em cargo ou emprego público (CF, art. 37, II). Nesse sentido, ao analisar a burocracia do Estado brasileiro e seu conteúdo clientelista, afirma Souza (2017, p. xxx): “Essa chave analítica tem hoje pouca capacidade explicativa pela predominância dos concursos, tornando a seleção da burocracia pouco permeável à representação de grupos de interesse, partidários ou a relações interpessoais (…)”. O concurso público deixou, assim, o serviço público impessoal (não clientelista), profissionalizado, especializado e eficiente. Como bem observa Montano (2002, p. 156), a “ineficiência” do Estado alardeada pelos reformistas não está relacionada aos serviços públicos profissionalizados, “(...) a ineficiência estatal, sua corrupção e até seus déficits fiscais se devem, em grande medida, ao uso do Estado para interesses privados do capital (...)” .
Com efeito, a política estatal implementada no Brasil em 1995, ao permitir a absorção de serviços sociais pelo setor sem fins lucrativos, tem como escopo não a eficiência dessas atividades, mas, exclusivamente, a redução do aparelho do Estado. A administração pública burocrática não é ineficiente como afirmam os reformistas. Tanto isso é uma verdade, que a capacidade burocrática restou reforçada com a Administração gerencial, ao profissionalizar e especializar determinados setores em carreiras, especialmente os que realizam funções típicas de Estado. Como bem lembra Souza (2017), no Brasil foi implementada uma política pública desigual entre os serviços que exercem atividade típica de Estado e os que realizam serviços sociais. Não obstante o Estado brasileiro tenha se constituído em um Estado Democrático de Direito, os serviços sociais básicos não vêm sendo tratados de forma prioritária. Serviços de controle e típicos do Estado têm de ser valorizados, porque necessários à estrutura organizacional e ao adequado funcionamento do Estado, que desempenha funções exclusivas cujos resultados são revertidos à população. Mas semelhante tratativa devem receber os serviços públicos de saúde e de educação, porque são núcleos do Estado Social e essenciais ao desenvolvimento.
A absorção de serviços sociais por entidades privadas e a permissão de contratação de pessoal de forma celetista retoma a administração pública clientelista e patrimonialista do período pré-Constituição de 1988, face à forma de recrutamento de pessoal e de compras com dispensa de licitação, como forma de flexibilizar a suposta rigidez burocrática.
As atividades de saúde e de educação não são apenas serviços públicos que a sociedade, por meio do Poder Constituinte de 1988, decidiu prover com os recursos dos impostos. São muito além disso. São serviços básicos primordiais à população e essenciais ao desenvolvimento, objetivo de todo Estado pobre ou em desenvolvimento como o Estado brasileiro, o qual assumiu esse compromisso no texto constitucional. Os serviços públicos de educação e saúde são instrumentos necessários para a concretização da Constituição Econômica e Social de 1988 e, portanto, necessitam ser valorizados como são os serviços típicos de Estado.
A realização dos serviços públicos de saúde e de educação por entidades privadas interpostas não está voltada para o interesse público, e a Administração Pública direta burocrática tem capacidade de provê-los de forma superior, pois a administração burocrática é a essência de toda e qualquer entidade, pública ou privada, que busca eficiência. Desse ponto, visível está a incoerência de buscar a eficiência com a desburocratização dos serviços de saúde e de educação. A máquina estatal pode ser reduzida sim, mas em outros setores.
Assim, os serviços de educação e saúde devem ser formados por profissionais especializados, selecionados por critérios racionais-legais para atender de forma eficiente à população. A “superioridade da administração burocrática reside no papel do conhecimento técnico”, que se tornou indispensável, e para se obter a eficiência técnica deve-se buscar “um enorme incremento na importância da burocracia profissional” (WEBER, 1976, p. 25).
A eficiência do provimento de educação e saúde gratuitas à população é garantida quando o serviço público é prestado diretamente pelo Poder Público, por meio de seus órgãos.
5 AS RELAÇÕES DO PODER PÚBLICO COM O TERCEIRO SETOR, A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA CORRELATA E A NATUREZA DESSA POLÍTICA
Em 1995, foi introduzida no Brasil a reforma gerencial do Estado brasileiro, com a publicação do Plano Diretor da Reforma, iniciada pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), que existiu entre 1995 e 1998. Sob o argumento de melhorar a eficiência dos serviços públicos e aumentar a governabilidade, a reforma tem como objetivo “contribuir para a formação do Brasil de um aparelho de Estado forte e eficiente” (BRESSER-PEREIRA, 2019, p. xxx).
A Reforma da Gestão Pública de 1995 possui três dimensões: uma, institucional-legal; outra de gestão; e uma terceira cultural, de mudança de mentalidade. A dimensão gestão diz respeito a uma maior autonomia e à inserção de novas formas de responsabilização dos gestores, “a administração por resultados, a competição administrada por excelência, e o controle social - em substituição parcial dos regulamentos rígidos, da supervisão e da auditoria, que caracterizam a administração burocrática” (BRESSER-PEREIRA, 2019, p. xxx). Mas esta análise recairá, basicamente, nas dimensões institucional-legal e cultural, a fim de mostrar o caminho da política brasileira para uma direção contrária ao desenvolvimento e à realização dos direitos sociais plasmados no texto constitucional de 1988.
A dimensão institucional-legal da Reforma Gerencial do Estado brasileiro de 1995 está “voltada à descentralização da estrutura organizacional do aparelho do Estado através da criação de novos formatos organizacionais, como as agências executivas, regulatórias, e as organizações sociais (...)”, enquanto a dimensão cultural, de mudança de mentalidade, visa “passar da desconfiança generalizada que caracteriza a administração burocrática para uma confiança maior, ainda que limitada, própria da administração gerencial” (BRESSER-PEREIRA, 2019, p. xxx). O exercício de serviços sociais essenciais ao desenvolvimento e sensíveis à sociedade (saúde e educação) por entidades privadas do setor sem fins lucrativos (organizações sociais) e a exaltação da eficiência desse serviço, em detrimento do serviço prestado pelos órgãos do próprio Estado, mostram, na verdade, que esse projeto político está estruturado e fundamentado nas premissas de uma política econômica neoliberal, porque promove o enxugamento do aparelho de Estado em áreas sensíveis da sociedade, com objetivo de reduzir gastos sociais, para atender interesses outros que não os da ordem social.
Nos termos da Reforma, o Estado deve executar diretamente apenas os serviços que lhe são exclusivos, que são aqueles que “envolvem o emprego do poder de Estado, ou que apliquem os recursos do Estado” (BRESSER-PEREIRA, 2019, p. xxx). Todas as demais atividades, e aí estão, principalmente, incluídos os serviços sensíveis à população (saúde e educação), devem ser executadas por entidades privadas, e não por órgãos no âmbito da organização do Estado. A partir daí, começa a valorização e o crescimento vertiginoso do terceiro setor no país, com atividades do Poder Público sendo executadas por entidades privadas sem fins lucrativos, que recebem recursos públicos para prestar serviços essenciais (saúde e educação).
Essas atividades começam a ser desempenhadas, em um primeiro momento, pelas organizações sociais, cujas diretrizes e critérios para qualificação foram estabelecidos pelo Programa Nacional de Publicização, ordenado no sistema jurídico pela Lei 9.637/1998. O Programa Nacional de Publicização tem como objetivo assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que prestam, entre outras, atividades de ensino e de educação, por organizações sociais. Não obstante seja denominado Programa Nacional de Publicização, nota-se que o projeto é desestatizante, porque reduz o tamanho do aparelhamento do Estado, retirando serviços do âmbito da organização estatal e passando-os às pessoas jurídicas de direito privado. O órgão ou entidade pública é substituído por entidade privada sem fins lucrativos. Face à sua natureza de serviços públicos essenciais (saúde e educação) e não exclusivos do Estado, essas atividades são entregues, por absorção ou transferência, a pessoas privadas alheias ao quadro organizacional do Estado. A absorção e a execução dos serviços públicos por entidade privada do setor sem fins lucrativos dão-se mediante transferência de recursos públicos, sob a égide do contrato de gestão, que é sucedido pela extinção dos cargos ou entidades que anteriormente as prestavam. Por isso, pode-se dizer que o que acontece é a privatização de serviços sociais.
Na mesma linha, é editada a Lei 9.790/1999, que institui a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, e o termo de parceria. Por meio do termo de parceria firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público é estabelecido o vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público, entre elas: promoção gratuita de saúde e de educação (art. 3º, incs. III e IV). Mais uma lei é inserida no sistema jurídico brasileiro permitindo a realização de serviços públicos de saúde e de educação por entidade privada, cujo vínculo jurídico com o Poder Público agora é estabelecido por termo de parceria.
Antes, porém, os reformadores pátrios obtiveram êxito em ver promulgada a Emenda Constitucional 19/1998, que introduziu no âmbito da Administração Pública o princípio da eficiência (CF, art. 37, caput) e expandiu a competência privativa da União para legislar privativamente sobre normas gerais de licitação e contratação (CF, art. 22, XXII), além de acabar com o regime jurídico único para os profissionais de ensino (CF, art. 206, V).
Questionada no Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade do marco legal das Organizações Sociais e o disposto no art. 24, XXIV, da Lei 8.666/1993 - ADIN 1.923/DF, de Relatoria do Min. Ayres Britto -, o Supremo, por votação majoritária proferida no plenário, julgou parcialmente procedente a ação, dando interpretação, conforme a Constituição, às normas que dispensam licitação em celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as organizações sociais para a prestação de serviços públicos de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação ao meio ambiente, cultura e saúde (BRASIL, 2015). Teve como voto condutor o proferido pelo Min. Luiz Fux, que afirmou que a atuação dessas entidades não viola a Constituição de 1988. Segundo o Ministro, a figura do contrato de gestão “configura hipótese de credenciamento, no qual não incide a licitação pela própria natureza jurídica do ato, que não é contrato, e pela inexistência de qualquer competição, já que todos os interessados podem alcançar o mesmo objetivo, de modo includente, e não excludente (BRASIL, 2015). Foi ressaltado pela Corte que as atividades objeto dos diplomas legais questionados possuíam titularidade compartilhada entre o Poder Público e a sociedade e, portanto, não sendo exclusivas do Poder Público, podem ser executadas pelo particular independentemente de qualquer ato negocial de delegação pelo Poder Público.
É verdade que as atividades de saúde e educação são serviços compartilhados que podem ser prestados tanto pelo Poder Público quanto pela iniciativa privada, porque ambos possuem titularidade sobre o serviço, ou seja, os serviços de saúde e de educação não são atividades exclusivas do Poder Público. A iniciativa privada compreende o mercado, que presta suas atividades por meio de pessoas jurídicas de direito privado, que são: as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada (CC, art. 44). Isso não está sendo contestado, o ponto é outro.
Quando o particular exerce as atividades de saúde e educação não está exercendo serviço público, porque o faz exercendo direito próprio, por possuir também titularidade sobre essas atividades. Ao exercer tais atividades, o particular não realiza ato negocial ou de colaboração algum com o Poder Público - não se trata de delegação de serviços privativos, nem muito menos acordos de colaboração com o Poder Público - porque essas atividades, de fato, estão abertas à iniciativa privada, as quais qualquer cidadão pode explorar sob as regras da livre concorrência. Questão bem diferente é o serviço gratuito de educação e de saúde, incumbência do Poder Público, porque, nesses casos, os usuários não têm liberdade de atendimento, estando vinculados aos serviços de uma entidade privada do setor sem fins lucrativos, financiada pelo Poder Público.
No julgamento da ADIn 1.923, enfatizou-se também que a realização do serviço público pelas organizações sociais não se trata de renúncia de deveres estatais de agir (BRASIL, 2015). Quanto a essa assertiva é necessário fazer uma consideração. É verdade que o Estado continua prestando as atividades de saúde e de educação, ainda que de forma interposta, mas não é possível afirmar que assim agindo o faz para atender melhor ao interesse social. Definitivamente não. O interesse é outro. A política de Estado reformista iniciada em 1995 está inclinada a atender interesses não voltados à ordem social, porque visa à redução do Estado em áreas sensíveis à população e áreas básicas essenciais ao desenvolvimento.
A Reforma da Gestão Pública de 1995 continua em andamento em todo o Brasil com o objetivo de tornar a Administração Pública gerencial. Nacionalmente ainda veio a aprovação da Lei 13.019/2014, que institui um novo marco legal das organizações civis, denominando as entidades privadas parceiras do Poder Público como Organizações da Sociedade Civil. Estabeleceu o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, estabelecidas por entes estatais e respectivas entidades da Administração indireta prestadoras de serviço público, e suas subsidiárias, com organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público. Definiu também diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação, que estão associadas aos seguintes instrumentos jurídicos: termos de colaboração, termos de fomento e acordos de cooperação.
Importante ressaltar que a Lei 13.204/2015, que alterou a Lei 13.019/2014, muito embora tenha negado a aplicação de suas disposições legais aos convênios e contratos celebrados com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos nos termos do § 1o do art. 199 da Constituição Federal, não só continuou permitindo a absorção da execução dos serviços de saúde e de educação por organizações civis, como também flexibilizou as regras da parceria entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil. A Lei 13.204/2015 revogou todo o inc. VII do art. 24 da Lei 13.019/2014, que, ao tratar do chamamento público, determinava a exigência de requisitos objetivos previamente estabelecidos e constituídos pela Organização da Sociedade Civil, como tempo mínimo de existência e de cadastro (três anos), experiência prévia e capacidade técnica e operacional para desenvolver as atividades e cumprir as metas estabelecidas. Da mesma forma, revoga integralmente o art. 25 desse aludido diploma legal, que tratava das exigências para se permitir a atuação em rede para a execução de iniciativas agregadoras de pequenos projetos, por duas ou mais Organizações da Sociedade Civil.
Agora, não mais sob o argumento de buscar a eficiência no serviço público, mas sim de democratização do serviço público, abriram-se as portas para que qualquer entidade privada sem fim lucrativo - não obstante a ausência de experiência ou de um mínimo temporal de existência, ainda que tenha se constituído tão somente para esse fim - prestasse serviços tão essenciais ao Estado Democrático e ao desenvolvimento. O curioso é que, com o serviço público de assistência jurídica, a política do Estado movimentou-se de forma oposta. Não permitiu que esse serviço fosse prestado por entidade do terceiro setor. O serviço de assistência jurídica foi estatizado, ampliado e profissionalizado, mesmo não se tratando de atividade típica de Estado e não tendo a importância que possuem os serviços de saúde e de educação para alcançar o desenvolvimento e concretizar a Constituição Econômica de 1988.
A Reforma da Gestão Pública de 1995 no Brasil é chamada de segunda grande Reforma do Estado Moderno. Esse movimento teve início, menos de dez anos antes, na Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia. Essa “reforma gerencial do Estado deve ser compreendida no âmbito de duas grandes forças que moldaram a sociedade contemporânea no século XX”: a globalização, com a abertura dos mercados para a competição capitalista; e a democracia social, que teve início na segunda metade do século XX, principalmente na Europa, conforme assinala Bresser-Pereira (2011, p. xxx). Segundo Bresser-Pereira (2011, p. xxx), os serviços sociais “exigiram que a administração pública fosse mais do que simplesmente efetiva, fosse também eficiente, ou, em outras palavras, que fosse mais do que uma administração pública burocrática: fosse uma administração pública gerencial”.
A primeira grande reforma do Estado Moderno, chamada de reforma burocrática, ocorreu na Europa no século XIX, desenrolando “no quadro de um Estado liberal que se limitava a garantir os direitos civis ou as liberdades individuais, que deixara de ser absoluto, passara a garantir os direitos civis, mas continuava essencialmente autoritário porque negava aos pobres o direito universal ao voto” (BRESSER-PEREIRA, 2011, p. xxx). A ascensão do Estado Social - quando o Estado passou a garantir também os direitos sociais (educação, saúde, previdência, assistência social) e com isso obrigou-se, consequentemente, a criar serviços públicos nessas áreas - aconteceu entre as duas grandes reformas do Estado Moderno, no período pós-1a Guerra Mundial. A reforma administrativa gerencial veio marcar o fim do Estado Social.
Com efeito, prega a eficiência e critica a administração burocrática, valendo-se ainda do combate aos elementos patrimonialistas e clientelistas, para velar o escopo neoliberal da política implementada, que enxuga a estrutura organizacional do Estado. Busca o reaparelhamento e a racionalização do serviço público. A reforma da Gestão Pública de 1995 apresenta rígidos controles de política fiscal e de controles de gastos. Os reformistas pregam a redução do Estado Social e o aumento da governança do Estado, que é definida como o aumento “da sua capacidade de tornar efetivas as decisões do governo, através do ajuste fiscal que devolve autonomia financeira do Estado, da reforma administrativa rumo à administração pública gerencial (ao invés de burocracia) (...)” (BRESSER-PEREIRA, 1998, p. 60). São medidas, portanto, voltadas a uma política neoliberal e não ao fortalecimento do Estado Social e ao alcance do desenvolvimento do Estado brasileiro.
Outro ponto indicativo da natureza neoliberal dessa política está no cumprimento de metas e resultados pelos dirigentes. Essas metas e resultados não mensuram êxito nos diagnósticos e tratamentos de doenças tratáveis, ou incremento da qualidade dos serviços. As metas estão relacionadas à quantidade de procedimentos, de atendimentos, de usuários do sistema.
A ausência de autonomia dos profissionais de saúde e de educação e a inexistência de incentivos à prestação de serviços de qualidade, aliada à ausência de estabilidade, depõem também contra o serviço público prestado pelo setor sem fins lucrativos. A estruturação dos serviços em carreira é importante e necessária em uma administração burocrática, em que os salários devem dar-se de forma graduada segundo a hierarquia, o cargo e sua responsabilidade (WEBER, 1976, p. 20). A autonomia dos profissionais de saúde e de educação é importante porque a ausência dela os coloca nas mãos de dirigentes, os quais, não raras vezes, desgarram-se do âmbito de competência legal. Sobre a dominação na estrutura do quadro administrativo, já advertia Weber (1976). Sem autonomia não é factível que esses profissionais oporiam-se a decisões de natureza neoliberal impostas pela direção. Limitar-se-iam a cumprir as diretrizes da entidade empregadora, ainda que contrárias ao interesse público.
Outra questão não menos relevante a destacar diz respeito à ausência de liberdade de escolha do usuário do sistema público - ao contrário do que se dá nos serviços prestados pela iniciativa privada, em que o cidadão tem essa liberdade -, aliado ao fato de os profissionais e/ou diretores de entidade do setor sem fins lucrativos, muitas vezes, não entenderem sequer a relação existente entre cidadão e Poder Público, dos direitos do cidadão, ou das funções do Estado, por serem geralmente administradores. Confiança se tem do setor público não de entidade privada interposta quando na prestação de serviço público, seja quando seu vínculo é instituído por contrato de gestão, termo de parceria, termo de fomento, termo de colaboração, seja por acordo de cooperação. Portanto, a busca de eficiência e confiança na realização de serviço público por interposta pessoa (entidade privada) é álibi.
6 A NECESSIDADE DE ATUAÇÃO ESTATAL DIRETA NOS SERVIÇOS PÚBLICOS BÁSICOS ESSENCIAIS PARA ALCANÇAR O DESENVOLVIMENTO
A atuação direta do Estado no domínio social no tocante aos serviços básicos sensíveis à população (saúde e educação) é necessária para a concretização da Constituição Econômica e Social de 1988. Não é crível que serviço público (atendimento gratuito) possa ser prestado de forma mais eficiente por entidade privada interposta do que diretamente pelo próprio Poder Público. Estados que implementam políticas públicas voltadas ao desenvolvimento e à consolidação do Estado Social não entregam a execução dos serviços sociais básicos a entidades privadas, porque os dispositivos sociais (saúde e educação) são serviços essenciais ao desenvolvimento (SEN, 2017) e compromisso fundamental assumido pelo Estado brasileiro. Face à sua natureza, esses serviços devem ser priorizados e prestados diretamente pelo Estado.
O reaparelhamento do Estado iniciado no Brasil em 1995 deixa a população à mercê de profissionais contratados por entidades privadas sem fins lucrativos. Com isso, os profissionais da área de educação e saúde perdem autonomia de decisão - face ao vínculo precário de trabalho: celetista ou prestador de serviço -, uma vez que subordinados a dirigentes que, não raras vezes, só entendem de administração de empresas e nada de serviço público, da relação existente entre Administração Pública e cidadão ou dos direitos do cidadão e das funções de um Estado Democrático de Direito. Esse é outro ponto indicativo da natureza neoliberal dessa política.
Isso mostra que esses serviços não vêm sendo tratados com prioridade, não obstante a essencialidade dos serviços de educação e de saúde, e o fato de ser o desenvolvimento um compromisso do Estado brasileiro. A Reforma da Gestão Pública de 1995 tem como primado a execução de serviços sociais por entidades privadas do setor sem fins lucrativos, mas ninguém pode tratar melhor os interesses públicos e sociais do que o próprio Estado, porque a eficiência se obtém do serviço burocratizado. Assim, a Reforma gerencial atinge, de forma negativa, os direitos sociais básicos, que são tratados como se relevância não tivessem.
A retirada dos serviços sociais do Estado e sua transferência ao setor sem fins lucrativos é uma política que atende, por razões diferentes, tanto ao segmento liberal, quanto aos segmentos de intenção progressista, da nova esquerda, dos pós-marxistas. Estes, porque “ entendem o Estado como instrumento de classe para a manutenção da hegemonia e do status quo (…) ” (MONTANO, 2002, p. 155). Fecham os olhos para as funções sociais assumidas pelo Estado Social e também para a expansão e modificação da composição da estrutura organizacional estatal, como uma necessidade para atender “demandas populares, verdadeiras conquistas históricas das classes trabalhadoras”, por ser a questão do Estado a questão central do processo revolucionário (MONTANO, 2002, p. 155).
Já os liberais intencionam, sob a lógica da eficiência, a redução de custos e maximização dos lucros. O setor sem fins lucrativos não é uma alternativa à lógica do capital, porque está, na verdade, integrado ao sistema, sendo funcional à nova estratégia hegemônica do capital (MONTANO, 2002, p. 157). O projeto político do neoliberalismo é absolutamente diferente, porque não procura combater o Estado absolutista, como fizera no passado quando enfrentou o regime monárquico. O que ele visa é minimizar “o Estado ampliado, democrático, onde o trabalhador tem (e pode aumentar) seus representantes, a organização que garante tanto a propriedade privada quanto as leis trabalhistas, o Estado que responde a algumas demandas populares (...)” (MONTANO, 2002, p. 156). Ambos os segmentos, assim, estão alheios às necessidades básicas da população, à implementação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento e à concretização da Constituição Econômica e Social de 1988.
Portanto, o fortalecimento da burocracia estatal organizada em carreiras de Estado para os serviços públicos sociais, essenciais ao desenvolvimento (saúde e educação), e valorização de seu trabalho técnico são medidas necessárias do Estado brasileiro para a consecução de seus objetivos. Esses serviços são essenciais, porque capacitam a população, dando-lhe autonomia e oportunidades econômicas. Somente por meio da capacitação das pessoas, da expansão de suas liberdades e, consequentemente, de suas oportunidades é possível reduzir as desigualdades sociais e desenvolver o Estado brasileiro. Para tanto é necessário retornar os serviços de saúde e de educação para o modelo burocrático, porque somente a Administração Pública está voltada a atender o interesse público. Assim, caem por terra a base propulsora da reforma, a eficiência e a confiabilidade.
7 CONCLUSÃO
O modelo administrativo burocrático, ao contrário da refutação dos reformistas pátrios, é eficiente para executar serviços públicos, porque profissionalizado, composto de servidores especializados e selecionados por critérios racionais. A Constituição de 1988, ao instituir a necessidade de concursos públicos para o provimento de cargos e empregos públicos, tornou o serviço público profissionalizado, especializado, impessoal (não clientelista) e eficiente. Um estado moderno exige uma burocracia profissionalizada, o que foi concretizado no Brasil pós-Constituição de 1988 nos setores que exercem função típica de Estado, por meio de carreiras. A “ineficiência” do Estado não está relacionada aos serviços públicos prestados diretamente pelo Poder Público, mas sim ao uso do Estado para operar na lógica do capital, conforme bem observou Montano (2002).
Os serviços sociais básicos (educação e saúde), núcleo do Estado Social e essenciais ao desenvolvimento, desde a reforma do Estado brasileiro iniciada em 1995, não vem sendo tratados com prioridade. Como lembrado por Souza (2017), não receberam a mesma tratativa e relevância com a Reforma do Aparelho Organizacional do Estado, que teve início em 1995. Muito pelo contrário. As legislações que sobrevieram - Lei 9.637/1998, Lei 9.790/1999, Lei 13.019/2014 e Lei 13.204/2015 - no decorrer dessas décadas sobre a execução desses serviços públicos trataram de expurgá-los do aparelho organizacional do Estado, transferindo-os ao setor sem fins lucrativos. Daí o crescimento vertiginoso de organizações sociais que prestam serviços sociais mediante incentivo do Estado.
Nessas últimas duas décadas, a política econômica iniciada em 1995 não foi alterada, em que pesem as mudanças de governo. A retirada dos serviços sociais do Estado e sua transferência ao setor sem fins lucrativos é uma política que atende, por razões diferentes, tanto ao segmento liberal, quanto aos segmentos de “intenção progressista”, da “nova esquerda”, dos pós-marxistas (MONTANO, 2002). O primeiro, por ser estratégia velada voltada à lógica do capital. O segundo porque, ao fechar os olhos para os serviços sociais incorporados ao Estado, só enxergam o Estado como instrumento de dominação direcionado à manutenção da hegemonia e do status quo (MONTANO, 2002). Assim, ambos os segmentos estão alheios às necessidades básicas da população, à implementação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento, ao fortalecimento do Estado Social e à concretização da Constituição Econômica e Social de 1988.
Com efeito, políticas públicas voltadas à transferência de serviços públicos sociais ao setor sem fins lucrativos não têm o propósito de reformar o Estado Social para deixar os serviços sociais mais eficientes e mais confiáveis, mas sim cortar áreas básicas e sensíveis à população, seja para favorecer o escopo neoliberal, seja para atender à causa que vislumbra o Estado como dominador. Política econômica que reduz o aparelho organizacional de Estado exatamente nas áreas sensíveis à população - serviços de saúde e de educação - conforma-se com interesses outros não compatíveis com a realização dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988, além de implicar na fragilização do Estado Social.
Desse modo, a reforma brasileira, chamada de segunda grande reforma do Estado moderno, iniciada no Brasil em 1995, é na verdade uma política econômica neoliberal e constitui bloqueio institucional à concretização dos direitos sociais plasmados no texto constitucional de 1988. Tem como escopo promover o enxugamento do aparelho organizacional do Estado, com o objetivo de reduzir gastos sociais. A absorção por entidades privadas do setor não estatal das atividades desempenhadas por órgãos ou entidades estatais, com a adoção do modelo de administração gerencial em substituição à administração burocrática, denota esse cenário, que se confronta com os interesses da população e inviabiliza o Estado Social.
O objetivo do Estado brasileiro é alcançar o desenvolvimento nacional e seu compromisso é atingir o desenvolvimento, conforme estabelecido no art. 3o, inc. II, da Constituição de 1988. Serviços públicos de saúde e de educação são serviços sensíveis à população e básicos essenciais ao desenvolvimento. Mais do que isso, serviços públicos sociais básicos (saúde e educação) são armas de que se devem valer os Estados pobres ou em desenvolvimento. São exatamente tais estados que devem aumentar seus gastos em serviços públicos de saúde e de educação, porque são estes que capacitam as pessoas, expandindo as liberdades delas e aumentando suas oportunidades econômicas. Serviços públicos de saúde e de educação são instrumentos necessários ao Estado que têm como objetivo promover o desenvolvimento. É, principalmente, em momentos de crise que se deve investir no Estado Social, já que crise econômica se enfrenta com o fortalecimento do Estado Social, com a ampliação de investimentos em serviços sociais essenciais.
Portanto, as atividades de saúde e de educação, pela essencialidade de seus serviços à população e ao desenvolvimento, aliadas aos propósitos do Estado brasileiro, devem ser incorporadas ao modelo burocrático. Confiabilidade e eficiência se têm do serviço prestado diretamente pelo Poder Público, porque está absolutamente voltado a atender ao interesse público. Ninguém pode defender melhor o interesse público do que o próprio Poder Público. É necessário, portanto, retomar os serviços públicos básicos (saúde e educação) para o âmbito organizacional do Estado, face à eficiência do modelo burocrático, à essencialidade desses serviços públicos que constituem meios para alcançar o desenvolvimento e que fortalecem o Estado Social, e à instrumentalidade do Estado Social como medida para superar crises econômicas.