1 INTRODUÇÃO
Desde os tempos mais remotos, a medicina se baseava em um modelo simples de funcionamento consistente em reparar os males produzidos pelas enfermidades nos seres vivos. Seu marco de pensamento era, portanto, exclusivamente terapêutico. Na antiguidade grega, por exemplo, o médico se preocupava com a harmonia do corpo biológico, buscando tratar o paciente para que ele tivesse melhor qualidade de vida e pudesse retornar à “normalidade” de sua saúde, reconhecendo-se as limitações humanas no sentido de que o destino final e inevitável seria a morte para dar lugar a outras gerações2.
Em pouco tempo as inovações que surgiram nesse campo da ciência, em especial, no campo da reprodução humana assistida, através das técnicas como inseminação artificial, fertilização in vitro, barrigas de aluguel, descarte seletivo de embriões e com o mapeamento do genoma humano acabaram por colocar a humanidade diante de situações até pouco tempo inimagináveis, como a possibilidade de terapias gênicas e clonagem.
E, se por um lado, a manipulação genética trouxe esperança de cura para várias doenças e de melhoria da qualidade de vida, por outro, trouxe, também, uma série de angústias e incertezas que merecem atenção especial por parte da sociedade.
O homem passou a se empoderar do próprio corpo e a luta pela qualidade de vida passa a se transformar numa luta pela longevidade e, na visão dos transumanistas, pela imortalidade.
Assim, as inovações podem levar a dois caminhos: o de proteção ou de afronta a diversos princípios de direitos humanos, já que incluem situações de proteção a eles e de ofensa ao núcleo axiológico do princípio da dignidade da pessoa humana.
Consequentemente, é natural e necessário que se despertem preocupações ético-jurídicas acerca de tais progressos, buscando-se eleger o valor maior a ser protegido o qual, sem dúvida, é a proteção da própria humanidade e de sua dignidade calcada na sua autonomia.
E esta humanidade deve ser entendida num contexto intertemporal e intergeracional, ou seja, no sentido de se proteger o presente, mas também o futuro.
Significa dizer que o ser humano é livre para realizar pesquisas com a finalidade de preservar a espécie humana, descobrindo curas para as doenças, desenvolvendo tecnologias que possam trazer qualidade de vida às pessoas, sem, contudo, olvidar a responsabilidade perante as futuras gerações, que possuem, sem dúvida, direito à preservação do patrimônio genético.
Nesse contexto, propõe-se com o presente trabalho chamar atenção para a necessidade de proteção das futuras gerações em relação às novas biotecnologias que permitem manipulações genéticas e a busca de mecanismos ético-jurídicos eficientes para tal.
2 BIOÉTICA E GERAÇÕES FUTURAS
O conhecido historiador Yuval Noah Harari, no seu livro Sapiens, afirma que no século XXI o homo sapiens está começando a violar as leis da seleção natural, substituindo-as pelas leis do design inteligente, através de três formas: por meio da engenharia biológica, engenharia cyborg ou engenharia de vida inorgânica. A primeira consiste na intervenção humana deliberada no nível biológico com o objetivo de alterar a forma, as potencialidades, as necessidades ou os desejos de um organismo. Através dela se está em jogo a possibilidade de prolongar a vida humana indefinidamente, dominar doenças incuráveis e aprimorar nossas capacidades cognitivas e emocionais. Uma verdadeira violação das leis da seleção natural. Por sua vez, através da engenharia cyborg, haveria a combinação de parte orgânicas com inorgânicas, como, por exemplo, braços biônicos ou a interface direta de mão dupla entre o cérebro humano e o computador. E, por último, a engenharia de vida inorgânica seria capaz de produzir seres completamente inorgânicos, como programas de computador e vírus de computador que podem sofrer evolução independente3.
A biologia, a medicina e a biotecnologia encontram-se, portanto, em sua época áurea. Segundo Leo Pessini:
(...) Avanços na neurociência trazem a promessa de poderosas e novas compreensões dos processos mentais e comportamento, bem como da cura de doenças mentais devastadoras. Instrumentos nanotecnológicos geniais, implantáveis no corpo e cérebro humano, trazem esperança de superação da cegueira e surdez, bem como de aprimoramento das naturais capacidades humanas de consciência e ação. Pesquisas na área da biologia do envelhecimento e senescência sugerem a possibilidade de diminuir o processo de declínio dos corpos e mentes e, talvez, até mesmo aumentar ao máximo o tempo da vida humana. De inúmeras maneiras, as descobertas dos biólogos e as invenções dos biotecnologistas estão aumentando o poder de intervir no funcionamento de nossos corpos e mentes e alterá-los por um plano racional. Existem muitas pessoas que manifestam grande entusiasmo em relação a tais desenvolvimentos. Antes mesmo que tragam benefícios práticos, suas perspectivas voltam-se ao aprofundamento do conhecimento sobre como funcionam a mente e o corpo humanos. Mas as promessas em torno dos benefícios médicos de tais descobertas são o que alimentam, especialmente, essa admiração. Portadores de inúmeras patologias e suas famílias esperam ardentemente a cura para suas doenças devastadoras e ansiosamente antecipam alívio de tanta miséria humana. Como já se fez no passado, certamente se acolherão as novas descobertas tecnológicas que podem ajudar a conquistar corpos mais saudáveis, experimentar menos dor e sofrimento, bem como alcançar paz de mente e vida mais longa4.
Ao mesmo tempo que esses avanços geram otimismo e entusiasmo igualmente criam inquietações que remetem à reflexão sobre esse empoderamento humano sobre a sua própria vida.
Nesse contexto, avança a filosofia transumanista ou pós-humanista que acoberta o intento de transformar substancialmente os seres humanos através da aplicação direta da tecnologia justamente através dessas atuações citadas por Harari, que levaria ao surgimento de uma nova e melhorada espécie, uma espécie pós-humana, descendente da nossa linhagem, porém muito mais avançada, a quem se pretende chamar de homo excelsior. Como deverá atuar os bioeticistas diante destas novas ideias? As gerações futuras teriam direitos ao patrimônio genético humano?
Um dos desafios com o que a bioética contemporânea se depara consiste nos precisamente nos limites éticos em face da pesquisa científica principalmente a que lida com o patrimônio genético, diante da diversidade de valores inerentes a cada sociedade, bem como em face da formação do ponto de vista religioso, filosófico e moral que interferem na regulação da matéria pelos legisladores. Sem dúvida, esses paradigmas não são estáticos e evoluem à medida em que avança a biotecnologia, sendo certo que a preocupação com a proteção e com o respeito à vida é ponto comum.
Maria Claudia Crespo Brauner alerta que se deve adotar “um critério de prudência e de responsabilidade para a aceitação das novas intervenções sobre o ser humano e sua descendência”5.
Na realidade, a discussão bioética deverá considerar as mudanças científico-tecnológicas e sociais ocorridas, tratando-se de uma demanda de reflexão, para colaborar na hora de elucidar problemas atinentes aos direitos humanos. Deve-se ter em mente que o reconhecimento do pluralismo como valor social e jurídico, característico das sociedades democráticas, supõe a convivência de distintas opções morais e que obriga também a assumir a existência de distintas concepções de bioética, considerando a diversidade e as diferenças culturais, o que, no entanto, não pode ser considerado um obstáculo para acordos e soluções caracterizadas pelo consenso e pela provisoriedade típica de um mundo em constante transformação6.
Nesse cenário, a bioética tem um papel crucial quando se trata da proteção do patrimônio genético para as gerações futuras, seja através da aplicação dos princípios da autonomia, da beneficência, da não maleficência e da justiça ou de outras correntes que a fundamentam, devendo estar no centro dos debates na contemporaneidade biotecnológica.
3 A RESPONSABILIDADE ATUAL PARA COM AS FUTURAS GERAÇÕES
O progresso científico e tecnológico converteu-se em uma busca constante da sociedade, objetivando o seu desenvolvimento e a melhoria das condições de vida das pessoas e das nações.
No que tange ao campo da biotecnologia, as novas descobertas envolvendo a manipulação da vida, mediante técnicas altamente sofisticadas, criaram um poder sobre a própria constituição do ser humano, sob o mote de melhoria de condições de vida e saúde das pessoas, evitando o sofrimento. Gediel alerta para “a sofisticação dos produtos e no domínio cultural exercido pelos meios de comunicação de massa e pela propaganda voltada a estimular o consumo de medicamentos, e tecnologias da saúde”7.
Para Foucault, o biopoder é uma força produtiva que focaliza as experiências biológicas de uma população. Se nas sociedades pré-modernas esse poder sobre a vida assentava-se na autoridade do rei e no direito de matar, nas sociedades modernas ele se encontra difuso e se faz exercer sobre a própria vida. As autoridades, ao invés de impedir ou destruir a vida, têm como tarefa sustentá-la e submetê-la a controles e regulações precisas8.
Esse controle e regulação derivam da necessidade de proteção das futuras gerações face aos avanços biotecnológicos.
Habermas, em seu livro “O Futuro da Natureza Humana”, aborda a questão da atuação humana em face do progresso das ciências biológicas e no desenvolvimento das biotecnologias pontuando que ou agimos de forma autônoma, “segundo considerações normativas que se inserem na formação democrática da vontade”, ou agimos de forma arbitrária, de acordo com nossas preferências subjetivas “que serão satisfeitas pelo mercado”. A escolha entre uma e outra forma definirá se temos a auto compreensão da responsabilidade de nossas ações e de que forma isso ocorre.9
Por certo que a atuação científica atual produzirá efeitos nas condições das futuras gerações, reduzindo o alcance de sua liberdade. As intervenções na área da biotecnologia podem ser irreversíveis e atingirão as futuras gerações, que sofrerão as consequências de nossas decisões, correndo o risco de poder escolher, somente, entre o fatalismo e o ressentimento10.
Nesse cenário, o referido autor alerta para a necessidade de se desenvolver uma responsabilidade solidária, possibilitando às futuras gerações a “ética de poder ser si mesmo”. A ausência dessa responsabilidade, permite a indiferença às necessidades e direitos dos outros, “numa sociedade que adquire consideração narcísica pelas próprias preferências ao preço da insensibilidade em relação aos fundamentos normativos e naturais da vida”, sendo necessária a adoção de uma postura de participantes do discurso normativo e não apenas de meros observadores11. Para isso, seria necessário desenvolver intervenções genéticas tentando vislumbrar a “possibilidade de o destinatário dizer sim ou não como partícipe comunicativo no futuro. Isso é tratá-lo como fim, com dignidade entendida discursivamente”12.
Para realizar esse exercício sobre a possível aceitação da geração futura, sua vulnerabilidade precisa ser reconhecida em virtude da “impossibilidade de reivindicar hoje a proteção de seus interesses”. Esse reconhecimento parte de “uma decisão de respeito à liberdade das futuras gerações, exigindo um comportamento ativo das atuais na preservação desses interesses”13, o que pressupõe que os presentes assumam como próprios os interesses das futuras gerações.
Nesta senda, para que o interesse das futuras gerações possa ser reconhecido, é necessário o “reconhecimento da solidariedade como elemento de sustentabilidade de uma ética de alteridade e integridade” como marco teórico, mediante uma “atuação responsável em face do outro ainda não existente, dos ainda não nascidos, dos titulares de interesses sem rosto”, daí falar-se em uma equidade intergeracional14.
Essa equidade intergeracional, por sua vez, está fundamentada em três princípios, quais sejam: a) Princípio da conservação de opções, que conduz à geração presente a conservar a diversidade natural e cultural em favor das futuras gerações; b) Princípio da conservação da qualidade, que preceitua o dever de manter, para as próximas gerações, a qualidade do planeta na recebida pelos antepassados; c) Princípio da conservação do acesso, que possibilita que cada geração tenha acesso ao legado das gerações passadas, levando-a a conservar o acesso para as próximas gerações15.
Para Habermas, esses princípios permitiriam a intangibilidade da “dignidade humana” e a simetria das relações entre as atuais e as futuras gerações. Essas relações não ocorrem entre presentes, mas entre pessoas que, embora não convivam na mesma realidade temporal, têm um direito em comum, a “dignidade humana”, cuja realização depende da conservação das opções, da preservação da qualidade do planeta e da manutenção do acesso aos bens naturais16.
Com esse desiderato, tem-se consolidado o conceito de responsabilidade, fruto da preocupação com as ações que podem ter consequências negativas no futuro, pelo que Hans Jonas defende o surgimento de uma “ética do futuro”. Assevera que o homem atual é cada vez mais responsável por tudo de negativo que fez no passado e por tudo aquilo que fará no futuro do Planeta. Este homem constitui-se como um ator coletivo, com responsabilidade para com o futuro, ainda que indeterminado17.
Por conseguinte, tanto Habermas como Hans Jonas comungam da ideia de responsabilidade das gerações atuais pelas gerações futuras. Agir com responsabilidade importa em ter cautela e precaução para evitar danos futuros. Nesse contexto, pertinente falar em agir com precaução.
Claudia Lima Marques e Bruno Miragem acrescentam:
(...) No novo direito privado, tanto a noção de tutela do interesse das futuras gerações, quanto a responsabilidade decorrente de sua atuação surgem - ainda que em estágio inicial - do desenvolvimento do princípio da precaução e seus efeitos, bem como sobre a possibilidade e conveniência de sua proteção autônoma em relação aos titulares atuais de direitos18.
O princípio da precaução apresenta-se como a necessidade de se medir os riscos e as possíveis consequências de uma determinada aplicação tecnológica como pauta para calibrar a incidência ética das tecnologias, em tudo aquilo que afeta ou possa afetar a vida digna. Refere-se à situação de incerteza que geram os avanços biotecnológicos, sendo urgente uma reflexão sobre a medida de sua utilização e suas consequências, já que aos homens compete responder por tudo relativo à humanidade. A precaução relaciona-se, portanto, com o controle dos riscos que podem ser gerados para a identidade humana, pela ausência de certeza científica. Arnaiz propõe que a reflexão moral sobre risco que pode contribuir, nesse contexto, é a consideração do contraste entre as diferentes possibilidades ou oportunidades reveladas pelas tecnologias. Oportunidades e possibilidades que têm seu ponto de referência no desenvolvimento adequado de um bem-estar para toda a humanidade, medido pelos direitos humanos19.
A partir da ética do futuro faz-se necessário um imperativo categórico mais amplo que o proposto por Kant, para incluir a preocupação com as gerações futuras. No dizer de Hans Jonas:
“(...) Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou, expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou, simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”; ou, em um uso novamente positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer”20.
Note-se que não há uma demarcação exata entre gerações que vão se sucedendo, o que existe é uma “continuidade da que a precedeu, o que forma uma imensa comunidade ou a “família da humanidade”, que por consequência irá abranger toda a espécie humana”21.
Oliveira Ascenção adverte que a solidariedade intergerações se impõe, que somos responsáveis, na nossa medida, por aqueles que vêm depois de nós. Tudo que for feito que possa atingir as gerações futuras só pode ser feito em benefício delas22.
Nesta senda, os princípios bioéticos da beneficência e da autonomia devem ser aplicados não apenas em relação ao presente, mas também com um olhar para o futuro, de modo a verificar que impactos a biotecnologia podem acarretar para a própria condição humana.
4 AS FUTURAS GERAÇÕES COMO SUJEITO DE DIREITOS
A preocupação pela normatização dos direitos das gerações futuras é recente. A Carta das Nações Unidas, em 1945, por exemplo, foi um dos primeiros textos escritos neste sentido, ao declarar que os Povos das Nações Unidas, saídos da Segunda Guerra Mundial, estavam “resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, por sua vez, ressalta a garantia do gozo dos direitos fundamentais frente à responsabilidade para com a “comunidade humana e as gerações futuras”23.
A Constituição Brasileira de 1988 utilizou o termo futuras gerações, em seu art. 225, ao dispor que:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações24.
A partir do reconhecimento da responsabilidade atual perante as futuras gerações e um dever jurídico correlato, o seu enquadramento em categoria jurídica torna-se imprescindível para a sua efetiva proteção.
No cenário jurídico atual, as futuras gerações não podem ser enquadradas no conceito jurídico de pessoa, posto que não atendem ao requisito da legislação civil brasileira para tal (nascimento com vida) e da maioria dos sistemas jurídicos do civil law. Considerando que o conceito de sujeito de direitos não necessariamente coincide com o de pessoa e a partir do reconhecimento de deveres jurídicos das atuais gerações para com as futuras, comunga-se do entendimento daqueles que enquadram as gerações futuras como sujeitos de direito.
Interessante observação faz Helena Pereira de Melo ao defender que o reconhecimento de direitos das futuras gerações ultrapassa as fronteiras dos direitos nacionais, sendo uma noção de cunho internacional, já que diz respeito ao futuro de toda humanidade. Para a referida autora, as futuras gerações seriam titulares dos direitos coletivos da humanidade, quais sejam à vida e à preservação da espécie humana, como bem defendido nos julgamentos de Nuremberg, que pela primeira vez utilizou a expressão “crimes contra a Humanidade” quando da designação das barbáries do Holocausto, afirmando que o ser humano não deverá jamais perder a sua individualidade nem ser reduzido a elemento fungível passível de rejeição25.
Entretanto, o reconhecimento das futuras gerações como sujeito de direitos apresenta alguns problemas que merecem ser discutidos. Para demonstrar a dificuldade, veja-se a explicação dada por Marcos Bernardes de Mello acerca de relação jurídica:
(...) As relações jurídicas ou se formam (a) entre dois sujeitos determinados, ou determináveis (S´R S´) pi (b) entre um sujeito determinado, ou determinável, e o alter (S´R alter ou alter RS²), conforme o direito e a pretensão que delas resultam sejam oponíveis (=exigíveis) a alguém, especificamente, ou a qualquer um, o alter(=oponibilidade erga omnes). As prmeiras são chamadas de relações jurídicas de direito relativo, porque as pretensões que delas decorrem só obrigam algúem determinado ou determinável. As outras, diferentemente, são ditas de direito absoluto, uma vez que as pretensões que delas derivadas vinculam todos de modo insdistinto (=sujeitos passivos totais, conforme a terminologia de Pontes de Miranda). Quando no mundo do direito há posição jurídica em que a eficácia jurídica diz respeito apenas a um sujeito de direito, sem que a ele esteja vinculado outro sujeito de direito na condição passiva de sujeição ou oneração, mesmo que seja sujeito passivo total, não existe, ainda, em rigor, relação jurídica, mas, tão só, uma situação jurídica, conforme anotado antes. Essas situações não se confundem com relações jurídicas em que se vê, unicamente, um dos sujeitos de direito, em regra, o sujeito ativo, como ocorre nas relações jurídicas de direitos absolutos (por exemplo, direito de propriedade, direitos de personalidade) e mesmo de direitos relativos (contrato consigo mesmo, e.g.), ou, com menor frequência, apenas o sujeito passivo, como na herança jacente e vacante, nos títulos ao portador, v.g, porque aqui só há indeterminação, permanente ou transitória, eventual, do sujeito passivo ou ativo, mas não sua inexistência; o outro sujeito de direito existe, porém não é visível no momento26
No mesmo sentido, o professor Lourival Vilanova não admite a inexistência de sujeito de direito, mas apenas que possa haver uma indeterminação da pessoa, como ocorre no caso da herança jacente, no tocante a quem será o titular definitivo da propriedade sobre os bens do espólio, situação fática e transitória, porque os titulares finais do direito de propriedade na herança jacente são os herdeiros ainda não identificados, mas existentes27.
Ocorre que, de acordo com os paradigmas dominantes no Direito, a proposição de uma nova categoria de sujeito de direito - o sujeito transgeracional - implica a vinculação de direitos a um sujeito não nascido, ou seja, a imposição de um dever para com quem ainda sequer existe. Como justificar que os sujeitos existentes sofram limitações em nome de sujeitos que não terão nenhuma obrigação com o presente, já que não existem?
A partir do entendimento jurídico-dogmático do que seria relação jurídica esse reconhecimento se torna difícil. Isto porque o direito subjetivo, nessa visão, pressupõe uma relação jurídica quer seja perante o Estado, quer seja perante os particulares.
Guy Haarscher afirma que, para que haja precisão nos direitos dos homens, são necessários quatro requisitos, quais sejam: um “titular”, um “objecto”, uma “oponibilidade” e uma “sanção”. Para ele, os direitos fundamentais de terceira geração não possuem nenhum desses requisitos e, por isso, não podem ser considerados direito no sentido estrito do termo. Ressalte-se que, para este doutrinador, os direitos de terceira geração não apresentam nenhum desses requisitos e, portanto, não podem ser tratados como “direito no sentido estrito do termo”. Por isso, o autor pontua que não há direitos de futuras gerações, mas meras vagas exigências morais, até porque caso haja prevalência destes direitos de terceira geração sobre os antigos, “corre-se o risco de dar primazia a vagos direitos dos povos ou da humanidade, ou das gerações futuras, sobre a proteção precisa, aqui e agora, do indivíduo”28.
Outro argumento contrário ao reconhecimento do direito das futuras gerações consiste no fato da ausência de bilateralidade atributiva que, segundo Miguel Reale, trata-se de uma relação entre dois ou mais sujeitos na qual há pretensões ou competências, podendo estas serem recíprocas ou não. Esses sujeitos são as pessoas naturais ou jurídicas, ou até mesmo órgãos, desde que estejam a serviço dos sujeitos de direito29. Não havendo uma relação jurídica intersubjetiva, ou seja, a vinculação entre o titular do direito subjetivo e o titular do dever jurídico, não se pode reconhecer as futuras gerações como titular de direitos.
Diante de tais óbices, há quem proponha considerar as futuras gerações como sujeito de interesses.
Os conceitos de direitos e interesses são bastante próximos. Muitos doutrinadores defendem que um direito não pode existir sem um interesse. Um dos argumentos seria que quem tem um direito precisa ser representado e sem um interesse não há como haver essa representação. Em acréscimo, a função dos direitos é proteger os interesses do sujeito de direitos.
Raz, um dos principais proponentes da teoria dos interesses, diz que um direito existe se o interesse do sujeito de direito for importante o suficiente para gerar uma obrigação legal por parte dos outros de não violarem esse interesse. O interesse, portanto, é uma categoria mais ampla que um direito. Embora não exista direito sem interesse, não é todo interesse que deve ser traduzido em um direito30.
Por sua vez, Kramer explica que ter interesse não é suficiente para constituir um direito, de modo que o interesse apenas é traduzido em direito tão-somente se houver um dever legal de não violar o interesse do sujeito. Propugna pela existência de interesses irrelevantes para a lei, interesses protegidos pela lei e direitos subjetivos, ressaltando que os direitos são mais “fortes” do que os interesses. Como a subjetividade dos interesses é um conceito menos definido e mais aberto do que a personalidade jurídica, não tem o problema da inclusão excessiva, que desempenhou um papel no caso do nascituro e resultou em uma restrição baseada em argumentos fracos. Devido à sua flexibilidade, a subjetividade dos interesses é preferível à ampliação do conceito da personalidade jurídica. E por ser um conceito mais amplo pode justificar aspectos morais e sociais, que não se encaixam nos direitos individuais31.
Dworkin asseverou que possuir um direito concede um benefício especial porque se alguém tem um direito isto significa que por alguma razão que é errado o agir de modo a violar esse direito, ainda que se acredite que essa ação é correta e que a comunidade concorde com ela32.
Nieuwenhuis argumenta que as futuras gerações podem ter interesses e ele entende como preferível usar o termo interesse do que direito, considerando que entidades desprovidas de personalidade jurídica podem ter interesses juridicamente relevantes. E explica que a futura criança pode ter interesse, embora a identidade dela seja desconhecida, quando ela existir preencherá os requisitos para tal. Consequentemente, sabendo que no futuro entidades existirão e são capazes de ter interesse e terão esses interesses em, por exemplo, um meio-ambiente saudável, as pessoas presentes têm, no mínimo, uma obrigação moral de levar em consideração esses interesses. Por tais razões, essa estratégia seria a mais adequada para justificar a proteção ao “bebê salvador”33.
No entanto, entende-se que à medida em que se reconhecem os direitos como direitos fundamentais de quarta geração, ou seja, como direitos fundamentais que são há de se reconhecer as futuras gerações como sujeito de direitos. Consoante esposado anteriormente, não necessariamente a titularidade de direitos requer a personalidade jurídica, de modo que nada obsta a atribuição de direitos a categorias abstratas.
Nesse sentido, é que as futuras gerações podem ser enquadradas no conceito de sujeito de direitos, ainda que não possa exigi-los na atualidade e ainda que não exista reciprocidade, já que não há como se voltar ao passado para responsabilizar as antigas gerações. Sob esta perspectiva, conclui-se que “gerações futuras” ou “gerações vindouras” são sujeitos inexistentes e indeterminados, mas titulares de direitos dentro de uma relação jurídica intergeracional entre gerações atuais e futuras34.
Pietro Perlingieri explica que há situações existenciais que são juridicamente relevantes mesmo antes da existência do sujeito, ou seja, “existem hipóteses determinadas e específicas, nas quais um centro de interesses é juridicamente relevante apesar da inexistência (não-nascimento) do sujeito titular do interesse35”.
Para sustentar tal tese, alguns doutrinadores levam em consideração, também a questão do interesse, porém com base a teoria de Ihering, que reconhece que o direito subjetivo advém de um interesse juridicamente protegido, interesse esse não apenas individual, mas que pode ser social ou coletivo, desde que condizente com os preceitos da Constituição. No caso, o interesse seria a garantia da proteção à “dignidade humana”36.
Para além do reconhecimento de entes despersonalizados como sujeitos de direito e da teoria dos interesses, pode-se fundamentar a tutela das gerações futuras como sujeito de direitos na existência de deveres fundamentais autônomos ou como titular de direitos planetários. Esses direitos planetários surgem como consequência da mudança de paradigma de relações jurídicas entre indivíduos ou entre indivíduos e o Estado para reconhecer a existência de relações jurídicas que ultrapassam as fronteiras de um espaço local no planeta e da própria contemporaneidade, envolvendo gerações passadas e futuras.
Os direitos planetários são considerados intergeracionais, nas palavras de Edith Weiss, porque são imanentes a todas as gerações e posto que o objeto desses direitos é fundamental para o bem-estar da espécie humana e de todo o planeta, daí a ideia da humanidade como titular de direitos, sendo a futura geração37.
Esta ideia é corroborada pelo reconhecimento, por exemplo, de crimes contra a humanidade, já que a “dignidade humana” deve ser garantida a todos, seja no tempo passado, presente ou futuro e em qualquer espaço. O patrimônio genético, por exemplo, pode ser citado como direito que pertence às gerações presentes e futuras, sendo atemporal, na medida em que o homem tem o dever de zelar pela preservação de sua espécie.
A respeito da ampliação temporal do princípio da dignidade da pessoa humana para as existências humanas futuras, Ingo Sarlet assim propugna:
(...) O reconhecimento da dignidade das futuras gerações humanas, assim como da dignidade dos animais não humanos e da Natureza em si, surge como mais um elemento a formatar e ampliar a noção (e o alcance da proteção e reconhecimento pelo Direito) da noção de “dignidade humana” característica da tradição ocidental, especialmente desde Kant, e que nos tem servido como guia até o atual estágio do pensamento humano. A reflexão proposta traça novas direções e possibilidade para as construções no campo jurídico, com o objetivo de fortalecer - e, de certa forma, desvelar - cada vez mais o elo vital entre ser humano e Natureza, possibilitando, a partir de tal tomada de consciência, a nossa existência futura38.
De outro turno, os deveres fundamentais autônomos são impostos pela Constituição independentemente de haver um direito fundamental correlato, haja vista estarem fundados na solidariedade, na consciência do indivíduo como ser inserido na sociedade e, como tal, a sua liberdade de agir subsiste com sua responsabilidade para com os demais.
Note-se que o professor Torquato Castro já reconhecia a existência de poderes ativos de direito como aqueles que exercemos em proveito de terceiro, em múnus que sobre nós recai - de que nenhuma vantagem decorre, mas só encargos e trabalho sem rendimento nos propicia, e dos quais não podemos de modo algum liberar, dado que temos de exercê-lo por título jurídico que repousa em razão de solidariedade humana ou moral39.
A consagração do dever constitucional imposto ao poder público e à coletividade de, por exemplo, defender e preservar o meio-ambiente para as futuras gerações deixa evidente uma relação jurídica intergeracional, calcada na solidariedade. Trata-se de um rompimento com o paradigma de sujeito determinado e temporal, ao se reconhecer a possibilidade de um direito ter como titular um sujeito transgeracional, envolvendo gerações presentes e futuras. Essa concepção apenas faz sentido se se parte para um deslocamento do pensamento individualista para um pensamento de prevenção e solidariedade, que deve existir no presente, diante da irreversibilidade do tempo e a indeterminação do futuro.
Nesse sentido, Michel Serres reflete sobre a suposta mudança do paradigma da subjetividade para a solidariedade, ao tratar do meio-ambiente, afirmando que “de forma brusca, a natureza, antes considerada um objeto local, sobre o qual um sujeito parcial agia, transforma-se em um objetivo global, o Planeta Terra, no qual passa a trabalhar um sujeito total: a humanidade”40 o que, mutatis mutandi, aplica-se ao caso das técnicas de reprodução humana e seleção genética que repercutem em toda a humanidade.
Dessa forma, as futuras gerações seriam detentoras de direitos subjetivos, ainda que sem um dever correlato, já que não existem na atualidade, o que nem por isso desnatura essa relação jurídica, havendo a facultatividade de exercer tais direitos a partir de alguém que as represente. E esse representante seriam as próprias pessoas, sujeitos de direitos da atualidade, diante do dever de solidariedade e responsabilidade que carregam. Nos casos de sujeitos coletivos, reconhece-se a legitimação de órgãos públicos ou entidades que promovam a defesa desses direitos e interesses como representantes processuais adequados para a sua defesa41.
Por conseguinte, as gerações presentes, como representantes das gerações futuras, nossos sucessores, possuem responsabilidade para com aquelas, não apenas como dever moral, mas se reconhecendo haver relação jurídica entre elas, de modo a reconhecê-las como sujeito de direitos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resta, de todo o exposto, sedimentado que os avanços biotecnológicos exigem um pensar para além do presente, posto que suas consequências serão suportadas por toda a humanidade.
Urge encontrar mecanismos de proteção para as gerações futuras de modo a garantir a preservação do patrimônio genético, ponto este convergente em diversos diplomas legais. Deve-se promover uma discussão acerca das manipulações genéticas de modo democrático e amplo, a fim de que se coloque em foco não apenas os interesses individuais, mas de toda a coletividade, de modo que o sistema jurídico vigente possa proteger adequadamente as pessoas.
Preliminarmente, é importante ter em mente que os conceitos que o Direito utiliza de outros ramos da ciência nem sempre são com eles condizentes, já que o Direito, como normatização dos fatos, é influenciado por diversos fatores para além dos fatores tecno-científicos, em especial a historicidade. E, sem dúvida, as vicissitudes de cada momento histórico vão influenciar na produção legislativa e na sua evolução no sentido de proteger adequadamente a pessoa humana.
É crucial que as democracias não se vejam superadas pela rapidez e pelo caráter técnico das revoluções em curso. Portanto, no contexto da sociedade tecnocientífica contemporânea, aponta-se, aqui, a importância de refletir e dialogar mediante uma ética hermenêutica crítica, com a nova realidade decorrente do progresso científico e as questões relacionadas ao patrimônio genético e à própria humanidade.
A dignidade humana é o principal hermenêutico nas respectivas reflexões e diálogos, bem como nos processos de construção de parâmetros éticos e jurídicos para nortear os respectivos avanços biotecnológicos.
Esses avanços tecnológicos provenientes de conhecimentos cumulativos repercutem no futuro da humanidade e o homem presente não pode simplesmente viver o presente sem qualquer preocupação com as gerações futuras.
Os novos tempos requerem o reconhecimento de novos direitos e, consequentemente, novos mecanismos de garantia dos mesmos. Não se pode mais imaginar o homem apenas no presente: é inegável a reponsabilidade perante as gerações futuras, como requisito da continuidade da existência.
A partir do reconhecimento dos princípios da responsabilidade e da precaução, fundamentados na solidariedade, como norteadores da aplicação das novas biotecnologias podem ser reconhecidos deveres jurídicos da atual geração para com as gerações futuras. Os direitos intergeracionais devem ser compreendidos como direitos coletivos, independentemente da identidade de cada geração, posto que a titularidade do direito seria da geração como um todo, independente dos indivíduos que a integram.
Sem dúvida, o desenvolvimento da biotecnologia remete a situações de risco, que requerem a aplicação do princípio da precaução. Essas situações não podem ser reguladas por um direito estanque e alheio ao contexto social, sendo necessária a existência de novas condições ao processo de tomada de decisão e uma adequação do sistema jurídico ao novo. Certamente que o sistema jurídico não será capaz de garantir um futuro integralmente seguro, mas ao menos um futuro de possibilidades.
Nesse contexto, é que se defende a necessidade do reconhecimento das gerações futuras como sujeitos de direito, para que sejam efetivamente protegidos os direitos de cada ser humano, independentemente da época em que vivam.
O reconhecimento de um dever para com as futuras gerações é a demonstração da necessidade dessa referida ampliação do conceito de sujeito de direito, para atender as demandas da contemporaneidade. Nem sempre é necessário criar uma nova categoria jurídica. As categorias jurídicas, ainda que seculares, precisam apenas se adaptar à nova realidade e atender às novas relações jurídicas que se instalam no mundo contemporâneo (ou pós-moderno, como queiram), superando suas teorizações e dogmas de forma a concretizar o valor supremo das sociedades democráticas, que é a pessoa humana e sua dignidade.